Sociedade

Os CIACs de Collor não são uma solução para os desafios educacionais brasileiros. Esse tipo de escola-restaurante não se preocupa em ensinar, mas apenas em satisfazer as necessidades biológicas de seus alunos.Isto é uma distorção

Centros Integrados de Atendimento a Crianças passam, infelizmente, a ser um tema obrigatório para nós educadores, uma vez que constituem um plano do nosso governo federal, onde os investimentos e as esperanças de melhoria da nossa educação deveriam se assentar, mas a improvisação e a irracionalidade do projeto saltam aos olhos.

O problema da educação no Brasil passa em primeiro lugar pelo fracasso escolar, isto é, pelo número elevadíssimo de alunos que não aproveitam a escola, estando nela. A preocupação por ingressar na escola os que nela não estão tem ao menos que vir acompanhada, se não precedida, pela preocupação de que a escola ensine. Nós não vamos nem aventar a hipótese de escola-restaurante, ou escola-posto de saúde ou escola só para guarda da criança, porque isto nos rebaixaria tanto que não poderíamos aguentar a humilhação. Um país que não pode se ocupar senão das necessidades biológicas dos seus filhos, está reduzindo-os a irracionais e isso não podemos admitir.

Nossas crianças, independentemente de classe social, são seres humanos dotados de necessidades físicas e materiais, sim, cuja fome de pão está indissociavelmente ligada à fome de beleza que, não pensada e não satisfeita, é um acinte à sua e à nossa dignidade.

Vamos falar, portanto, de escolaridade, vamos começar protestando que a escola esteja dentro de um projeto de atendimento. Denunciamos isso como um descalabro. Quem tem contato com nossas crianças de vilas populares mais pobres sabe que elas têm inteligência no mínimo equivalente à média; sabe que as que foram desnutridas gravemente, nos dois primeiros anos de vida, morreram antes de chegar aos sete anos. Porque a desnutrição, junto com as células nervosas, que afetam a aprendizagem, diminui sensível e fatalmente as defesas orgânicas. Para um desnutrido, uma gripe é quase sempre a preocupação de uma pneumonia; o sarampo é a ante-sala de uma encefalite e uma desidratação, uma ameaça de morte. Os desnutridos morrem antes de irem para a escola. Os que estão na escola economizaram, às vezes, músculos e ossos (são magrinhos e com pouca estatura) para salvaguardar o sistema nervoso, que garante sua aprendizagem e que garantiu a sua sobrevivência.

Portanto, as crianças brasileiras que estão na escola podem e têm direito de aprender. E o Brasil precisa que elas aprendam, sob pena de seu encaminhamento iminente ao Quarto Mundo.

A necessidade constante de aprender

Aprender é a condição para não delinqüir. Não é a guarda e a vigilância que garantem a boa formação. É muito mais do que isso - é a capacidade de ser sujeito, de se conduzir autonomamente, de suprir suas necessidades, de se relacionar eticamente com os outros, com a natureza e com a cultura, de ser alguém nesse mundo letrado e tecnicamente avançado.

Temos que banir esta falácia de que, dada a pobreza da nossa população, podemos rebaixar suas exigências e suas possibilidades.

Todos precisam aprender. Mas aprender o quê? Onde aprender? Quando aprender? Como aprender? Repito: todos precisam aprender.

Precisam aprender em primeiro lugar, desde que nascem. A idade da razão não acontece aos sete anos. Antes dessa idade, devem aprenderem casa ou na creche, também denominada pré-escola ou maternal, que também tem que ser escola.

Apontamos para uma questão essencial. O Brasil precisa de escolas infantis, muitíssimas, por uma razão fundamental: para a aprendizagem das crianças, que será enriquecida pela atuação profissional da mãe, liberada enquanto seu filho está na escola desde cedo. Uma mulher que contribui para a construção do mundo, além de proporcionar cuidados maternos, pode ser mais mãe do que aquelas que não trabalham fora.
Aprende-se desde que se nasce e sempre. Aprende-se o lógico e o afetivo, o social e o ético, o imaginativo e o belo.

O que compete essencialmente à escola? Respondo a esta questão sem titubear: à escola competem primordialmente as aprendizagens lógicas de natureza complexa, isto é, os conhecimentos estruturados cientificamente, ao longo da história, os quais se apresentam na escola em forma de disciplinas de matemática, língua materna e estrangeira, ciências naturais e sociais e todas as áreas de expressão (educação física, artes plásticas, teatro e dança).

A escola tem por tarefa propiciar a construção dos conteúdos dessas disciplinas que, por sua complexidade, não se faz no informal das vivências do dia-a-dia. A escola precisa dar conta de planejar, organizar, sistematizar saberes e conhecimentos que, por sua amplitude e profundidade, só nela se efetivam. A escola tem um papel inalienável e este é tanto mais imprescindível, quanto mais a família ou o convívio diário do aluno é desprovido de recursos culturais, como é o caso das nossas classes populares.

Ensinar as classes populares é o grande desafio hoje. Cinquenta por cento dos brasileiros matriculados nas primeiras séries do 1 ° grau são reprovados no final do ano, isto é, não se alfabetizam. Esta reprovação, entretanto, não é distribuída igualmente em nosso país. Nas escolas de classe alta e média, ela se reduz a quase zero, enquanto que nas classes populares ela chega à casa dos 70%. Não dá mais para se pensar que isto acontece porque estes alunos são carentes de possibilidade de aprender. Sabe-se hoje que se aprende resolvendo problemas. Eles não se alfabetizam por duas razões: Primeiro porque não tiveram suficientes problemas de leitura e escrita em suas casas, onde convivem com analfabetos ou com alfabetizados sem o uso da escrita e da leitura, pela ausência de livros, jornais, revistas, enfim sem acesso a materiais escritos. Segundo porque, neste meio, a escola, não sendo suficiente, gerou o estigma da incapacidade de render na escola, tão bem manifesto nas expressões: "Aqui não se tem cabeça boa. O pessoal é fraco de idéia. Puxou ao pai, a mãe, aos tios, que passaram anos na escola sem aprender".

Proposta Pedagógica

Estas duas razões estão sendo rebatidas por uma nova proposta pedagógica, o Construtivismo, que se embasa em sólidas contribuições científicas de vários campos, a saber: a psicologia de Jean Piaget, a antropologia educacional de Paulo Freire, as descobertas sobre o processo de aprender e ler de Emília Ferreiro, e mais aportes vindos da psicanálise, da linguística, da história etc.

Professores preparados dentro desta proposta, em várias cidades brasileiras, estão demonstrando praticamente os resultados significativamente positivos na aprendizagem do alunado. Elevam-se as taxas de alfabetização, em dois anos, para a casa dos 80%. Associam-se à elevação da quantidade de aprovações, a excelência da qualidade no ler e no escrever. Em Porto Alegre, na rede municipal de ensino, em agosto, já estávamos com aproximadamente 60 % dos alunos das primeiras séries, todos de classes populares, em níveis alfabéticos. Isto é concretamente revolucionário.

E isto conseguimos com quatro horas diárias de educação formal e mais duas horas de atividades alternativas, oferecendo o café da manhã e o almoço para o turno da manhã, e almoço e café da tarde para os alunos do turno da tarde, em 50 escolas localizadas em bairros populares.

Os efeitos desta proposta de alfabetização foram, na Prefeitura de Porto Alegre, particularmente benéficos ao conjunto de classes especiais, onde, em 1990, 63 % dos alunos foram alfabetizados.

Cinco experiências divulgadas de alfabetização de adultos, em locais diferentes (Porto Alegre, Florianópolis, Pelotas, Caxias do Sul e Taquari), revelam que, com esta proposta construtivista, foi possível ensinar a ler e escrever, em aproximadamente três meses (60 horas), a todos os inscritos em cada turma, sem nenhuma evasão. Este é um dado extremamente promissor face ao tremendo desafio que representam os milhões de analfabetos jovens e adultos que existem no Brasil.

Programa de atualização

Tal proposta exige, como está sendo feito em Porto Alegre, um investimento maciço na atualização dos profissionais da educação, assim como dos pais de alunos, sobre os múltiplos aspectos teóricos e práticos que permitem revolucionar hoje o ensino-aprendizagem. Além do esforço interno de atualização dos que trabalham na Secretaria de Educação de Porto Alegre, esta vem atendendo à numerosa demanda de consultorias e assessorias sobre Construtivismo, em todo o Brasil.

Destacamos a iniciativa da Unicef de possibilitar aos estados do Nordeste a assessoria de Porto Alegre, depois do exame detalhado, por seus especialistas, da proposta e de seu desempenho concreto na rede de ensino.

A mesma Secretaria Municipal de Educação coordena o projeto "Alfabetização Construtivista - Vanguardas Pedagógicas". Este projeto reúne 250 professores alfabetizadores da capital gaúcha, regularmente, desde abril deste ano, dentro do Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania, num esforço sui generis e inovador de "formar na ação" profissionais das redes públicas para uma alfabetização eficaz e libertadora.

A partir das vivências concretas diferenciadas com relação à escola tradicional, foi definido e criado um projeto arquitetônico para a nova escola que adota uma proposta construtivista pelo Serviço de Prédios da Secretaria de Educação de Porto Alegre. Trata-se de uma alternativa adaptada à realidade global da cidade, não só às características inovadoras da proposta pedagógica, mas também às peculiaridades de reservas de terrenos existentes nas áreas de demanda de escolas em nossa cidade, bem como às nossas soluções de atendimento da saúde, em consonância com a linha programática da Secretaria Municipal da Saúde e Serviço Social da Prefeitura de Porto Alegre.

Não podemos, ao mesmo tempo, deixar de explicitar um princípio básico que deve orientar o programa educacional do país na conjuntura atual: Enquanto algum brasileiro, em idade escolar, não tiver quatro horas de ensino formal, é injusto escolarizar-se uma parcela em regime de oito horas. Associamos este princípio à interpelação argumentativa que nos levou, em Porto Alegre, a transformar escolas de turno integral em escolas de dois turnos. A interpelação veio de um pai de uma vila popular: "Secretária, se a senhora tivesse dois filhos em idade de vir à escola; um deles tivesse matrícula para ficar o dia inteiro e o outro não pudesse ficar nem um minuto na escola, como a senhora reagiria?"

Mesmo sendo imperiosa a ampliação da jornada escolar para seis horas, porque há muito o que aprender ocupando adequadamente o tempo de crianças e adolescentes, nas condições concretas brasileiras, que são calamitosas (em muitos estados, inclusive São Paulo, com três ou mais turnos diários), temos que garantir ao menos quatro horas diárias de escolaridade, visando, no menor prazo possível, à sua ampliação. Esta ampliação deverá ser feita, de preferência, de acordo com o programa de mais duas horas de atividades alternativas, que sob vários aspectos tem vantagens sobre a mera ampliação da jornada com a mesma organização formal da escola.

A aprovação e o apoio - o governo federal promete investir 5 milhões de dólares em educação - devem ser acompanhados de uma revisão forte e crítica, como vem sendo proposto no projeto dos CISCs, a fim de evitar mais um desperdício nacional em área tão estratégica como é a escolarização no Brasil, neste momento.

Esther Pillar Grossi é Secretária de Educação de Porto Alegre-RS.