Internacional

Presente ao 1° Congresso do PT, organizado em novembro do ano passado, o líder sandinista Daniel Ortega concedeu uma entrevista coletiva em que analisou o êxito da pró-americana Violeta Chamorro nas eleições presidenciais e fez um balanço sobre a atual situarão da Nicarágua. "A derrota eleitoral significou uma vitória para o nosso projeto revolucionário", disse ele, entre outras coisas.

Conseguir uma entrevista com Daniel Ortega é quase tão difícil quanto lhe fazer perguntas. Ele fala de um só fôlego, embalado pela autoridade de ter liderado a Revolução que povoou os sonhos da esquerda latino-americana, já na curva dos anos 70. No último dia do 1º Congresso, ele falou aos jornalistas entre os quais Edson Campos, editor do boletim Linha Direta. Ortega deu a sua visão sobre a Nicarágua de hoje - um tanto distante da poética "Nica" cantada e choramingada em um sem-número de mesas de bar.

Por que você acha que os sandinistas perderam as eleições?
A derrota da Frente tem a ver com o desgaste que sofreu o país durante dez anos de guerra. Aos cerca de 50 mil mortos na luta contra a ditadura somozista, a guerra somou mais de 20 mil vítimas entre os nicaraguenses que lutaram a favor e contra a revolução. Sofremos um verdadeiro genocídio, produto da política americana. Esse desgaste econômico-social acumulado fez com que o povo se encontrasse frente a um plebiscito mais do que a uma eleição normal. A sra. Chamorro era apoiada diretamente pelo presidente Bush, que dizia ao povo: "Se você der seu voto à sra. Chamorro, a Nicarágua terá ajuda massiva". A Frente Sandinista, através de Daniel Ortega, dizia ao povo nicaraguense: "Apóie a Frente Sandinista, a situação é difícil e complexa, mas deverá melhorar". A sra. Chamorro e nós oferecíamos paz. Nesse plebiscito, 30% da população estava indecisa... Nós cometemos erros como governo, em meio a uma guerra que criava condições para se cometer erros. A derrota eleitoral da Frente foi um revés à proposta de dar continuidade a um processo democrático, mas, paradoxalmente, reafirmou a proposta democrática e popular que o sandinismo defende. A derrota da Frente é uma vitória para o projeto revolucionário no país. Isso porque se o voto da maioria fosse para a Frente, hoje os Estados Unidos seguiriam repetindo que se a Frente tivesse perdido as eleições não entregaria o governo, e muitos acreditariam nisso ou acusariam a Frente de fraude... Nós lutamos para ganhar essas eleições, mas perdemos. Agora devemos continuar defendendo esse projeto global da Nicarágua.

Qual o balanço que você faz do processo de transição?
Desde o momento em que nos colocamos, antes do triunfo da Revolução, um programa e uma proposta revolucionários em direção ao socialismo, que passa necessariamente pelo pluripartidarismo, por eleições periódicas e uma economia mista, sabíamos que em algum momento a Frente ficaria fora do governo. A única maneira de tentar garantir sua permanência no governo era optar por uma proposta unipartidária, que não era a da Revolução Sandinista. Nesse sentido a Frente ganhou porque fortaleceu o projeto democrático dentro da América Latina. Até agora, na América Latina, quando foi posta à prova a democracia sustentada nos grupos de poder oligárquicos e capitalistas e nos militares, observou-se que ela nega a si própria. Falo do Chile, do Haiti. Na Nicarágua fizemos algo que não é usual nas democracias que nos puseram como exemplo. Na madrugada de 26 de fevereiro de 90, quando se conhecia a tendência à derrota da Frente, nós aceitamos os resultados. Fui à casa da sra. Chamorro cumprimentá-la pelo triunfo. Não é usual, pelo menos na América Central, que o candidato perdedor tenha essa atitude. Acho que demos um exemplo. Quando um processo democrático tem raízes revolucionárias populares, se converte num processo autêntico. Depois que o novo governo assumiu, nós optamos por manter a estabilidade do país. Sem buscar desgastar o governo. Quando o governo nos pediu que o acompanhássemos nos fóruns de Roma, Estocolmo etc, para conseguir ajuda para Nicarágua, nós fomos. Se nos convidam à reunião em Washington com o FMI e o Banco Mundial nós vamos.

Como está a situação da Nicarágua depois de quase dois anos de governo de Violeta Chamorro?
Nesse momento a Nicarágua enfrenta uma crise entre o Executivo e o Legislativo. Um quadro que parece absurdo: boa parte dos partidos que apoiaram a Sra. Chamorro nas eleições agem como oposição e a Frente Sandinista teve que agir como o partido do governo. Agimos assim porque consideramos vital a estabilidade do país, é secundário que o governo melhore sua imagem frente à população. Consideramos que deve prevalecer o interesse nacional. Temos que ' levar em conta o papel dos Estados Unidos nesta situação que, em primeiro lugar, foram surpreendidos pela derrota da Frente Sandinista nas eleições e tinham grandes compromissos com a proposta da UNO (União Nacional de Oposição): Bush tinha anunciado uma ajuda massiva se o povo votasse na UNO. Essa ajuda massiva não chegou, ela aparece a conta-gotas. A economia nicaraguense, como as outras da América Latina, é comandada pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelo Norte. Nós fizemos esforços junto ao governo para resistir, mas não acreditamos que poderíamos ter uma economia própria. É impossível nos sustentarmos sem a ordem econômica internacional, por mais injusta que ela seja. Quando estávamos no governo, tivemos boas relações com o FMI e o Banco Mundial e implementamos alguns programas de ajuste em 85 e os aprofundamos em 89. Mas, pelo bloqueio americano, não tínhamos possibilidades de pleitear recursos desses organismos nem do BID. Fizemos uma política de ajuste monetário lutando para evitar uma reconcentração de capital, lutando para evitar que todo o ônus desta política recaísse sobre os setores mais pobres, sobre os trabalhadores, lutando para evitar urna transferência de capital para o exterior.

Vocês defendem um rompimento com esses organismos?
Não se trata de romper com o FMI ou com o Banco Mundial. Achamos que temos que romper com a lógica do Banco Mundial e do FMI. Paralelamente, podem ser levadas algumas lutas na medida em que os povos e governos façam coisas comuns para melhorar as condições de tratamento por parte desses organismos internacionais. Frente a esse tema, temos um diálogo muito rico com o governo, mas ternos diferenças. Temos uma convergência no que diz respeito à ordem constitucional, o respeito às Forças Armadas, o respeito às conquistas da Revolução, mas temos discrepâncias com relação à legalidade da aplicação do programa de ajuste monetário e ajustes estruturais no nosso país. Os setores de direita que se esforçam para restaurar o somozismo tentam uma reconcentração de capital nas mesmas mãos dos que o tiveram na época de Somoza. O governo está pressionado pelos grupos dá direita e pelos americanos.

Qual a postura do governo norte-americano diante desse diálogo entre governo sandinista?
Há uma pressão americana para quebrar a convergência entre a Frente e o governo. Falamos em convergência. Há quem diga que na Nicarágua há um e o governo. Considerarmos que não é um co-governo no sentido que não temos discutido nem um programa econômico nem um programa de governo. Há uma convergência porque estamos defendendo juntos a institucionalidade do país e as conquistas revolucionárias. Como a pressão americana não prosperou através do governo, agora ela se manifesta por meio dos grupos direitistas encabeçados pelo vice-presidente Godoy, pelo presidente da Assembléia Nacional, Alfredo César, e pelo prefeito de Manágua. Através dos deputados da UNO, os americanos têm pressionado para cortar o orçamento do Exército - e já sabemos com quais intenções o fazem - e bloquear qualquer ajuda internacional ao Exército da Nicarágua. Há pressões na Assembléia para deslegitimar a Frente Sandinista. Apresentaram formalmente um pedido ao Conselho de Partidos Políticos para tirá-la da legalidade. Ultimamente estão me acusando de desestabilizar o país, de estar promovendo a associação ilícita, os mesmos termos que usava Somoza quando me perseguia e me encarcerava. Introduziram a discussão na Assembléia pata exigir que me tirassem a imunidade parlamentar. É uma atitude de provocação, para que reajamos e assim se criem condições para o que seria um eventual deslocamento de nossa organização na Nicarágua.

Diante desta rearticulação somozista, cresce a violência no país?
De 25 de abril de 1990 até agora, 122 ativistas da Frente, camponeses, foram assassinados por grupos de extrema direita que se rearmam em alguns pontos do país, assassinando até crianças. Essa é a estratégia da extrema direita, alentada pelos EUA. Eles dizem que na Nicarágua é necessário que se conformem forças multinacionais para manter a ordem porque nem o Exército nem a polícia, por serem de filiação sandinista, podem garanti-la. Além disso, há campanhas contra a Frente: as últimas acusações surgiram no julgamento de Noruega, onde se falou que Cuba e Nicarágua eram bases do narcotráfico em 84. Um ex-funcionário do governo do Panamá mencionou meu nome como envolvido diretamente com os narcotraficantes. Eu disse à imprensa em Miami que estava disposto a testemunhar porque tínhamos provas suficientes para demonstrar que as Estados Unidos estavam envolvidos num delito internacional com o narcotráfico. Em troca de facilidades para o tráfico de cocaína, os narcotraficantes entregaram dinheiro e até armas à contra-revolução. Tudo isso faz parte de uma grande campanha contra o sandinismo, que é um elemento vital para o processo democrático na Nicarágua.

Como está o processo de desestatização da economia nicaraguense?
O governo tinha decidido desmantelar a área agropecuária. Nós assumimos a posição de que a privatização deveria ser feita em benefício dos camponeses, dos trabalhadores, dos desmobilizados do Exército, dos camponeses que estiveram com a contra-revolução e que hoje necessitam de um pedaço de terra para trabalhar. Levantamos a bandeira de que a terra que estava nas mãos do Estado passasse a esses setores. Fizemos alguns acordos com o governo em diferentes momentos. Os mais importantes foram assinados em 15 de agosto de 91. Ali o tema da propriedade foi objeto de negociação entre trabalhadores, produtores e se conseguiu um acordo que não foi assinado pelos grupos direitistas empresariais, mais sim pelos setores produtores identificados com o sandinismo, pelos trabalhadores e também pelo governo. Este acordo ratifica acordos anteriores, por exemplo sobre o tema da terra, onde mais de 30% das terras do Estado ficam nas mãos de trabalhadores agrícolas e técnicos que trabalharam durante todos esses anos nas empresas; 25% ficam para oficiais aposentados do Exército Popular Sandinista e 15% em mãos de camponeses que estiveram com a contra-revolução. O resto fica para o Estado, para que ele possa decidir pela venda dessas propriedades ou pela devolução, onde houver condições de devolvê-las. Trata-se de propriedades que não foram atingidas pelos decretos que afetaram os somozistas. Quando estávamos no governo investimos cerca de US$ 6 milhões em indenizações, sobretudo a proprietários de terras que foram desapropriadas por razões sociais ou perdidas pelos seus proprietários devido a empréstimos bancários na época de Somoza. Nesse acordo subscrito pelo governo, trabalhadores e produtores, com o respaldo da Frente Sandinista, também se garantiu a propriedade das moradias e terrenos. Quando falamos em terras, moradias e terrenos, estamos falando de 200 mil famílias, quer dizer de mais de um milhão de nicaraguenses beneficiados.

E com relação à indústria?
Nestes acordos de 15 de agosto se abordou outro ponto que tinha a ver com o processo de privatização da indústria, que é muito mais complexo. Nossa indústria é muito limitada, de grande atraso tecnológico e custos operacionais muito altos.Acordou-se que 25% seriam deixados como ponto de referência para a participação dos trabalhadores nas empresas. O governo queria colocar no texto até 25% e os trabalhadores queriam a partir de 25%. Isso provocou um impasse e finalmente se fechou em 25% como ponto de referência. Frente a essa decisão, no dia 20 do mesmo mês, na Assembléia Nacional, os grupos direitistas liderados pelo presidente da Assembléia, que foi membro do Diretório da Contra-revolução, Alfredo César, aprovaram a lei 133 que diz o contrário do que se aprovou na negociação. A partir desse decreto, que é inconstitucional, eles tentam reverter todas as conquistas revolucionárias, expropriando essas propriedades do Estado.

Você acha que os sandinistas, para manter as conquistas da revolução, tem como estratégia a via institucional ou existe outro caminho?
Nós consideramos que, nas atuais circunstâncias, a luta deve se dar dentro do quadro constitucional. Os trabalhadores têm grandes espaços conquistados para lutar, para defender as terras e tudo mais. Existem as Forças Armadas que cuidam da ordem mas que não se prestam a ser instrumento de um projeto contra-revolucionário ou da concentração do capital: elas são um aval para esta luta no marco constitucional. É preciso ir isolando os focos de violência que ficaram no nosso país, mas tomaremos somente medidas de autodefesa. As forças políticas de direita, em vez de reforçar o processo democrático, respaldam esses grupos armados da ultradireita. O governo adotou uma política de negociar com estes grupos e não ordenar ao Exército que agisse contra eles. Isso obrigou o armamento dos sandinistas. Nós apoiamos esses companheiros que se armam para defender suas vidas. Com isso quero dizer que, de acordo com as circunstâncias, outras formas de luta podem ser assumidas. Não se trata de renunciar a todas as formas de luta. Não para mudar o governo, não para promover novas leis, mas como mecanismos de autodefesa.

A ofensiva neoliberal e o conservadorismo em matéria política colocam em questão três elementos que, para a esquerda, sempre foram importantes: o antiimperialismo, o método da luta armada e o socialismo. Qual a sua opinião sobre isso?
Eu penso que a questão do antiimperialismo tem a ver com a realidade. Se existe o imperialismo haverá o antiimperialismo, independentemente do que passe pela cabeça de alguns de nós. Com respeito à luta armada, a verdade é que ela não pode ser decidida de cima, não pode sair da cabeça de alguém. A violência política acontece ali onde existem condições para que exista. E a realidade é que hoje estamos assistindo a processos de negociação importantíssimos na América Latina, em El Salvador, na Guatemala, onde a luta armada foi o instrumento para se chegar a esses processos de negociação política e onde a própria luta armada não acabou. A questão da luta armada está determinada pelas condições de cada país. Conversava recentemente com o companheiro Nelson Mandela, que manifestava que na África do Sul eles não renunciam ao direito de recorrer às armas se o atual processo não avançar pelos métodos pacíficos, pela negociação. Não se pode cometer o mesmo erro de anos atrás, quando se dizia que quem não estava de acordo com a luta armada não estava agindo corretamente. Temos que respeitar a situação de cada país. É necessário entender que em última instância a violência popular e revolucionária nunca foi uma iniciativa dos revolucionários: é a reação dos povos frente à outra violência. Eu diria que os revolucionários são por princípio não-violentos. Teríamos preferido sair da ditadura de Somoza pela via pacífica, não através de uma guerra terrível, que custou tantas mortes à Nicarágua, mas Somoza e os norte-americanos não nos deixaram outro caminho senão o da luta violenta. Quando chegamos ao governo queríamos paz para a Nicarágua, queríamos o desenvolvimento econômico e social para o país, alfabetização, cultura. Começamos a trabalhar nessa direção e a desenvolver programas como nunca houvera em nosso país. Os americanos usaram violência contra nós, decidiram por uma guerra. Não podíamos responder de forma não-violenta, tínhamos que responder com violência à violência.

Qual o balanço que você faz do último congresso da Frente Sandinista?
Estamos satisfeitos. Conseguimos alinhar de forma politicamente coesa nossas forças, que estavam um pouco dispersas. Consideramos que foi um congresso para fortalecer a unidade. Formamos uma comissão de organização e mobilização para por em questão toda nossa forma de organização. No Congresso foi escolhida uma Assembléia Sandinista, uma direção nacional, mas isso não quer dizer que sejam eles os melhores organismos para os tempos que se vivem na Nicarágua. Mantivemos no Congresso os mesmos organismos mas ampliamos a participação. Acreditamos que devemos romper com esse esquema, procurar novas formas de organização e de comunicação. Entendemos que existem forças sociais na realidade nicaraguense que devem ser integradas e isso não é possível através dessas estruturas tradicionais. Devemos procurar novas formas de participação, onde tanto os filiadas ao sandinismo como outras forças amigas sintam que não estão submetidas a estruturas que discutem e depois ordenam, mas que participam de um processo de tomada de decisão e, por isso, de mais compromisso.

Que passos podem ser dados na proposta de unidade para o terceiro mundo?
Nossa proposta de um fórum de luta internacional parte da necessidade de um ponto de convergência dos povos do Sul, das forças revolucionárias, progressistas e de esquerda da África, Ásia e América Latina. O fortalecimento de fóruns regionais é um ponto de partida para facilitar a comunicação com outras regiões e aumentar o intercâmbio. Na América Latina foram se formando diferentes fóruns, por exemplo o Fórum de São Paulo, iniciado aqui no Brasil, que teve sua segunda reunião no México e a terceira será em Manágua. Acho que isso é muito importante na busca de propostas no âmbito latino-americano para nos comunicarmos com a Europa, com os Estados Unidos. Temos que começar a falar em diálogo Sul-Norte. Precisamos de uma nova ordem democrática internacional, uma nova ordem econômica e jurídica. Um fórum pode ser um ponto de encontro, de comunicação vital para as forças progressistas e revolucionárias do Sul.