Cultura

O fenômeno difuso e não-programático da nova poesia feminina é responsável, em boa parte, pelo incipiente mas efetivo renascimento da poesia brasileira. Antes de mais nada porque ela já nasce recusando-se ao exercício da elucubração rarefeita, acadêmica e pseudo-filosófica.

Sangrai o seio, moças,
dilacerai o linho

Safo

Eros, construtor de cidades
Auden

 

Um dos fenômenos mais instigantes da literatura brasileira contemporânea - e, por extensão, da nossa vida cultural em seu conjunto, ao menos em termos potenciais - é a emergência quantitativa e qualitativa de uma nova poesia feminina.

Ainda que as antologias quase não a registrem e a crítica especializada (supondo-se que exista) não a leve na devida conta, o fato é que nunca antes, na história literária brasileira, a escrita feminina teve uma participação tão ampla e medular, tamanha centralidade em nossa produção poética.

Basta consultar os catálogos das editoras (malgrado sua aversão pelo gênero...), as páginas literárias de jornais e revistas ou qualquer elenco disponível de "plaquetes" de autor para comprovara dimensão quantitativa do fenômeno. Muito mais importante, no entanto, é a inequívoca, embora às vezes paradoxal, qualidade dessa produção, a contribuição específica que ela aporta à poesia brasileira e à sensibilidade ético-cultural do país.

Saltam aos olhos de quem lê com atenção e sem dogmatismos a melhor poesia feminina dos últimos dez ou quinze anos - aquela de Adélia Prado, de Ana Cristina César, de Alice Ruiz, de Martha Medeiros, de Leila Miccolis - sua originalidade e seu pathos criativo, responsáveis em boa medida pela incipiente mas efetiva renascença da poesia brasileira.

Não se trata, é bom esclarecer, de nenhum movimento organizado e/ou corporativo, como foram as vanguardas dos anos 50 e 60 e a própria "poesia marginal" dos 70. Ao contrário, um de seus traços mais característicos é justamente o de fenômeno difuso e não-programático, isento de plataformas estético-ideológicas e de militância literária articulada.

Manifesta-se por meio de um eclético elenco de escritoras com referências existenciais, filosóficas e histórico-sociais as mais variadas, e uma ostensiva pluralidade de estilos, cujas obras valem por si, pelas suas peculiares tensões ideais e artísticas, e não como mera ilustração doutrinária ou de fenômeno grupal.

Entre Adélia Prado, por exemplo, com suas epifanias de confessa inspiração bíblica ou franciscana, e a auto-ironia "laica", refinadíssima e corrosiva de Ana Cristina César, há com certeza uma distância apreciável, assim como entre a concisão e a suavidade "orientais" da última Alice Ruiz e a fúria polêmica, dessacralizadora, vocacionalmente impura de Leila Miccolis.

Entretanto, no plano do que poderíamos chamar de "estrutura profunda" da cultura, naquele em que Walter Benjamin recomendava surpreendêssemos a "moralidade da forma", não há dúvida de que essas e outras autoras (à revelia até mesmo de suas opiniões pessoais a respeito) expressam uma emergência de fato compartilhada, um novo olhar sobre a nossa experiência vital e a língua que a diz.

Antes de mais nada porque essa poesia já nasce recusando-se ao exercício de uma poética da rarefação e da ausência, acadêmica, pseudo-filosófica, vagamente estetizante e evasiva, que passou a predominar entre nós com a exaustão do impulso histórico das vanguardas. Já aparece refutando essa "poética do sublime" tão bem definida por Vinícius Dantas: "amaneirada, elegantemente afastada de qualquer marca desagregadora do real e da subjetividade, ministrando-nos homeopaticamente gotas de plenitude".

Olho muito tempo o corpo do poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue nas gengivas

Ana Cristina César

Mas, sobretudo, porque ela nasce - e nesse caso sua oposta é muito mais alta e os riscos de malogro muito maiores - em tensão permanente com a pedra-de-toque, com o leitmotiv da melhor (e da pior) "poesia crítica" do século: a negação em bloco, mais ou menos apriorística, da experiência do sujeito individual no interior da moderna sociedade de massas, e a virtual estigmatização do cotidiano como espaço por excelência da alienação e do inautêntico.

Reage a esse senso de fatal "castração" do sujeito e de desqualificação do seu lugar existencial - o cotidiano como um vazio, um não-lugar, destituído quase que por definição de sentido, valor e beleza. Rebela-se, na verdade, e nessa medida é temerária mas valentemente pós-moderna, contra a quase obrigação (o que era dilacerado sentimento do mundo tornou-se escolástica da modernidade) de contrapor ao universo concreto da nossa experiência individual, à sua imediaticidade, ao seu acontecer contraditório - aqui e agora - um outro universo, onírico, fantástico ou mítico, compensatório.

Minha tristeza não tem pedigree,
á a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
mulher é desdobrável. eu sou.

Adélia Prado

Não que essa poesia ignore a insidiosa materialidade da opressão moderna e os seus riscos terríveis para a integridade do sujeito e a autenticidade da experiência. Não que ela admita, sobretudo em seus momentos de maior rigor e intencionalidade, qualquer conciliação especiosa com o real, com esse mundo "totalitário" responsável pela contrafação da religiosidade, o expio de Eros e a destruição do nosso senso do passado e da natureza. Seu modo de invectivá-lo é, em algumas autoras, mais direto e rude que o da tradição moderna, chegando pelo avesso ao limite do panfletário

Pena de morte
eram bastante bons
aqueles tempos de ódio,
em que planejávamos os nossos assassinatos pelo simples prazer de nos vingarmos

(...)
Tempos em que queríamos fazer um filho
para espancarmos juntos,
nos dias de ócio

(...)
Hoje afago-te as corcovas
e lustro-te as botas novas

Leila Miccolis

embora outras prefiram fustigá-lo sob o signo, menos frontal e quem sabe mais contundente, da pergunta originária:

Por que a mãe de stella tem os nervos em pânico?
Por que não consigo cultivar folhagens?
Por que tão arduamente vivo
Se meu único desejo é ser feliz?
O alarido dos que enchem a praça exibindo feridas
rói o bordado do meu casamento,
tarefa que executei com meus pais e meus avós
longínquos.

Adélia Prado

Poderei dizer-vos que elas ousam?
ou vão, por injunções muito mais sérias,
lustrar pecados que jamais repousam?

 

Ana Cristina César

Mas essa poesia também sabe que não parece haver, no solo calcinado da vida contemporânea, outra possibilidade de desentranhar ou reconstruir o sentido da experiência senão através de uma renovada e humilde aderência ao real cotidiano em seu peremptório mas não inelutável acontecer.

Eu penso conforme o tempo
Eu danço conforme o passo
Eu passo conforme o espaço
Eu amo conforme a fome
Eu como conforme a cama
Eu sinto conforme o mundo
Mas no fundo,
Eu não me conformo

Martha Medeiros

Sem amesquinhar a experiência do sujeito individual enquanto necessariamente reificada, unidimensional, nem tampouco elevá-la (as figuras simétricas do herói e do anti-herói) a qualquer suposta dimensão exemplar

não sou matrona, mãe dos graccos, cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, adélia.
faço comida e como.
aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.

o que essa nova poesia busca é recuperar a espessura existencial da vida cotidiana, não para celebrar o anedótico, o puramente episódico, o intranscendente, como fez tanta poesia dita marginal, mas tentando surpreender, na experiência de cada dia, aqueles momentos de resistência do vivido, de insurgência da beleza e da verdade, capazes de dissolver os vínculos da rotina e resgatar-nos da aridez. Momentos - às vezes apenas traços, rastros, indícios - de experiência humana desalienada e desalienante, de afirmação, no interior mesmo do precário cotidiano, das possibilidades expressivas do sujeito.

Quando você pensa que viu tudo
e mesmo assim quer ver de novo
e sentir na pele uma emoção sabida e repetida
e que não cansa porque é sempre renovada
e mesmo tão cansada você pede você quer você provoca
e quando acaba você pensa que isso é tudo
mas não é
Isso é felicidade

Martha Medeiros

E o faz reintegrando à carnadura do poema toda a riqueza e pluralidade física da vida, que aqui é mais, muito mais do que simples cenário ou invólucro da experiência, essencialmente distinta do espaço positivista exterior ao homem e alheio às suas vicissitudes. Aqui ela é o universo "múltiplo e vário" dos sentidos (inclusive dos "sentidos calmos", estranhos à mística do homo faber), personagem e interlocutor do indivíduo e da sua experiência, decisivo protagonista do nosso ser e estar no mundo, do homem não só como "cultura" mas também como "natureza".

Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo, mastigo a boca nua e me regalo.
Amor tem que falar meu bem,
me dar caixa de musica de presente,
conhecer vários tons para uma palavra só.

Espírito, se por de deus eu adoro,
se for de homem, eu testo
com meus seis instrumentos.
Fico gostando ou perdôo.
Procuro sol porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.

Adélia Prado

Assim como reassume o corpo em toda a sua integridade fisiológica e espiritual, não como obstáculo ou fronteira, signo neo-romântico de desterro cósmico, mas como fonte de percepção e saber, de relação com a natureza e com os outros, mediação insubstituível da experiência humana.

As palavras escorrem como líquidos
lubrificando passagens ressentidas

Ana Cristina César

tua mão
no meu seio
sim não não sim
não é assim
que se mede
um coração

 

Alice Ruiz

Estou assim tão melada de coisas
prontas
tudo começou há pouco
e já estou tão tonta...

 

Martha Medeiros

Sem o corpo a alma não goza

 

Adélia Prado

Impossível, contudo, essa renovada aderência ao real cotidiano e ao corpo que o exprime, essa busca de uma relação entre o eu e o mundo de extrema, radical vizinhança, de comunicabilidade e permeabilidade recíproca, através de uma língua poética saturada de metaforismo abstratizante, fundada em um código privado de símbolos, e mais ainda se se proscreve a empiria lingüística do vivido. Surpreender no cotidiano os seus momentos de desalienação exige uma particular espécie de "honestidade referencial" (mesmo quando se finge e se estiliza, como faz toda poesia e criatura que se preza), uma linguagem em que pensamento e sensação, argumentação e imagem se interpenetrem e se sustentem mutuamente - uma língua ao mesmo tempo de pensar e de lamber.

Língua que deve, acima de tudo, ser capaz de dizer e presentificar no poema a experiência do amor - máximo "alumbramento" do cotidiano, na belíssima, pungente expressão de Manuel Bandeira. E que infinita variedade de tons e subtons essa poesia encontra para celebrá-lo, escavando e tornando a escavar seu solo perene, cantando desde os padecimentos do amor ("dor não é amargura", nos adverte Adélia), passando pela sua caprichosa fenomenologia ("No teu peito também/amor/guerreia/amor?" - Ana Cristina) até a pura epifania do ato amoroso.

agora
aqui
no dentro do outro
estilhaços de estrelas
pleno de si
esse cio
eterno início
nunca se sacia

Alice Ruiz

Amor que não é celebrado somente enquanto apoteose do eu, paroxismo da individualidade, momento em si e para si, mas também pelas suas reverberações no conjunto da existência, abrindo o ser ao outro, ao mundo, como queria/não queria (mas sabia) Baudelaire: "amar é sair de si".

ha mulheres que dizem:
meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
eu não. a qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
é tão bom só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
o silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado

 

Bela, forte e corajosa como é, essa poesia parece hesitar, no entanto, em percorrer plenamente os caminhos que ela própria descortina. Se o seu novo olhar moral e estilístico aponta para o resgate da precária mas possível integridade do sujeito, mediante surpresas de sentido que brotam da sua aventura cotidiana, na qual a possibilidade do amor tenciona a opressiva vivência e convida à integração do corpo no corpo geral do mundo - por que não arriscar-se também ao lirismo das ruas e do trabalho, ao lirismo da participação do sujeito na peripécia árdua mas não menos contraditória e aberta do convívio social? Por que não o lirismo da experiência do amor nos labirintos da cidade?

Luiz Dulci é sindicalista e membro do Diretório Nacional do PT.