Internacional

O colombiano Navarro Wolff é dirigente de um partido que, de organização guerrilheira, transformou-se na segunda força eleitoral de seu país. Trata-se da Aliança Democrática M-19. Nessa conversa, ele conta a história. dessa interessante metamorfose.

A exemplo do PT no Brasil estão surgindo nos últimos anos, em diversos países da América Latina, novos partidos e organizações políticas de esquerda. Ao lado de forças mais antigas, como o PS chileno e a Frente Ampla do Uruguai, algumas delas vêm alcançando rápido reconhecimento e bons resultados eleitorais. Dentre estas, a aliança Democrática M-19, da Colômbia, talvez seja a que teve a transformação mais radical e rápida. Uma organização que desenvolvia a luta guerrilheira até início dos anos 90, abandonou as armas em 91 e rapidamente se transformou na segunda força eleitoral do país, com condições reais de chegar a Presidência da República em 94.

Para participar do 1º Congresso do PT, esteve no Brasil o dirigente do M-19 Navarro Wolff, ex-guerrilheiro, que foi candidato a Presidência. Nesta entrevista, ele nos fala da trajetória política de seu partido e da situação atual da Colômbia, um país assolado pela violência do narcotráfico.

Seria interessante que você nos contasse como uma organização guerrilheira abandona a luta armada e alcança em pouco tempo um resultado muito positivo em termos eleitorais. Como vocês chagaram a esta decisão?
Na Colômbia, depois de muitos anos de luta armada se chegou a um ponto em que ninguém ganhava ou perdia a guerra. Havia organizações que estavam na guerrilha há quarenta anos. Nós estávamos há quase vinte. Havia seis frentes guerrilheiras: o Exército de Libertação Nacional (ELN), a guerrilha de influência maoísta do Exército Popular de Libertação, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, ligadas ao PC colombiano, uma guerrilha indígena, o PRP e nós o M-19 -,que éramos a mais jovem das guerrilhas: começamos em 73. Nós fomos para a montanha para ganhar o poder. E chegamos à conclusão de que pela via das armas não se chegaria ao poder. Nos últimos anos, na Colômbia, houve um ascenso muito grande da violência de grupos paramilitares de extrema direita, da violência dos delinqüentes, violências que iam se sobrepondo umas às outras. Isto criou um estado de ânimo muito favorável à paz. Além disso, o desgaste dos partidos tradicionais, que na Colômbia são apenas dois (o Partido Conservador e o Partido Liberal) havia deixado um vazio político. A soma destes fatores nos levou à conclusão de que tínhamos que deixar as armas.

Quantas pessoas estavam com vocês na Guerrilha?
Na montanha mil, com apoio camponês e apoio urbano. Fizemos um congresso com 236 delegados das estruturas armadas e das estruturas de apoio e nesse congresso 233 delegados votaram a favor de deixar as armas.

Havia algum tipo de coordenação com as outras frentes guerrilheiras?
Estava começando a se formar uma coordenação da guerrilha sob o nome de Coordenação Guerrilheira Simón Bolivar.

Vocês colocaram essa discussão na coordenação?
Sim, colocamos, mas não houve acordo. Decidimos sozinhos e ficamos sós. Em março de 90 deixamos as armas. Não as entregamos ao Exército, nós as fundimos: seis toneladas de lingotes de aço.

Quando aconteceu a fundação da Aliança Democrática M-19?
Ela foi fundada na primeira semana de abril de 90 e em maio lançamos a candidatura à Presidência de um comandante do M-19, Carlos Pizarro, que foi assassinado. Eu fui escolhido para substituí-lo como candidato. Era um momento muito difícil, pois tinham matado três candidatos presidenciais. Nas eleições, ficamos em terceiro lugar, com 13% dos votos. Reunimo-nos três dias após a eleição e por absoluta unanimidade decidimos continuar no processo político. Logo depois, foi firmado um acordo político entre os quatro principais partidos para fazer a Assembléia Nacional Constituinte, formar um governo nacional e enfrentar a situação de violência generalizada. Nós participamos deste acordo e ficamos com um ministério, o da Saúde. Assim, pela primeira vez na história da Colômbia, havia um ministro que não era nem liberal nem conservador, e eu fui ministro da Saúde. Depois, foi preciso instalar a Assembléia Nacional Constituinte no final do ano, em dezembro. Lançamos nossos candidatos e conseguimos 28% dos votos, ou seja mais que o dobro da eleição presidencial, ficando em primeiro lugar em número de votos e elegendo dezenove deputados entre setenta.

Nesta eleição, quais setores votaram na Aliança Democrática M-19?
Tivemos uma votação pluriclassista, mas essencialmente os mais pobres votaram conosco, em particular os pobres da cidade. Somos mais fortes no Norte do país e em Bogotá obtivemos um resultado intermediário. O Norte de Bogotá é a zona rica da cidade e o Sul é a zona pobre. Em Bogotá tivemos 27% dos votos, mas no Norte da cidade tivemos 16% e no Sul quase 40 % . Os sindicalistas votam muito em nós, apesar do sindicalismo na Colômbia ser muito fraco: somente 10% dos assalariados estão sindicalizados. Depois disso, foi elaborada uma nova constituição, que terminamos em junho de 91 e na qual jogamos um papel muito importante. Havia três presidentes na Constituinte: um liberal, um conservador e um nosso. Em seguida dissolvemos o Congresso Constituinte, fizemos novas eleições e caímos para 14%.

Qual o motivo desta queda?
Houve uma série de fatores. Os deputados constituintes não puderam ser candidatos. Esta foi a primeira razão: os companheiros mais conhecidos não puderam concorrer. Em segundo lugar, as máquinas políticas atuaram com mais força, sobretudo a do Partido Liberal, que não é um partido propriamente dito, mas urna confederação de caciques regionais, cuja sobrevivência está ligada ao Congresso. Se não estão no Congresso, desaparecem. A terceira razão foi que a nossa campanha também teve seus erros, especialmente porque trabalhamos muito com a onda otimista causada pela nova Constituição, mas a situação econômica e social, que está se deteriorando, passou a ter mais importância para o povo. Nós não conseguimos nos mover neste rumo. Houve uma grande abstenção e, com isso, perdemos votos.

Como é a nova Constituição?
É uma Constituição progressista, que fala da Colômbia como um Estado social de direito, dentro do que podemos chamar de uma concepção de um Estado de bem-estar. Tem em essência muitos elementos de participação democrática, de participação popular, de descentralização, de fortalecimento da sociedade civil, de novos direitos do cidadão. É uma Constituição que está à frente do nível de compreensão do povo. Na Colômbia, há uma sociedade civil muito dispersa e muito débil. Falta maior organização social do trabalho para garantir e desenvolver o que está na Constituição.

No Brasil, através da imprensa, a imagem que se tem é de que o narcotráfico constitui um verdadeiro duplo poder na Colômbia. Como vocês analisam esta questão?
O narcotráfico tem uma grande infiltração em vários setores da sociedade colombiana, nas Forças Armadas e em vários setores da direita. Ele foi usado como aríete contra a guerrilha, mas aconteceu um pouco o que acontece com os aprendizes de feitiçaria: ele foi usado pelo governo que depois perdeu o controle. Muitas das leis contra o narcotráfico, aprovadas há dois anos, eram uma intenção do Estado e das lideranças tradicionais de controlá-lo, pois o narcotráfico estava numa posição de completa ruptura, de insurgência contra o Estado. Eles aceitaram uma forma de negociação e alguma maneira de legalizar-se e desta forma diminuiu o nível de violência. Mas, indubitavelmente, o narcotráfico continua sendo um fator de distúrbio na vida colombiana, porque tem uma grande capacidade de corrupção: ele pode comprar quase tudo. Eu penso que para a Colômbia o narcotráfico é uma endemia que se pode aprender a controlar, mas que não se pode erradicar, porque há uma enorme diferença entre o preço de uma folha de coca na Bolívia e em Nova Iorque. Essa enorme apropriação de dinheiro por parte de grupos pequenos lhes dá um grande poder corruptor. Este é o nosso problema. A verdade é que enquanto os países consumidores não fizerem muito mais do que o que estão fazendo, continuará muito difícil. Não aceitamos as coisas como estão, mas a estratégia deve ser de controle e não de erradicação, porque esta é irrealizável no momento. O narcotráfico saiu do marco em que estava - o de um aríete contra a guerrilha -,conseguiu autonomia e chegou a querer todo o poder. Estavam tentando construir um outro Estado e então houve uma guerra brutal, como a brutalidade dos nazistas na Europa: havia extermínio massivo de jovens nas ruas de Medellin, carros-bomba em centros comerciais, trezentos policiais mortos em um ano, prefeitos, governadores e juízes assassinados. O Estado, embora tenha dado autonomia total à polícia antinarcótico não pôde controlar a situação. Este quadro nos levou à conclusão de que não se pode exterminar o narcotráfico. É necessário controlá-lo, reduzir seu tamanho, como se deve fazer com toda atividade que está fora da lei, mas que não se pode erradicar.

Como foi a participação do M-19 na negociação com o narcotráfico?
Nós apoiamos as negociações que o governo realizou. Como uma força guerrilheira que viveu um processo muito brusco de transformação, nós aprendemos que é necessário conversar com todo mundo. Conversamos com os grupos paramilitares, com os militares, com o narcotráfico, com a Embaixada Norte-americana, com a Igreja Católica. Com isso, aprendemos a conhecer muito do país real, com resultados às vezes surpreendentes. Estamos conscientes de que a única maneira de governar a Colômbia é com muita liberdade. Existem muitos setores que têm pedaços do território nacional: a guerrilha, os grupos paramilitares, os caçadores de esmeraldas, o narcotráfico, e há pedaços em que não há ninguém. A reconstrução da unidade nacional é urna necessidade. Na Assembléia Nacional Constituinte colombiana nós conseguimos isto de maneira exemplar, porque ela foi uma constituinte de consenso. A Constituição aprovada tem uma visão muito mais democrática do que as forças políticas do país. No caso da política colombiana é indispensável conseguir algum tipo de unidade nacional em torno de propósitos muito globais se queremos que o país se mova em alguma direção: a paz, um novo modelo de desenvolvimento, a democracia, a justiça social.

Vocês colocam em seu programa a questão do socialismo?
Não. Colocamos o conteúdo daquilo que vamos fazer: vamos construir tal tipo de Estado, com tais prioridades sociais que correspondem aos eixos essenciais de uma transformação social. Eixos democráticos profundos que são quase revolucionários, sem a necessidade de lhes pôr um rótulo. Ademais, na situação colombiana; nenhum socialismo - nem mesmo o socialismo democrático - é facilmente vendável. Vivemos em um país que é bipartidarista há 150 anos. É necessário atrair liberais e conservadores e fazer com que se sintam bem ao nosso lado.

Do ponto de vista doutrinário, o M-19 tem alguma definição?
Nós somos uma organização nacionalista, democrática e nos definimos por muitos anos como revolucionários.

Mas no seu interior coexistem diferentes setores?
Toda a esquerda está associada à Aliança Democrática M-19, exceto os setores ortodoxos, que continuam ligados à guerrilha: o Partido Comunista e o ELN. Os outros setores, que estavam na guerrilha há dois anos, agora estão conosco. E estamos fazendo esforços para atrair setores descontentes, liberais e conservadores.

Como é a relação de vocês com os setores que continuam na guerrilha?
É fria. Eles falam mal de nós, e nós não dizemos nada.

Como estão estas frentes guerrilheiras atualmente?
Estão negociando com o governo. Não estão débeis. Na Colômbia, a guerrilha é invencível, você pode passar vinte anos na montanha e morrer de velho.

Você esteve pessoalmente na guerrilha?
Claro. Todos estivemos em tudo: na montanha e também na guerrilha urbana. Na montanha eu estive durante seis anos.

Quando você entrou na guerrilha?
No começo, quando fundamos o M-19, em 73. Eu trabalhava na Universidade e meus amigos do movimento estudantil me convidaram para participar de um novo movimento armado. Começamos como uma guerrilha urbana e em 78 fomos para a montanha. Em 79 realizamos uma grande ação: fizemos um túnel de 75 metros e tiramos 5 mil armas de um depósito do Exército. Em 80 fizemos outra grande ação: era o Dia Nacional da República Dominicana e havia uma festa na sua embaixada, onde estavam todos os embaixadores. Quinze homens nossos se meteram lá, tomaram o edifício e ficaram com os embaixadores como reféns por dois meses. Esta ação nos deu um prestígio enorme na Colômbia. E, no campo, fizemos muitas coisas. Eu iniciei três núcleos guerrilheiros. No primeiro, em 78, começamos com cinco pessoas - quatro da cidade e um indígena - e chegamos a ter uns cinqüenta guerrilheiros. Depois, fomos a outra região: começamos com 35 e um ano depois éramos mil. Aí eu fui preso. Quando saí da prisão fui outra vez para a montanha. Começamos com sessenta homens e dois fuzis. Depois compramos armas de contrabando pela costa, nos armamos e chegamos a ser duzentos. Na Colômbia, há muita base social camponesa para a guerrilha e uma tradição de conflito armado muito forte. Nessas regiões a guerrilha é tudo: polícia, juiz etc.

Vocês acham que pode haver um retrocesso institucional? E neste caso, vocês poderiam voltar para luta armada?
Eu creio que não, porque se este retrocesso acontecer haverá setores dos outros partidos que não vão aceitá-lo. Hoje, o governo está numa situação difícil, porque se o seu partido o obriga no Congresso a se confrontar conosco, podemos chegar a sair do governo. Eu creio que no fundo o presidente da República não quer que isso aconteça. Eu creio que há uma fração do Partido Liberal, que está com o presidente, que vai ficar conosco no caso de uma confrontação com os setores de direita do Partido liberal. Mas, se a deterioração da situação econômica se acentuar, pode haver tensões no país, pode recuperar-se a luta guerrilheira. Embora eu ache que conseguimos neutralizar bastante esta possibilidade. O que foi indispensável e realizamos bem, foi a neutralização das Forças Armadas.

Como vocês vêem o desenvolvimento da situação política na Colômbia?
Há eleições em março de 92 para prefeito em mil municípios. Vamos lançar poucos candidatos próprios e fazer muitas alianças, porque não temos muitos quadros experimentados em governos municipais. Estamos buscando fortalecer as estruturas sindicais e nossos vínculos com organizações sociais. É previsível que se avance um pouco mais na negociação com a guerrilha, pelo menos com setores dela. Vai haver uma disputa política muito importante em 94, que é a eleição presidencial. Vai ser uma eleição em dois turnos e projeções indicam que temos condições de estar no segundo turno. O Partido Liberal, pela sua máquina, deve chegar em primeiro lugar e os conservadores estão muito divididos. Estamos nos movendo no sentido de poder ter relações com todos os setores conservadores para, no segundo turno, estar em condições de fazer alianças com alguns deles. É uma manobra muito difícil, mas se conseguirmos estar entre os dois primeiros, mesmo que percamos o segundo turno, vamos nos consolidar como "a alternativa", como a segunda força do país. De todo modo, em dois anos já avançamos muito. E parece que isto foi muito mais resultado de uma intuição política do que de uma análise.

Vocês consideram que a decisão de abandonar a luta guerrilheira e ingressar na luta institucional é válida para toda a América Latina?
Como político, eu me nego a generalizar a experiência do M-19. Nós a deixamos como uma referência. Não aconselhamos ninguém. É um ponto de vista para quem quiser estudá-lo. Cremos que para a Colômbia foi a decisão mais acertada: estamos fazendo coisas que antes não podíamos fazer, e estamos mais próximos do poder. Cada vez que analisamos nossa decisão, reiteramos nossa convicção de que ela foi acertada para a nossa situação.

Edson Campos é editor do boletim Linha Direta.

Ricardo Azevedo é diretor de Teoria & Debate.