Sociedade

A contenção da natalidade é produto de uma aliança internacional que envolve dirigentes, pesquisadores, parlamentares, industriais e banqueiros. Seu objetivo: manter o Terceiro Mundo estagnado, sem a distribuição justa de terras, recursos e poder político.

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A esterilização de milhões de brasileiras é a pura manifestação de suas vontades. Para questionar essa afirmação precisamos esclarecer de que lugar estamos falando.

Falamos como mulheres que têm uma reflexão, acumulada no movimento autônomo de mulheres sobre a fertilidade e seus ciclos. Sentimos na própria pele os efeitos da cultura patriarcal que se move mantendo as mulheres ignorantes sobre seu corpo, suas possibilidades e seus limites. Falamos como mulheres do mundo capitalista subdesenvolvido sabendo que há entre nós uma grande diversidade regional, cultural e de experiências de vida. Não ignoramos a existência das tensões culturais entre nós. Entendemos, também, que há entre os povos do mundo uma conexão desigual e perversa de acumulação de capital. Entendemos a organização da humanidade com uma divisão sexual do trabalho, negativamente discriminatória à mulher. Sabemos que o racismo e o sexismo são valores questionados mas ainda dominantes na dinâmica da modernidade, incorporando ou excluindo partes da humanidade.

É, a partir daí, que propomos uma reflexão sobre esse mito.

É ilusória a idéia de que este é um ato puro da vontade da mulher.

Na verdade, esse ato é resultado de um processo complexo de interesses e vontades. Ao se considerar a vontade das mulheres de não mais engravidar, há que se contextualizar sua história de vida, sua condição cultural e principalmente sua capacidade de autonomia em relação à existência de outros interesses e poderes. Numa complexa trama social, aí incluindo-se sua totalidade psíquica, vai-se construindo a vontade da mulher.

Nos importa ainda, questionar a situação dos profissionais de saúde em relação à cultura da sexualidade, conhecimento dos processos e ciclos, subordinação do ensino na área de saúde às ideologias intervencionistas, despreparo, situação profissional. Impotentes diante de uma situação de desigualdade social que explode no setor de saúde, esses profissionais acabam por exercer um papel sem a reflexão necessária sobre seus atos. Pobreza, desqualificação profissional, desemprego, insatisfação sexual, desresponsabilização masculina no ato sexual, solidão da mulher no cuidado com os filhos, ignorância acerca do funcionamento do seu próprio corpo, falta de perspectivas existenciais, são fatores que estão presentes na relação entre mulheres que buscam a esterilização e técnicos de saúde.

As razões que têm levado a mulher a consentir na lesão de parte do seu corpo, como forma de não engravidar, transcendem o âmbito individual e o setor de assistência.

Suas raízes se alimentam nas leis gerais que regem a civilização industrial e, também, no pensamento que inspira a macropolítica mundial de controle das populações: "O controle da população não é mais um assunto privado. Está totalmente claro que um dos desafios dos anos 70 será controlar a fertilidade do mundo" (George Bush, Henry Kissinger e outros. Implications of Worldwide Population Growthfor U. S. Securityand Overseas Interest).

As invenções tecnológicas, orientadas pelos interesses e pelo poder econômico industrial-financeiro, são opções de classe, perpassadas por uma determinada maneira de se relacionar e entender a natureza e as relações entre os homens. No campo da procriação, a escalada obsessiva das pesquisas biomédicas, desenvolvidas e mantidas pelo complexo médico-farmacêutico, caminham no sentido da crescente industrialização das funções biossociais da mulher. Já "oferecem" no mercado da fertilidade a possibilidade da "fecundação in vitro" (FIV), onde a fecundação pode ser feita fora do corpo humano, de forma assexuada, através de sofisticadas técnicas de engenharia genética e da alteração dos ciclos da ovulação. Quem define essas prioridades? Qual o sentido dessas pesquisas? Quais os valores éticos presentes em todo o processo? Inspiradas em uma forma de pensar e conceber o corpo (e toda a realidade humana) como um conjunto de partes fragmentadas e independentes entre si, não vêem o nexo vital interno e externo ao organismo formado por uma sofisticada teia de órgãos, ciclos, ritmos, canais e mensagens que buscam um equilíbrio dinâmico e uma cooperação. Não concebem sua conexão com a vida social e meio ambiente cultural dos indivíduos e com toda a espécie humana. Não entendem esse equilíbrio como a base de onde emergem a saúde física e mental do ser humano. Na base desse invento está a crença de que Trompas de Falópio são descartáveis e servem "apenas" para realizar a fecundação. Até ignoram os "arrependimentos". Se quiserem ter mais filhos, as mulheres poderão recorrer à FIV. Nada dizem sobre as seqüelas, riscos, eficácia da técnica, custo, interesses em jogo. Não estão preocupados com a assistência primária à saúde da mulher, inexistente nos países subdesenvolvidos.

No âmbito da Economia, a civilização industrial se caracteriza por criar e gerenciar novas necessidades de consumo de acordo com a relação custos/benefícios e a lucratividade. A oferta acaba criando a demanda. Novos e sofisticados serviços são oferecidos para quem pode pagar ou tem subsídios. Essa é a economia de mercado - base ideológica do liberalismo.

A partir dessa visão, fundos internacionais se organizam com capital dos empresários e governos interessados em investimentos lucrativos via controle da população produção de tecnologias de reprodução, artefatos anticoncepcionais químicos, até imunológicos e esterilizações cirúrgicas.

O argumento de que as mulheres pedem a ligadura é, pois, de inspiração liberal. "Na base deste modelo está a noção de que os serviços e produtos do planejamento familiar, como qualquer mercadoria, circulam livremente num mercado sujeito às leis da oferta e procura, que são adquiridos voluntariamente por consumidores que agem com base em suas preferências pessoais e que as escolhas feitas pelos consumidores são sempre a verdadeira expressão de seus desejos (...). Em diversos graus e modos, mulheres em diferentes países, ocupações, classes, raças, idades e situações conjugais encontram suas decisões reprodutivas estruturadas por um conjunto de condições sobre as quais têm muito pouco controle" (Carmem Barroso, Esterilização Feminina: Liberdade e Opressão).

É sempre bom lembrar que o Brasil é uma economia em subdesenvolvimento. Milhões de brasileiros não têm sequer o poder de adquirir os bens necessários para satisfazer suas reais demandas, sendo a população negra a mais atingida. Não adquiriram ainda o direito de existir! Ainda que esteja crescendo a participação feminina no mercado de emprego e na escolaridade, as mulheres são mais excluídas do acesso à escola, à saúde, ao poder político e ao mercado de emprego, são marginalizadas e ainda se sobrecarregam com as tarefas de cuidado das crianças, sem que o homem tenha responsabilidade sobre o processo da procriação e da reprodução social. Com todo esse ônus, a mulher vive numa visível privação como trabalhadora e cidadã.

Mas, afinal, o que querem as mulheres que buscam a esterilização? Se a manifestação de todos os seus desejos e vontades não são ouvidas, por que só há ouvidos para a sua vontade de ligar as trompas? Mais um ônus para sua carga existencial? Não será irresponsabilidade ética instituir nesse caso a ligadura como um costume? O que dizer sobre o exercício do direito individual independente das condições culturais, materiais e éticas de uma nação e do contexto mundial?

Grupos feministas e serviços de saúde voltados para a escuta da fala das mulheres sobre suas experiências de maternidade e de sexualidade, compreendem este processo de forma muita mais complexa.

Nesse terreno da sexualidade, povoado de desejos e de pulsões, aparecem ambigüidades e imprecisões. Ouvir a fala das mulheres é captar mensagens, mesmo cifradas. O desejo é cercado de mistérios, coisas escondidas, mecanismos inconscientes. No discurso aparecem insatisfações na relação sexual, irresponsabilidade do parceiro quanto à sua própria fertilidade, desconhecimento do corpo. Aparecem cansaços, subestimas e uma sobrecarga existencial na vivência do papel de mãe. Aparece uma vida material difícil. É daí que surge a vontade, como uma estratégia de recusa, expressa num "querer se livrar", ora de um lugar de opressão, ora de uma força natural que se quer dominar, dentro do mais puro paradigma da modernidade. É possível falar de um ato puro da vontade?

Podemos até dizer que este ato também significa uma denúncia e uma tentativa de legítima defesa de uma situação e de um papel social de mãe não mais desejado a não ser de forma compartilhada. Mas, também não significaria uma renúncia à sua integridade como mulher? Que conseqüências esse fenômeno da esterilização de massa estaria provocando a nível das próximas gerações e no inconsciente e comportamento da espécie humana? Consideramos necessária a reflexão quanto às representações que as mulheres fazem do seu corpo no momento da decisão por ligadura visando compreender a extensa manipulação do imaginário feminino. Podemos supor que tais operações simbólico-ideológicas reproduzem a imagem patriarcal de corpo feminino reprodutor e disponível para a expropriação.

Planejamento familiar e desenvolvimento

Quem são os responsáveis pela manutenção de um sistema econômico e produtivo que nunca levou em conta sua compatibilidade com a justiça social, com a questão da cidadania e com a ecologia? As desigualdades sociais - expressas nos bilhões de habitantes do planeta vivendo na pobreza ou na miséria absoluta, na violência urbana e interpessoal e nos altos níveis de deterioração do meio ambiente e da saúde, chamam a atenção de teóricos e políticos de todas as coerentes de pensamento.

Colocaremos aqui algumas de nossas preocupações neste debate que hoje mobiliza uma Conferência Mundial, em 1992, no Rio de Janeiro, e abriga uma diversidade de abordagens acerca de problemas tidos como fundamentais: alimentos, energia e população. Nos preocupamos especialmente com aquelas abordagens que ignoram o problema da exploração e dominação entre países, classes, raças e sexos, concebendo o progresso de uns à custa do retrocesso de outros. Para estes, as ações propostas são apenas dirigidas à contenção do crescimento populacional, reduzindo a complexidade social a uma simples variável - a fertilidade feminina.

Quando falamos de população, estamos falando da humanidade, compreendida em suas dimensões de sexo, raça e estratificação social; estamos falando de uma humanidade em permanente tensão e luta para colocar seus desejos no mundo e não de um número que apenas indica a imagem exterior dos fatos.

O temor dos dirigentes e capitalistas quanto ao limite dos recursos naturais e da produção de energia, e à crise alimentar, são temores relativos ao seu próprio abastecimento de alimentos, capitais e recursos naturais! Fazem-se de cegos e surdos diante do limite imposto pela desigualdade social expressa pela concentração da propriedade e do poder de decisão sobre o que, como e para quem produzir. Não vêem o nexo vital entre a reprodução como criação e manutenção da vida.

Qualquer estudioso da ecologia, comprometido com a verdade, sabe que a justiça social é uma pré-condição do desenvolvimento e do equilíbrio ecológico. Porém, nas relações internacionais, nas negociações e imposições diplomáticas do capital, repete-se a mesma ladainha aos povos e governos dos países subdesenvolvidos: Controlem suas mulheres em idade fértil com mais rigor.

Assim, tratando os problemas de forma não-integrada, promovem conferências mundiais sobre população e meio ambiente, viabilizam programas em países subdesenvolvidos com seus aliados nos governos, universidades e organizações não-governamentais de planejamento familiar. Governos do Norte, grandes corporações e o aparato médico-industrial movimentam investimentos maciços para o controle do nascimento das populações dos países subdesenvolvidos.

Ao mesmo tempo, campanhas pró-natalidade são empreendidas nos países do Norte com uma população e densidade demográfica até vinte vezes maior do que a do Brasil.

Feministas entraram neste debate denunciando a obsessiva corrida anticonceptiva que invade a fertilidade humana mantendo uma relação de poder desigual entre os gêneros, à custa da integridade e saúde das mulheres.

Convém, agora, insistir nos fatos e processos históricos que comprovam a perversidade desse mito do planejamento como fator de desenvolvimento.

Vejamos um pouco o caso do Brasil. Incluído nas estratégias globais de prevenção da tão temida "explosão demográfica" a partir de 1960, os programas de planejamento familiar se iniciam e se desenvolvem em pleno regime militar. O discurso oficial era pró-natalista e a política de crescimento econômico se dava de forma desigual, dependente, associando processos simultâneos de industrialização, urbanização e mecanização agrícola. A política internacional de controle populacional, liderada pelos Estados Unidos, se concretiza definindo metas populacionais, países-chave e fazendo pressão sobre líderes nacionais para aceitar as atividades de controle de fertilidade das mulheres. Na execução dessa política merece destaque o papel de entidades não-governamentais como a Internacional Planned Paredhood Federation (IPPF), cuja agente no Brasil é a Bemfam. Importa lembrar que sua instalação é feita com a intermediação do ministro do Exterior dos EUA Lincoln Gordon. Contudo, a omissão governamental foi a tônica quanto às práticas dessa entidade em relação ao respeito às mulheres e à soberania política do Brasil, onde uma ideologia controlista tomou corpo no seio mesmo das mulheres.

Documentos oficiais norte-americanos falam sobre a análise de custos e benefícios dessa política ressaltando que "quanto mais eficiente podem ser os gastos em controle populacional em comparação ao aumento da produção através de inversões diretas em projeto de energia e irrigação e fábricas adicionais (...) sob o ponto de vista dos interesses norte-americanos" (George Bush, Henri Kissinger e outros). É transparente o objetivo de promover o subdesenvolvimento nos países estratégicos ao mesmo tempo em que se contém os nascimentos.

A título de exemplo, o plano Porto Rico - 2020 prevê uma redução de sua população através da esterilização e da migração forçada com o objetivo de construir um anel de bases militares ao lado de indústrias altamente poluidoras para processar produtos farmacêuticos, minérios e óleo. O que interessa ali é apenas o solo e uma mão-de-obra devidamente qualificada. Os porto-riquenhos são concebidos como variáveis programáveis e a pretensão subjacente é o ,desaparecimento de um povo autônomo.

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Na década de 70, no Brasil, a ilusão do progresso econômico levou a uma concentração urbana sem que fatores estruturais de desenvolvimento, como a estrutura agrária, o perfil industrial e a oferta de serviços e equipamentos urbanos, fossem alterados. O caráter "abrupto e dependente" da industrialização no Brasil deixou seqüelas profundas na vida da população. Nesse contexto, a divisão patriarcal do trabalho, dentro da conexão internacional de acumulação capitalista, remete as mulheres do meio agrário a lugares de qualificação desvalorizada, embora sejam necessárias à produção e aos serviços urbanos. As tarefas da reprodução social continuam sob sua responsabilidade, sem uma mudança no papel social do homem e sem serviços públicos urbanos adequados. A complexidade de todo este processo ainda está por ser compreendida. O fato é que a população feminina, mesmo nos extratos mais pobres, passou a representar um potencial subjetivo de aceitação dos artefatos contraceptivos oferecidos sem que se levasse em conta sua situação cultural em geral subordinada ao saber médico. Sem dúvida, os artefatos anticonceptivos possibilitaram o desaparecimento da inexorabilidade da conseqüência da gravidez na vivência da sexualidade feminina. Porém, "no íntimo das usuárias de meios anticoncepcionais, parece continuar agindo com intensidade um imaginário relativo ao desejo de ter filhos" (Alisa Del Re, Práticas Políticas e Binômios Teóricos no Feminismo Contemporâneo). Práticas anticonceptivas, esterilizações e cesarianas passaram a ser adotadas pela classe dominante mas, não surpreende que a prática da esterilização tenha se disseminado, principalmente, nas regiões mais pobres, onde eram maiores os apelos para a redução da prole, mais enraizadas as práticas clientelistas e menos eficazes os controles institucionais. A nova geração já nascia sob uma outra ordem social e econômica, vendo mudanças na representação da maternidade e nos valores relativos ao papel social da mulher. Em relação à esterilização trata-se de uma mudança nos valores que estão na base da formação da identidade feminina, até então ancorada, primordialmente, no papel da mulher como mãe.

Alguns dados ilustram esse complexo processo de transformação social: Entre 1970 e 1980 observa-se uma queda brusca (25%) das taxas de fecundidade que se acentuou no momento seguinte, entre 1980/84 (19% em apenas 4 anos!). "Em vinte anos a taxa de fertilidade no Brasil baixou em 50 %, o fato que levou pelo menos meio século para ocorrer na Europa" (Sonia Correa, Os direitos reprodutivos no contexto da transição demográfica brasileira). O crescimento populacional por sua vez caiu de 2,9% ao ano em 1960 para 1,8% em 1985 (Femea. Esboço para um Relatório de População).

Nos países industrializados a transição demográfica se deu com o aumento da qualidade de vida, o nível de instrução da população em geral, qualificação e oferta de empregos.

Uma pesquisa realizada com mulheres faveladas do Rio de Janeiro indicou que o declínio da taxa de fecundidade (número de filhos por mulher) foi mais expressivo justamente no grupo mais pobre, nas famílias com renda mensal abaixo de um salário mínimo e nas classes de instrução mais baixa. Nesse mesmo extrato, 66% das mulheres em união fazem uso de algum meio para não ter mais filhos; entre as mulheres esterilizadas, a metade tinha menos de trinta anos e cerca de 27% delas ignoravam a irreversibilidade da operação.

Estes dados nos remetem à reflexão sobre o papel, a qualidade dos serviços de saúde que oferecem tais alternativas e a dimensão ética destas práticas.

Sem dúvida, os números assustam: 27% das mulheres em idade fértil, referente à PNAD 1986, estão esterilizadas, e a maioria foi esterilizada durante um parto cirúrgico. O próprio ex-Ministro da Saúde, Alceni Guerra, chegou a declarar que 25 milhões de mulheres brasileiras estão esterilizadas.

A mortalidade materna chega a 200 por 100 mil nascidos vivos, o que representa uma calamidade pública em se comparando com a situação internacional.

Quanto aos alimentos não se pode afirmar que há um déficit em relação ao número de habitantes. A América Latina aumenta sua produção de alimentos de exportação e o Brasil é o quarto maior exportador.

Porém, para o consumo interno, a produção de agrícola (como feijão, trigo, mandioca, arroz) por habitantes/ ano vem diminuindo ou se mantendo estacionária.

Estudos sobre o estado nutricional dos brasileiros mostram que a "desnutrição moderna" cresce em alguma áreas urbanas. Isso significa que parte da futura geração se mantém sobrevivente fraca fisiológica e mentalmente. Podemos supor que essa população, sem escola e sem alternativas de desenvolver sua criatividade, estará em condições políticas mais favoráveis para ser dominada? Será este o planejamento familiar oferecido com a aparência do "direito de ter" ou não ter filhos ou da "paternidade responsável"? Na verdade, não há indicadores demonstrando que as mulheres com um ou dois filhos tenham melhorado sua qualidade de vida.

A propalada escassez de terras cultiváveis omite a existência de amplas áreas ociosas, o uso desmesurado de técnicas e agrotóxicos contaminando trabalhadores, alimentos e solo e a alta concentração de terras e águas nas mãos de uma minoria. A negação da Reforma Agrária corno fator de desenvolvimento se transformou no maior obstáculo ao crescimento da produção de alimentos para consumo interno e de outros povos subdesenvolvidos.

O relatório oficial brasileiro para a Conferência de Meio Ambiente em 1992 declara que não há explosão demográfica no Brasil, mas que o problema populacional é uma questão de concentração urbana, sem se referir à concentração de propriedade de terras e de capital. Baseia sua assertiva na taxa de fecundidade pequena que o país alcançou e na queda da taxa de crescimento populacional com tendência decrescente. Porém, não se refere às perdas relativas à vida e saúde das mulheres e à estratégia internacional que caracteriza o contexto político em que tal fato se processou.

O que se quer destacar é a falsidade da crença do "Planejamento familiar como fator de desenvolvimento". Na verdade, está em curso uma estratégia de subdesenvolvimento e dominação dos povos: nos últimos anoso Produto Interno Bruto per capita no Brasil está em declínio. As tentativas de aumentar este índice se limitam a fazer diminuir apenas o denominador!

Este é o produto de uma aliança internacional que envolve dirigentes, pesquisadores, parlamentares, industriais e banqueiros do mundo desenvolvido e em subdesenvolvimento, favorecidos por uma demanda das mulheres pela regulação de sua fertilidade. Afinal, quem é responsável por essa desigualdade social?

Que conceito de desenvolvimento está sendo usado pelos propagandistas deste mito? A linguagem oficial ecológica fala em desenvolvimento sustentado. Um novo mito estará sendo engendrado? Desenvolvimento para quem? Sustentado por quem? Para nós, desenvolvimento se faz com justiça social, respeito às diferenças, respeito ao meio ambiente, liberdade de aprendizagem para toda a humanidade e reorientação em bases éticas do que produzir, como e para quem.

Lembramos que o poder de agir e nossa capacidade e vocação para a transformação permanente tem sempre uma dimensão da responsabilidade pessoal. Se estamos preocupadas com a existência da humanidade em toda sua diversidade e com a distribuição justa de terras, recursos e poder político temos a responsabilidade ética de conter a propagação dessas falsas polêmicas, em todas as esferas de nossa vida.

Fernanda Carneiro é pesquisadora do Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e da Ecologia Humana da Fiocruz e membro do Fórum Contra a Esterilização de Massa do RJ.

Jurema Werneck é militante do Centro de Articulação da População Marginalizada- CEAP.

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