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O projeto de reforma agrária do Governo Paralelo é equivocado. Neutraliza a identidade social dos sujeitos da luta pela terra e reduz a uma categoria amorfa toda a riqueza

O tema da reforma agrária é um dos muitos que estão a exigir esforços de renovação por parte do pensamento político progressista. A análise dos descaminhos do projeto de reforma agrária pelo recente governo de transição evidencia essa necessidade e ajuda a organizar a busca de parâmetros para o equacionamento da questão agrária brasileira. Definido como uma das prioridades da frente partidária que viabilizou a transição democrática, este projeto chegou ao final dos trabalhos constituintes definitivamente debilitado, carente de uma argumentação que pudesse orientar a organização política da luta pela terra e a articulação política necessária à sua recriação como prioridade no processo de construção da democracia no país.

Em linhas gerais, o caráter perverso da trajetória do projeto político de reforma agrária pela Nova República pode ser explicado pelo anacronismo do mesmo: concebido, no bojo do debate desenvolvimentista dos anos 50, como pré-condição para o desenvolvimento econômico, o projeto reformista atravessou o período do regime militar limitado pelo caráter ambíguo do Estatuto da Terra, aprovado em 1964. Nesse estatuto, a possibilidade legal de desapropriação de terras por interesse social - grande conquista das forças progressistas - aparece ao lado da regulamentação dos princípios legais que permitiriam o desenvolvimento do que se chamava empresa rural. A reforma agrária fica implicitamente definida como algo a se realizar à margem do desenvolvimento da agricultura, ou dos processos sociais dominantes. Sem resolver esta ambiguidade, o discurso reformista adentrou os anos 80 desarmado para o enfrentamento dos interesses das forças políticas contra-reformistas - os velhos e os novos proprietários da terra fortalecidos, depois de cerca de vinte anos de protecionismo estatal, pela autoconsciência de sujeitos exclusivos do processo de desenvolvimento da agricultura brasileira. Diante da evidência de uma agricultura já desenvolvida, as forças reformistas contrapunham questões de princípios: reivindicavam a reforma agrária do Estatuto da Terra em nome da democratização do país ou da justiça social para com os "pobres do campo", os grandes perdedores do "milagre econômico" do regime militar. Não apresentavam propostas construídas a partir da análise da relação existente entre a "injustiça social" no campo e a forma pela qual vem se organizando e desenvolvendo a produção na agricultura e na economia brasileira como um todo. Por omissão, acabavam legitimando os processos sociais que reproduzem as tradicionais relações de dominação da sociedade brasileira.

Frente a essa debilidade, o discurso do empresariado rural organizado ganhou força e avançou. Nutridas, pela consciência da crise do "padrão” de desenvolvimento construído no bojo do regime militar e pelos conseqüentes desafios enfrentados no tocante a seu ingresso na chamada modernidade, as (linha suprimida) velho projeto político de reforma agrária, declarando-se portadoras da capacidade, simultaneamente, de dar continuidade ao processo de modernização da agricultura e de realizar os nobres objetivos sociais da reforma. O resultado foi a conhecida subordinação do projeto à política asseguradora do velho - e do atual - "padrão" de desenvolvimento da agricultura. Isto é, a sua consolidação enquanto "política social compensatória e não mais como alternativa viável de reorganização produtiva" (G. Martine, revista Lua Nova n° 23).

Terminados os trabalhos constituintes, restou à opinião pública - e a expressivas parcelas dos setores progressistas - a idéia de que a reforma agrária reivindicada pelos trabalhadores através de suas lutas e de seus representantes políticos é uma ameaça ou obstáculo à modernização da economia brasileira. E, aos setores comprometidos com as demandas populares, restou a tarefa de forjar as bases teóricas e práticas do que deverá ser um novo projeto político de reforma agrária, comprometido com a modernização não só da economia, mas da sociedade brasileira como um todo.

Coube ao Partido dos Trabalhadores, pela própria natureza de seus compromissos junto às lutas populares e pela necessidade de enfrentar os desafios da recente campanha presidencial, o papel de dar início a esta tarefa.

Os debates realizados pela comissão encarregada de elaborar o programa agrário do Programa de Ação do Governo (PAG) do candidato Lula representaram um avanço importante no sentido do rompimento com os velhos vícios do pensamento reformista e para a construção de uma nova estratégia política para as lutas sociais no campo.

Pode-se dizer que duas tendências já esboçadas no debate intelectual ganharam maior elaboração e se polarizaram. Partindo do diagnóstico da modernização e da eficácia econômica da agricultura brasileira, os representantes da primeira tendência afirmam a inexistência da necessidade econômica de uma reforma agrária. A seguir, reconhecendo a legitimidade da luta pela terra, propõem a reforma agrária como política social de urgência para minimizar a pobreza no campo e na cidade. Finalmente, tomam a diferenciação no campo, decorrente do processo de modernização da agricultura, como mero indicador das vertentes da intervenção estatal necessária. No texto enviado por José Graziano da Silva ao debate em questão - "Contribuição ao Programa Agrário" - são quatro essas vertentes: a dos "produtores familiares tecnificados", para os quais deve ser formulado "um programa de políticas agrícolas de cunho produtivista que se articule organicamente com a política agrária"; a do "operário rural", a ser atendido, pelo que se entende, por políticas de cunho trabalhista; a dos "pequenos camponeses semiproletários que já não mais têm um papel produtivo relevante no capitalismo agrário atual a não ser nas regiões periféricas", para os quais devem ser definidas "políticas agrícolas de cunho social"; e a do "lumpezinato", considerado " o público prioritário da proposta de reforma agrária", na qual "o acesso à terra deve ser entendido como uma condição de subsistência para aqueles que não encontram outra possibilidade de inserção produtiva na sociedade".

Essa tendência também se constrói movida pela avaliação do caráter desfavorável da atual correlação de forças políticas. Justifica sua proposta de cunho social - ou assistencialista como sendo a reforma agrária possível na presente conjuntura política. E remete o projeto de uma reforma agrária mais radical - ou orientada para a transformação da estrutura de produção no campo - para o futuro, quando os atores da luta pela terra, mais organizados e juntamente com os trabalhadores urbanos, tiverem acesso ao poder. Não atenta para a questão de como esses trabalhadores se organizarão. Não percebe que o avanço da organização política das lutas populares depende de projetos políticos capazes de articular suas demandas específicas a um projeto mais geral de sociedade.

A segunda tendência também parte do diagnóstico da modernização da agricultura brasileira. Mas entende essa modernização como resultado de um processo histórico, ou como uma forma de expansão da economia resultante do encontro de forças políticas e sociais determinadas. A seguir, considera este padrão como estando em crise e o momento atual como sendo de enfrentamento de novas - e velhas - forças políticas ou sociais para a definição de novas regras para o desenvolvimento econômico. Em termos operacionais, propõe a reforma agrária como parte de um processo mais amplo de reorganização da produção na agricultura, através do redirecionamento dos mecanismos de sustentação, por parte do Estado, do velho - e atual - padrão de produção para uma política agrícola centralmente orientada para a pequena e média produção agrícola.

Implícita nesta proposta está a idéia de que as demandas específicas das diferentes categorias sociais no campo pequeno produtor tecnificado, bóia-fria, produtores tradicionais, expropriados por barragens, posseiros, seringueiros etc. - têm seu denominador comum na forma pela qual vêm se definindo as relações sociais de produção no campo. Que o dia-a-dia das lutas dessas diferentes categorias explica as suas conquistas parciais, mas que o avanço das mesmas em termos de organização e, conseqüentemente, de participação política depende de projetos capazes de integrar suas demandas específicas a uma concepção mais geral de sociedade. Essa integração, é evidente, depende da capacidade dos analistas e das lideranças políticas de identificar as mediações existentes entre as lutas dos setores populares do campo e o padrão de agricultura - ou de economia - dominante.

Além da dificuldade de articular, o programa de reforma agrária com a totalidade dos programas que estavam sendo elaborados para o país, a comissão encarregada da tarefa enfrentava o problema das restrições impostas pela nova Constituição e da carência de análises específicas sobre as relações existentes entre os complexos agrários dominantes na agricultura e o Estado, os demais setores da economia e as condições concretas da reprodução social dos atores da luta pela terra e dos trabalhadores rurais em geral. E enfrentava, finalmente, o problema da insuficiência de análises técnicas capazes de indicar os caminhos para a viabilização econômica da pequena produção agrícola no mundo moderno. O padrão de modernização da agricultura dominante orientou também o pensamento técnico e escasseou as análises à nacionalidade econômica da pequena produção agrícola...