Política

A chancela de um projeto social-democrata, como quis a grande imprensa? Ou o cadinho de versões alardeadas pesas diversas tendências internas? Quem marcou a primeira opção está mais próximo da verdade

Diz-se que em política o que conta é a versão do fato. Assim, é explicável que cada um tente, agora, dizer o que foi o 1° Congresso do PT. Deste ponto de vista existiram três congressos relativamente independentes do que ocorreu entre 27 de novembro e 1° de dezembro de 91 no Pavilhão Vera Cruz, em São Bernardo do Campo.

O que poderíamos chamar de "processo de transição congressual", formalmente iniciado em 22 de fevereiro de 91, com cerca de nove meses de duração, mas que, na realidade, começou muito antes, no foral de 87 e continua se desenvolvendo agora.

O "congresso" feito pela imprensa, pela "grande" e, lamentavelmente, pela imprensa ligada ao PT (como o jornal Brasil Agora que, na edição da primeira quinzena de dezembro de 91, a título de "cobertura jornalística", apresentou, sem assinatura, a versão facciosa de parte de uma tendência com objetivos de luta política ao velho estilo sectário).

O congresso que começou a acontecer depois do encontro do final de novembro em São Bernardo: foi a batalha das versões, cada qual tentando "avaliar" o evento de acordo com seus interesses. Estamos, aqui, no terreno da ideologia: nas versões, o que importa, em geral, é dizer que alguém foi vitorioso enquanto seus adversários foram derrotados.

As considerações seguintes visam comentar estes três aspectos ou dimensões do 1° Congresso.

Para avaliar o Congresso é preciso considerar, inicialmente, que ele não pode ser resumido aos cinco dias que marcaram a culminância de um processo que vem se desenvolvendo há pelo menos quatro anos e que ainda vai continuar por outros tantos, até consolidar uma nova forma-partido, melhor preparada para enfrentar os grandes e inéditos desafios desta nova era da luta pelo socialismo no mundo, cuja limiar estamos atravessando.

Desde o 5º Encontro Nacional, em dezembro de 87, o PT vem colocando, de forma mais incisiva, a necessidade de definir melhor sua concepção de socialismo, de projetar os caminhos de sua construção no Brasil e no mundo e de realizar uma verdadeira revolução na sua forma de organização. O 1° Congresso, com seus nove meses de preparação, foi um momento privilegiado de enfrentamento desses grandes desafios, que, de resto, ainda permanecem colocados, exigindo a nossa auto-superação.

Para sua avaliação é necessário considerar o caráter simbólico e, portanto, mais denotativo do que conotativo das grandes polêmicas e votações ocorridas em plenário. Ou seja, nos debates sobre a ditadura do proletariado, a estratégia democrática, os 30% de mulheres na direção, as tendências e o "fora Collor", estava em disputa muito mais do que o que se explicitava nos encaminhamentos de votação. Com raras exceções, a grande imprensa que acompanhou o evento, ao não perceber isso, tomando o espírito pela letra e o alusivo pelo representado, continua desentendendo o PT. Tal não deve ocorrer, todavia, com os petiscas, sob pena de não conseguirmos tirar todas as conclusões das grandes decisões tomadas.

Para dar um exemplo deste processo, no qual o discurso dissimula o real, vamos relembrar o debate sobre as tendências. A famosa Emenda 23, que venceu por apenas 25 votos a tese-guia, num universo de quase mil votantes, propunha uma regulamentação do direito de tendência mais rígida do que a atual, coibindo a existência de frações internas. Não era uma emenda ruim, ainda que insuficiente para sinalizar a transição que, de qualquer modo, será operada a partir de agora, do partido de tendências para um partido com tendências. Neste sentido, o texto da tese-guia era melhor porquanto menos ambíguo. Na verdade, porém, o que estava em discussão não era propriamente uma nova regulamentação, mais ou menos rígida, de um direito que, afinal, ninguém quer abolir no PT.

Na votação das tendências a discussão real embutida na polêmica sobre regulamentação era a política de alianças internas, a partir da qual se constituirá o novo bloco dirigente do PT. A divisão do plenário foi esclarecedora deste significado não imediatamente perceptível: votaram na Emenda 23 fruto de acordo com a Democracia Socialista (DS), a Força Socialista e a minoria da Articulação (vanguardeada, nesta disputa, por alguns membros da Executiva Municipal de São Paulo e das Regionais de São Paulo e Rio de Janeiro, contando com o empenho de vários secretários-gerais).

A Emenda 23 tem como proposta lançar uma ponte em direção à ortodoxia sob a justificativa da governabilidade, isto é, da capacidade de um grupo continuar comandando o partido, mantendo-se no centro, como árbitro, para "administrar" ortodoxos e renovadores ao velho estilo tancrediano: "Uma no cravo, outra na ferradura". No fundo, a escolha da Convergência Socialista como inimigo principal foi um pretexto para desviar a atenção do objeto do debate.

O 1° Congresso discutiu uma nova regulamentação do direito de tendência não por causa da Convergência, uma vez que a velha regulamentação dava conta de "enquadrar" esta tendência e, no limite, até mesmo concedia poderes ao Diretório Nacional para excluir do partido seus integrantes.

A questão das tendências foi rediscutida justamente porque aquelas que até então compunham 80% das direções (Articulação, Vertente Socialista, Democracia Socialista, Nova Esquerda, Força Socialista e Movimento por uma Tendência Marxista) é que impunham (e em certa medida ainda impõem, embora algumas delas estejam em processo de dissolução como a VS e a NE) uma velha dinâmica fracional à vida partidária, e não as minoritárias frações explícitas (como a CS e O Trabalho). "O inimigo é a Convergência" constituiu-se como um argumento do tipo "o culpado é o judeu", como, aliás, já havia percebido Valério Arcary.

Fim de um ciclo

Afortunadamente, a maioria da Articulação, juntamente com os adeptos de "Um projeto para o Brasil", ao praticamente empatar a votação, deu um sinal inequívoco a todo o partido de que é preciso mudar de verdade, reconstruindo o PT como um partido democrático para todos os filiados e para a sociedade e não apenas para atender interesses dos grupos organizados em seu interior. De sorte que, independentemente do resultado desta votação, o l° Congresso marcou, simbolicamente, o fim do ciclo do partido organizado por tendências.

No que tange aos outros temas do debate - notadamente o socialismo - as votações também foram simbólicas, sinalizando, na maior parte das vezes, um caminho que ainda deve ser percorrido, ou melhor, construído. A exceção fica por conta da reorganização do partido. Em termos orgânicos o 1º Congresso mudou efetivamente o PT. Só para dar uma pequena mostra: foi abolida a estrutura baseada em diretórios e executivas, instituiu-se o princípio da rotatividade nas direções e a obrigatoriedade das consultas amplas a todos os filiados nas decisões importantes.

Aprovou-se a cota mínima de 30% de mulheres nas direções, implodiu-se a visão do núcleo de base como célula de intervenção e, por último, modificou-se (ainda que insuficientemente, como vimos) a regulamentação do direito de tendência. Além disso, o 1° Congresso introduziu a dimensão setorial e temática na organização partidária, antes baseada exclusivamente no território; determinou que estados e grandes municípios mantenham publicações informativas regulares (seguindo o exemplo do bem-sucedido Linha Direta de São Paulo).

Com tais deliberações, o PT se torna o primeiro partido político brasileiro que rompe integralmente com o estatuto padrão imposto pela antiga legislação partidária. E, muito mais do que isto, se torna o primeiro grande partido de esquerda no mundo que começa a romper com a estrutura piramidal de organização, baseada no fluxo comando- execução, ou seja, que tem a coragem de abandonar o modelo leninista de partido que foi exportado em série pela III Internacional.

A maioria dos petistas não sabe ainda que tudo isto foi aprovado, uma vez que grande parte destas modificações, constando da tese-guia de Reorganização Partidária, não mereceram destaque nas grupos ou, quando sofreram emendas, estas não foram priorizadas pela comissão de negociação e, assim, não emergiram na plenária. Evidentemente, como a tese-guia foi escolhida por voto direto e secreto, sem prejuízo de emendas, tudo isto está rigorosamente aprovado. O que apenas confirma nosso objetivo, já enunciado desde 87, no 5º Encontro Nacional, de realizar uma verdadeira revolução na forma de organização do PT.

Não constitui novidade para ninguém o tratamento que a chamada grande imprensa dá, em geral, aos eventos petiscas. No caso do 1° Congresso, a imprensa, de certa forma, "construiu" um outro congresso a partir das suas expectativas em relação ao evento. A Folha de S. Paulo, na sua "cobertura" final comportou-se mais como uma organização pára-partidária - talvez tentando imitar algumas congêneres dos Estados Unidos - do que como um órgão informativo. A Folha defendeu uma "tese" no 1° Congresso. E independentemente do resultado das votações manteve a sua "tese": o PT teria que virar social-democrata, como de fato virou... em suas páginas!

A novidade aqui foi o tratamento que a imprensa partidária, no caso o jornal Brasil Agora, deu ao Congresso, em especial na sua quinta edição, na matéria "O PT contra o baixo astral".

O que deveria ser uma reportagem, fruto do trabalho conjunto de sete jornalistas, como está registrado ao final do texto, é, na verdade, um artigo opinativo, tendencioso, parcial e factualmente incorreto em vários pontos, sobre o que aconteceu no 1° Congresso. E, o que é mais grave, o texto, escrito na forma de diário, não é assinado por ninguém, dando a impressão de que se trata de uma visão, pelo menos oficiosa, do PT acerca do seu Congresso.

Não se pode aceitar a justificativa de que o jornal não é órgão oficial do partido, mantendo independência e relativa autonomia perante seus organismos. Brasil Agora é mantido pelo PT, que já verteu mais de 70 mil dólares na implementação e sustentação de seus seis ou sete números e agora está sendo chamado a repassar mais outros milhares de dólares para garantir a continuidade da publicação. Além disso, existe um responsável pelo jornal perante a Comissão Executiva Nacional, e seu editor também pertence ao Diretório Nacional.

Quem examinar com atenção a referida matéria se surpreenderá com a evidência de que se trata de um artigo de luta interna, com interpretações particulares sobre as articulações de tendências ocorridas nos bastidores do 1° Congresso. Isso num veículo que, por definição, se dirige a um público mais amplo do que a militância petista. Sob o pretexto de restabelecer a verdade dos fatos, deturpada pela grande imprensa, o articulista - que, relembre-se, não assina seu artigo - apresenta uma versão particular como se fosse a verdadeira. Tudo feito a cores, nas páginas centrais de um jornal sustentado e mantido a duras penas pelo PT, sem que se tenha dado oportunidade à publicação de outras visões petistas.

O "terceiro congresso" é aquele constituído pela disputa das versões emitidas pelos agrupamentos que ainda ditam a dinâmica interna do partido.

A batalha das versões

Inicialmente, é justo reconhecer o papel decisivo da Articulação nas definições tomadas pelo partido após o 5º Encontro Nacional, que marca o início do processo de transição congressual.

Em certo sentido, quem "salvou" o PT da ossificação ortodoxa a que o levariam, provavelmente, os agrupamentos de inspiração marxista-leninista, foi a Articulação. Sem ela jamais teríamos iniciado a transição congressual lançando as bases para uma mudança radical da estrutura e do funcionamento partidário, nem teríamos conseguido exorcizar o velho fantasma da "ditadura do proletariado" como referencial- histórico e teórico da prática revolucionária.

Por certo, a tendência Articulação - como uma espécie de sociedade civil dentro do PT - teve um desenvolvimento contraditório. Dentro dela, por exemplo, os que mais resistiam à negação do conceito de "ditadura do proletariado" eram os que mais insistiam em dizer que o PT jamais adotou ou trabalhou com tal referência.

Contraditoriamente também, quando tudo apontava para urna dissolução progressiva da Articulação no 1° Congresso, houve uma rearticulação acelerada desta tendência. Nos nove meses que antecederam o encontro, ela realizou mais reuniões e outras ações organizativas do que nos últimos três anos. Contribuiu para esta rearticulação o surgimento da tese "Um projeto para o Brasil", que cresceu em representatividade social e política a um nível jamais alcançado por outro setor petista, com exceção da tendência majoritária. Evidentemente este crescimento não se refletiu no plano orgânico, vez que os signatários desta tese não tinham muitas raízes no aparelho partidário nem pretendiam organizar um agrupamento centralizado ou com características mais permanentes.

Mesmo não tendo se dissolvido, em inadequada observância ao esgotamento do seu ciclo histórico, a Articulação cumpriu um papel fundamental até agora. Daqui para frente, porém, entramos em nova fase. Tal corno as demais tendências, a Articulação poderá sobreviver, para garantir interesses regionais, grupais e, também, pessoais. Mas remanescerá sem "alma", remando contra a maré, se não se der conta de que a crise é mais profunda porque diz respeito ao esgotamento histórico de um modelo de luta política e mesmo de uma determinada concepção de política como arte de guerra e como atividade reflexa dos movimentos ocorridos na base econômica da sociedade.

Dentro da Articulação, e também da DS, inicia-se agora uma outra grande batalha, para além daquela das versões: os que perderam terreno na disputa pelas concepções tentarão recobrar sua influência na disputa pelo aparelho. O que indica que, até pelo menos o início de julho, quando realizaremos um outro encontro, desta vez para renovar a direção nacional e aprovar o Regimento Interno que normatiza a nova estrutura partidária, a luta interna, infelizmente, pode de novo se acirrar.

É importante analisar a DS, menos pelo seu peso no aparelho partidário (relativamente reduzido), e por sua importância política (vez que se trata de uma tendência quase sem representatividade social em termos nacionais) do que pelo papel que cumpre no jogo político interno ao partido e, inclusive, à própria Articulação.

A diferença entre a DS e as demais tendências trotskistas é muito clara: enquanto estas últimas querem construir um partido operário revolucionário no PT ou a partir do espaço aberto pelo PT, a DS quer transformar o PT na DS. Quer ganhar "por dentro". Por isto, é verdade, ela constrói efetivamente o PT, não podendo ser excluída de nenhuma aliança interna de governabilidade. Mas, também é verdade, a DS não hesita em abandonar seus aliados programáticos da ortodoxia ao menor aceno da maioria. Porque acalenta o velho sonho de ser conselheira da maioria, imaginando que um dia vai ganhar esta maioria e, efetivamente, dirigir o partido. Com tais objetivos e tal comportamento, ela flexibiliza demais sua espinha dorsal e passa a ser urna corrente com caráter, digamos, pouco firme, o que já não ocorre com tendências mais novas porém mais definidas, como é o caso do MTM. A DS é a tendência que, objetivamente, cumpre hoje o papel mais conservador no PT. Tem que manter a velha maioria porque senão vai ser conselheira de quem? A regulamentação aprovada no 1 ° Congresso por setores da Articulação em acordo com a DS acabou, de certa maneira, prolongando sua sobrevida. Como a tendência mais adaptativa que já surgiu no PT, a DS não terá problemas, do ponto de vista formal, com a nova regulamentação. O SU (Secretariado Unificado da chamada IV Internacional, de inspiração trotskista, ao qual se alinha) facilmente aceitará manter um "regime especial" de relacionamento com a DS, onde a contato político informal substitua o vínculo orgânico explicito.

No campo da ortodoxia mais fiel aos seus compromissos programáticos observa-se que os "cavaleiros da tradição" saíram-se relativamente bem no 1° Congresso, provando que há um espaço (e um tempo) para sua existência (embora cada vez mais residual). Afinal, enquanto ainda existe, em certas partes do mundo, o protagonismo de partidos como os PCCs (chinês e cubano) e, aqui no Brasil, coisas como o PC do B, é sinal de que velhos "complexos ideológicos" da esquerda autoritária resistem ao sopro da mudança e continuam, como diria Marx, "oprimindo como um pesadelo o cérebro dos vivos". Refiro-me aqui àqueles que se agregaram, nos últimos meses, à cruzada "Em defesa do Marxismo".

Finalmente, chegamos às frações explícitas - a CS e O Trabalho -sobre as quais muito se tem comentado, inclusive para encobrir as características de fração de outras tendências consideradas "mais petistas".

O papel desempenhado por estes agrupamentos trotskistas tradicionais no 1° Congresso foi, no mínimo, pouco inteligente. Conseguiram constituir-se como alvo principal, inclusive para os ataques da ortodoxia, livrando esta última de um desfavorável confronto de concepções com a maioria do encontro. É óbvio que estas organizações, sobretudo a Convergência Socialista, não se adaptarão à nova estrutura partidária emergente do 1° Congresso. A única atitude que o partido pode tomar, para não desmoralizar-se, é fazer cumprir as resoluções do encontro, imediatamente, antes da escolha das candidaturas de 92. Ironicamente, assistiremos às tendências "mais revolucionárias" do PT brigando por vagas para disputar cadeiras no parlamento burguês. O que não chega a ser uma grande novidade entre nós: nos últimos anos toda essa conversa de revolução acaba sempre numa eleição.

Apesar de todas as limitações da transição congressual que, como vimos, está longe de ser linear e sempre progressiva, o saldo político-organizativo deste processo tem sido bastante positivo.

O grande problema que se coloca daqui pra frente é o da continuidade. Os setores renovadores, que até agora impulsionaram as mudanças no partido, não têm demonstrado muita disposição para assumir responsabilidades orgânicas - e isso diz respeito tanto aos que se alinharam em torno da tese "Um projeto para o Brasil" quanto aos chamados heterodoxos da Articulação (com exceções em ambos os casos). Contrariados, com certa razão, com a velha dinâmica de luta interna, estes setores muitas vezes preferem não enfrentar a disputa política: não articulam, não põem a cabeça de fora. No caso de vários signatários da tese "Um projeto para o Brasil" existe ceticismo misturado à preguiça; falta de tesão pela militância e, sobretudo, pouco trabalho dentro do PT. De sorte que o partido acaba ficando, mais uma vez, nas mãos daqueles quadros que se especializaram na gestão do aparelho e daqueles que têm apetite pelo poder.

Este é o grande desafio que temos pela frente: realizar, no funcionamento cotidiano do partido, aquele movimento que já foi feito pela transição congressual no plano das concepções e na mudança da estrutura formal do PT. O que exige disposição de trabalho, coragem para enfrentar situações adversas e vontade política para articular um novo bloco dirigente no partido.

Augusto de Franco é membro da Executiva Nacional do PT.