Jaguaquara, Janduís, Icapuí. A toca da onça, a ema pequena e veloz, a canoa ligeira. As três cidades que o PT administra na Bahia, Rio Grande do Norte e Ceará vão bem, obrigado.
E funcionam como uma grande vitrine, numa região do país onde os números que vemos nas estatísticas se materializam em realidade violenta: fome, sede e o eterno ranger de dentes de quem acorda pronto para sobreviver mais um dia.
Em Jaguaquara, Icapuí e Janduís já se ensaia viver, apenas. Viver o minguado. Mas, de qualquer forma, avançar este sinal vermelho que o país dá a quem busca alguma dignidade.
Nelas, o PT tem amplas chances de vitória nas próximas eleições municipais. Os coronéis, pilares do poder no Nordeste, têm a sensação de ver escorrer pelos vãos dos dedos o que sempre foi extensão de suas casas. E, o que é pior, uma tênue noção de cidadania já corre de boca em boca. Há uma grande voracidade pelo que parece ser o "novo''.
Longe do perfil que carimba o PT em outros lugares, ali o partido se ergueu junto, senão depois, das administrações. Delas herdou alguns vícios. E cresce muito mais pela imagem que suscita do que pelo avanço da organização popular. Armadilhas do subjetivo. Ao olhar fotográfico da metrópole, certamente este não é o PT que botamos no papel em um sem-número de documentos. Mas funciona. Está desenhando uma outra realidade neste incansável devorador de verbas oficiais que é o Nordeste dos coronéis.
Percorridas as três cidades, fica a sensação de que o resto também tem jeito. Afinal, elas sustentam a "revolução" quase sós, com alguns parcos tostões dos governos federal e estaduais. E empolgam a vizinhança, curiosa, que já quer conhecer de perto este tal PT.
Na mira da ONU
O povoado de Icapuí surgiu em meados do século passado na divisa entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, quando portugueses e holandeses, que praticavam a pesca e a agricultura de subsistência se estabeleceram por ali. Encravado sobre uma falésia entre dunas e a serra, circundado por carnaúbas, tem uma paisagem digna de cartão postal em seus 420 quilômetros de área. O que os colonizadores não sabiam é que, além da beleza, a borda da Bacia Potiguar, onde está assentada a cidade, é uma região rica em petróleo. E a lagosta, comercializada a partir de 1958, é abundante.
Apesar da relativa independência econômica, Icapuí só virou cidade depois de 85, quando se emancipou de Aracati, cidade com 60 mil habitantes, a principal da região e remanescente do Brasil colônia. No vale do baixo Jaguaribe, Aracati é dominada por uma oligarquia que foi se revezando no poder desde o século 18, quando passavam por seu porto couro e charque vindos do interior do Ceará, Rio Grande do Norte e Maranhão.
Desde o ano passado, Icapuí deixou de ser mais uma pequena cidade no litoral cearense. Sob a administração do petista Dedé Teixeira, virou a única cidade brasileira agraciada com o prêmio Paz e Liberdade da Unicef, órgão que se dedica ao estudo de soluções para os problemas das crianças na Organização das Nações Unidas. Ganhou também uma relação privilegiada com o governador Ciro Gomes (PSDB) e o respeito das cidades vizinhas.
Os motivos que impressionaram os observadores da Unicef não estão em nenhum programa mirabolante, como os Ciacs de Collor ou os Cieps de Brizola. Estão no cotidiano da cidade. E saltam aos olhos de quem chega de fora.
O caminho do velho e barulhento ônibus que sai toda manhã da rodoviária de Fortaleza é uma via-crúcis pela pobreza. A cultura - falida - do caju se estende ao longo dos 195 quilômetros de asfalto que separam Icapuí da capital. Em cada povoado o velho Scania cumpre o preguiçoso ritual de recolher e deixar passageiros. Em cada parada, uma pequena multidão de crianças invade o ônibus com frutas, doces e castanhas. Quase ninguém compra.
Quando o ônibus se vai, o que fica é muito parecido com o México dos desenhos animados: a hora da sesta, a magreza, os olhos grandes. E tudo parece amarelo.
Icapuí se rebela neste cenário. Da entrada da cidade se vê o mar, alguns poços de petróleo e nenhum pedinte. Esta feliz "coincidência" é responsável pelo "milagre". A cidade tem uma economia diversificada: há exploração de petróleo, extração de sal, pesca da lagosta, artesanato em renda - o "labirinto" é famoso em todo o Nordeste e algum comércio. As monoculturas, como a da cana, que já foi predominante na região, nunca fizeram muito sucesso por lá.
Em termos de arrecadação, Icapuí está fora da média dos municípios nordestinos. A venda da lagosta para os frigoríficos, que exportam a maioria do produto para os EUA, movimenta grande parte do ICMS, que representa cerca de 20% do orçamento. Outros 10% da receita são resultado do pagamento de royalties, a título de indenização, pela Petrobrás. Este dinheiro é considerado receita vinculada, ou seja, deve, por lei, ser aplicado em eletrificação rural e obras de saneamento básico. O resto vem do Fundo de Participação dos Municípios.
Nasce o Tertius
A campanha pela emancipação do distrito de Icapuí uniu interesses distintos: um grupo de estudantes da Universidade Federal do Ceará, núcleo da atual administração, uma parcela da "elite" local e os moradores mais ou menos organizados das comunidades pesqueiras.
A família Cirilo funcionou até meados de 80 como extensão do domínio da oligarquia dos Costa Lima, hoje representada pelo "coronel" Abelardo - uma espécie de Sinhozinho Malta local. Por trás do chacoalhar de suas pulseiras há um império que inclui terras, veículos de comunicação e, é claro, poder político. O atual prefeito da vizinha Aracati, Cleber Gondim, é "afilhado" de Abelardo Costa Lima. Com a máquina de um município, os Cirilo poderiam barganhar mais alto o apoio oferecido.
Já as comunidades pesqueiras viviam esquecidas pela Prefeitura de Aracati. Para se ter uma idéia, a primeira escola municipal da comunidade de Redonda, que tem 1.200 habitantes, apareceu depois que os próprios pescadores construíram um quartinho destinado às aulas. A organização dos moradores começou a partir da Igreja Católica, exigindo a instalação de serviços públicos básicos - água potável, calçamento de estradas, postos de saúde e escolas de 1º grau.
Os "estudantes" queriam mudar o mundo. Com a idéia de emancipação e rompimento, com o coronelismo enfiada no saco, eles percorreram as comunidades, reunindo pescadores e discutindo a emancipação e alguma direção para a futura Prefeitura. Acabaram levando as eleições, pelo PMDB, com José Airton Cirilo, engenheiro recém-formado, à frente. "Quando o PMDB tinha algum compromisso com as lutas populares", justifica Zé Airton.
Esta união durou pouco - o suficiente para que a família do prefeito percebesse que o rumo da administração não era exatamente o que tinha sonhado. Sobriedade com o dinheiro, obras de interesse social e investimento em saúde e educação são exceções no Nordeste. Principalmente quando o poder público presta os serviços sem exigir a presença de um vereador, de um cabo eleitoral, ou de alguém que vá cobrar depois, na urna, o "favor" realizado.
Rompida a aliança, a briga foi boa. Com requintes de roteiro de novela das oito. Assim que decidiu ingressar no PT, José Airton foi isolado pela família. Numa cidade pequena, onde as pessoas se cumprimentam pelo nome, isso não é algo menor. Mal pôde ir ao enterro do pai e sofreu pelo menos um atentado, até hoje não apurado, atribuído aos próprios familiares - "minha família é mais brava que siri em lata", brinca Airton.
Nesta época, as carências da cidade eram enormes. Não havia o mínimo de infra-estrutura e a grande obra era a instalação dos chafarizes - bombas que puxam a água do lençol freático à superfície. Sem eles, quem queria água potável tinha que caminhar até um quilômetro com a famosa lata d'água na cabeça. Foram construídas as primeiras escolas e uma rede de atendimento na área da saúde. O acesso, ainda que tímido, a estes serviços básicos era o "novo". Serviu de marca para a campanha eleitoral de 88.
Para a sucessão foi escolhido "seu" Gabriel, candidato pelo PT, com um plano de governo que elegia como prioridade a conquista da cidadania. A idéia era descentralizar os serviços, civilizar o processo eleitoral e discutir política com a população razoavelmente organizada.
Mas o clima de "faroeste macarrão" dominou a campanha. Ameaças de morte e agressões de todo o tipo levaram "seu" Gabriel três vezes ao hospital - em todas elas o médico anotou: princípio de infarto. Na última, a recomendação foi tácita, desistência ou morte. "A barra foi muito pesada", lembra Francisco José Teixeira, o Dedé, vice que virou candidato eleito.
Mal colocou os pés na Prefeitura, Dedé Teixeira foi cassado pela Câmara Municipal. A denúncia formulada pela oposição, uso da máquina administrativa, que configuraria abuso de poder econômico, serviu de justificativa. O prefeito eleito apelou ao Tribunal de Contas do Estado, que julgou improcedente a acusação e confirmou Dedé Teixeira no cargo.
A denúncia ganha uma saborosa ironia quando se sabe quem a fez. A oposição em Icapuí é formada por fazendeiros e alguns donos de frigoríficos. É muito comum que estes empresários, que ficam com a maior parte dos lucros da venda da lagosta para o exterior, tenham também alguns barcos. Assim, eles lidam direta ou indiretamente com uma mão-de-obra que representa cerca de metade da população economicamente ativa - 10% de toda cidade.
Em dia de eleição é freqüente entre os candidatos com razoável poder aquisitivo o patrocínio de uma outra fila à porta da seção eleitoral - a fila para pegar dinheiro. O candidato não faz muitas promessas, paga em dinheiro para não ser molestado depois.
Antonio Henrique de Souza, proprietário de três barcos e um frigorífico, conta, do alto de sua Pick-Up D20, que quer ser candidato a vereador. Pelo PT. Com uma ponta de contrariedade, repete o discurso feito na sede do partido para justificar sua filiação: "Eu ajudo muita gente com dinheiro que tiro do meu bolso. Agora quero continuar ajudando os pobres, mas com o dinheiro deles também". A "ajuda" se traduz em óculos, dentaduras, pares de botas, material de construção e dinheiro vivo.
O Diretório reconhece que este não é um caso isolado. "Por estar no governo e ter moral, o PT está sendo muito assediado para estas eleições. A gente tem discutido as filiações com mais cuidado", diz Zé Airton. Mas Antonio Henrique vai disputar uma cadeira na Câmara com a legenda do partido.
Partidão
Em Icapuí, hoje, são três os partidos: PDT, PSDB e PT. Não há espaço para os chamados "partidos tradicionais". Até o surgimento do PT, havia PDS e PMDB. Na oposição à Prefeitura os dois partidos entraram em crise. O PMDB tentou continuar e o PDS mudou de nome, virou PMB.
A sopa de letrinhas resolveu se fundir em PSDB, todos contra a prefeitura petista. Em 91, o PSDB rachou, dando cria ao PDT, que achou muito espinhoso o caminho da oposição sistemática. O discurso contra a administração começava a não colar muito bem. O PDT começou a votar com a bancada petista. Depois de receber o prêmio da ONU e os elogios rasgados do governador Ciro Gomes, a administração corre o risco de ter o apoio do PSDB.
É certo que a oposição patina e o PT cresce. Mas lcapuí não é exatamente o nirvana petista. Nas reuniões entre administração, partido e movimentos populares, não se define muito bem quem é o quê. Se alguém pergunta quem convocou a reunião, uma boa meia hora não é suficiente para esclarecimentos. Muitas vezes, tudo termina em pirão, com um "ah, é tudo a mesma coisa".
A composição do partido e da Prefeitura evidencia a fusão entre as duas instâncias. O presidente do partido foi prefeito e é candidato às próximas eleições. Todos os membros da Executiva estão no primeiro escalão, ou na Câmara Municipal. Faltam quadros. Falta oposição qualificada. E enquanto a oposição perde credibilidade e afunda nos interesses particulares de seus integrantes, o PT dita o monólogo.
Sem medo de ser PT
Assim pode se entender o que acontece na comunidade de Redonda, a 16 quilômetros da sede. Dali saiu o vice-prefeito, Francisco Bezerra Neto. Ali se decidiu a eleição de 88. Os candidatos majoritários e proporcionais do PT ganharam as eleições de 90 e Lula deu um banho em Covas e Collor, nos dois turnos. Se aparecesse por lá, o militante da Convergência Socialista que ateou fogo em uma bandeira do PT, durante a greve dos condutores em São Paulo, viraria farinha. Uma maioria impressionante se orgulha de ser petista.
Em Redonda há um centro de saúde, três escolas, um grupo de teatro de rua, um posto telefônico, alguns chafarizes, uma estrada calçada, uma fábrica comunitária de material de construção e limpeza regular da praia. O suficiente para Silvério Soares da Silva, um artesão de 70 anos que chegou em Redonda em 1924, constatar sem medo de cometer algum exagero: "menino, isso aqui hoje é igual a um Rio de Janeiro".
Dona Maria José da Silva, rendeira de 53 anos, conta que os doentes eram levados de rede até Aracati, a 45 quilômetros, onde eram atendidos, com a ajuda de algum político. "Mas era raro que algum chegasse vivo. No meio do caminho já entornava e ali mesmo era enterrado", lamenta.
O vereador Raimundo Bonfim Braga lembra que não havia escolas, água potável e a comunidade ficava isolada com as chuvas. A organização popular, através da associação de moradores, conseguiu os investimentos realizados pela Prefeitura.
Mas ele acha que a população ainda "se organiza em torno de interesses muito imediatos. A Prefeitura fez um bom trabalho na questão da educação, em saúde e deu um grande salto ao construir o frigorífico comunitário. Mas nós temos que trabalhar muito mais a questão cultural, porque a tradição política das pessoas daqui ainda é o cada um por si. Um exemplo disso é que a gente só consegue levar os pescadores para as reuniões quando há um assunto muito específico, como a briga com os pescadores potiguares que pescam com o compressor".
A pesca da lagosta em Redonda é artesanal. Os barcos ficam cerca de dez dias no mar, espalhando os manzuás uma armadilha feita de madeira - e recolhendo-os na volta. A pesca com compressor, feita pelos pescadores do Rio Grande do Norte, permite fazer em horas o que se leva dias na pesca tradicional.
Quem pesca com compressor é visto como adepto da "lei de Gerson". E o PT, na campanha eleitoral, percebeu o que havia de simbólico na pesca com compressor. Ganância de poucos, desequilíbrio ecológico e futuro ameaçado. Em um muro ainda resiste a mensagem da campanha de 88, "Contra o compressor, vote em Dedé".
O prefeito diz que o resultado desta sintonia com o imaginário popular e a nova forma de relacionamento entre prefeitura e cidadãos faz emergir outra cultura política. Ele acredita que hoje seja muito difícil administrar "sentado sobre o orçamento, entocado no gabinete". "Mesmo que um candidato de outro partido ganhe as próximas eleições vai ter que governar de um jeito moderno. Vai ter que prestar contas do que faz. Hoje nós temos um departamento de assistência social que politiza e equaciona de forma honesta as carências pessoais mais imediatas. Mesmo porque não atender carências pessoais aqui significa isolamento imediato. O clientelismo e o paternalismo têm que ser abolidos aos poucos num processo que não deixe à margem da nossa ação as pessoas que devem estar conosco. Um avanço em Icapuí é que se você perguntar a qualquer cidadão, ele saberá lhe responder quanto entrou de dinheiro na Prefeitura, e em que ela o gastou. As pessoas entram no hospital de cabeça erguida, não pedem mais favor a políticos. Sabem que isto é obrigação da administração. Se um chafariz quebra, em um dia já se forma uma comissão dentro do meu gabinete, exigindo o conserto. Isso é cidadania, coisa nova para uma cidade do Nordeste".