Sociedade

O carnaval pró-impeachment anuncia, afinal de contas, o sonhado amadurecimento da democracia brasileira ou só um delírio a mais? O bem e o mal nunca se revelam com clareza quando estamos no olho do ciclone. Nessa hora cada um acredita no que quer, no que pode ou no que agüenta acreditar.

Solomon Perel é um judeu que escapou da guerra e do nazismo e registrou em diário sua história. Baseada nesses documentos, a cineasta polonesa Agnieska Holland filmou Europa, Europa (traduzido para o público brasileiro como Filhos da guerra!), o drama de uma traição justificada: o jovem Perel, judeu alemão já refugiado na Polônia com sua família, tinha treze anos quando os nazistas invadiram o país e dividiram a Polônia com Stalin. Por uma série de golpes da sorte - tão favoráveis ao protagonista que pareceriam fantasiosos, se o roteiro não fosse baseado num relato autobiográfico -, Perel consegue ser protegido pelos próprios alemães até o fim da guerra, fazendo-se passar por um autêntico ariano ansioso por servir ao Führer e fiel ao ideário eugenista que sustentou o nazismo.

Domingo, 16 de agosto. Estou a caminho do cinema para rever Europa, Europa, a partir do qual pretendo escrever um artigo para esta revista a respeito das dificuldades em se fazer escolhas "politicamente corretas" na vida. Não sei se deveria escrever 'na vida do homem moderno', já que sempre nos parece que em sociedades pré-modernas, tradicionais, a própria predominância de uma tradição já resolvia o problema, situando os sujeitos frente ao certo e ao errado, sem grandes ambiguidades. Mas qual a tradição moderna, a não ser a contestação sistemática de todas as tradições?

Digressão: o historiador canadense Modris Eksteins, numa perspectiva auto-intitulada conservadora, estabelece uma ligação entre o advento da arte moderna no começo do século1 e o surgimento das condições subjetivas que tornaram as populações da Alemanha, da França e da Inglaterra freneticamente favoráveis à eclosão da Primeira Guerra Mundial. "Para a Alemanha (...) a guerra era uma necessidade espiritual. Era uma busca de autenticidade, de verdade, de autorealização, isto é, daqueles valores que a vanguarda tinha invocado antes da guerra, e contra aquelas características - materialismos, banalidade, hipocrisia, tirania - que ela havia atacado". "A guerra tornara belo o mundo", diz um dos personagens do romance alemão dos anos 10; "Esta guerra é um prazer estético incomparável". Segundo o historiador, depois da guerra mais atroz que a humanidade conheceu (e produziu), o bem e o mal nunca mais voltaram definitivamente a se separar.

A caminho do cinema, percebo uma agitação fora do normal nas ruas. Carros demais circulando para um domingo comum. Uma buzinação alegre e pentelha. Não tinha me esquecido de que estava prevista para hoje uma "guerra das cores" no país, convocada pelo próprio presidente que, acuado pela CPI, pediu adesão verde-amarela da população à sua permanência no poder. Mas quando saí de casa usando uma discreta malha preta, não imaginava as proporções que a coisa iria tomar. Paro o carro antes de entrar na confusão da Avenida Paulista e vou a pé até o Conjunto Nacional. Parece que está se armando uma carreata, tipo de manifestação com a qual tendo a antipatizar. Sou do tempo das passeatas - não das heróicas, dos anos sessenta, quando fui uma tímida adolescente anticomunista, mas dos esperançosos atos públicos pré-abertura, do final dos anos setenta. Vou ter que me acostumar com as manifestações motorizadas. Um amigo costuma dizer que o paulistano, fechado e seguro em seu carro, só é solidário quando se trata de avisar que a porta do motorista da frente está aberta. Nesses casos o cara é capaz de seguir o outro por muitos quarteirões, gesticulando, buzinando, até que o motorista em perigo entenda o aviso e feche bem a porta, agradecendo a solicitude de alguém que, em outras circunstâncias, não teria muitos escrúpulos em tentar passar por cima dele.

Agora as carreatas criaram outro estilo de amistosidade motorizada. Uma espécie de congestionamento de trânsito voluntário, eufórico, onde as pessoas acenam e buzinam umas para as outras de dentro de seus carros, sem ter que pisar no asfalto ou sentir de perto o cheiro do suor alheio.