Em julho de 86 os presidentes Raul Alfonsin, da Argentina, e José Sarney, do Brasil, assinaram uma série de acordos, que deram origem ao Programa de Integração e Cooperação Econômica Argentina/Brasil (Pice). Os novos governos de Carlos Menem na Argentina e de Collor de Mello no Brasil decidiram, por sua vez, ampliar o Pice, dando origem ao Mercosul, instituído pelo Tratado de Assunção, em março de 91. O governo uruguaio de Lacalle decidiu aderir a esta proposta, e a substituição da ditadura de Stroessner pelo regime transicional do general Rodriguez favoreceu a incorporação do Paraguai. Vejamos, na sequência, as características de cada fase deste novo processo de integração latino-americana.
O projeto original do Pice foi constituído por 24 protocolos setoriais, formulados a partir de princípios estratégicos de "gradualismo, equilíbrio e realismo". Isto lhe deu características novas em relação a experiências anteriores latino-americanas de integração, que pecaram por excesso de ambições, e permitiu-lhe inserir-se na nova normatividade proposta pela Aladi. Sua importância em termos de relações regionais não pode ser menosprezada, já que pôs fim a uma antiga rivalidade entre as duas maiores nações sul-americanas. Pode implementar-se em função da desmoralização e deslegitimação política dos atores que tradicionalmente respaldaram essa rivalidade (Forças Armadas), porém foi também uma estratégia para afiançar os novos regimes democráticos.
Com efeito, na Bacia do Prata a recuperação democrática coincidiu com um agravamento da crise econômica. Incapacitados para recuperar as propostas desenvolvimentistas clássicas, os novos governos buscaram um recurso já desacreditado por experiências anteriores: o da integração regional. Desta vez, as características da proposta a tornaram mais viável.
A proposta do Pice supunha:
- "unir-se para crescer", através da formulação de uma alternativa de desenvolvimento de um amplo programa de integração econômica e cooperação.
- o interesse maior do programa era o favorecimento da integração interindustrial através do intercâmbio de insumos industriais semi-elaborados, superando as limitações que a recessão impunha a cada economia nacional e moderando os efeitos deficitários, no comércio exterior, de uma futura reativação.
- os intercâmbios comerciais de bens primários e de bens industriais terminados eram parte importante do Pice, porém não seu fim estratégico: tinham o sentido de fortalecer e agilizar vínculos entre duas economias que se mantinham relativamente protegidas em relação ao mercado internacional.
- os objetivos do Pice se explicitam com a inclusão de vários protocolos referentes à colaboração científica e tecnológica, incluindo indústria militar, energia nuclear e biotecnologia. Tratava-se de uma resposta comum aos desafios tecnológicos contemporâneos, um equivalente em dimensões latino-americanas ao projeto Eureka europeu. Existe também um protocolo cultural, que se refere à indústria editorial, cinematográfica, à televisão e à promoção de atividades nesse âmbito.
Assim, a iniciativa dos governos criou um marco para uma nova proposta de desenvolvimento, ao mesmo tempo seletiva (com negociações por setor e por produto) e multidimensional (não se baseava somente em intercâmbios comerciais, mas em um amplo registro de perspectivas de colaboração). O gradualismo do processo tinha como objetivo dar tempo para que os setores produtivos de ambos os países se ajustassem às contingências criadas por esta abertura parcial e seletiva de mercados, sedimentar interesses entre todos os participantes e desenvolver projetos compatíveis com a realidade econômica de cada país.
A partir da Ata de Buenos Aires, assinada por Menem e Collor em julho de 90, e do Tratado de Assunção, de 26 de março de 91, que criou o Mercosul, incorporando Uruguai e Paraguai, o caráter do processo se alterou radicalmente. Vejamos suas novas características.
O critério "gradual e seletivo" foi abandonado e fez-se um acordo de desgravação progressiva, linear e automática, à razão de 20% ao ano, para culminarem 31 de dezembro de 94 com a liberação total, prazo que se estende por um ano para Uruguai e Paraguai. Esta liberação passou a incluir os produtos "sensíveis", como os argentinos de clima subtropical, que haviam constituído uma "lista de exceções". Dessa forma a integração tem agora um prazo fixo, perdendo seu caráter seletivo e isso implicará a formação de um mercado unificado. Aumentou drasticamente o número de setores afetados (todos), e limitou-se o tempo outorgado para ajuste às novas condições.
Ao mesmo tempo, os Estados Nacionais retrocederam radicalmente em sua função reguladora, e agora se limitam a deixar atuar as forças do mercado, concentrando-se na coordenação de suas políticas macroeconômicas (basicamente a política cambial).
Porém, à medida de que a integração se acelera, ela perde seu caráter global, e são desativados os projetos tecnológicos conjuntos.
A ênfase no mercado recoloca em um lugar estratégico os intercâmbios comerciais com a diminuição da ênfase do projeto original em buscar alternativas conjuntas de desenvolvimento, reduzindo o Mercosul a uma liberalização do comércio, na mais pura tradição ortodoxa.
O paradoxal é que, junto com esta aceleração da integração regional, os governos procedem a uma abertura geral de suas economias para o mercado internacional, especialmente no caso argentino. Em lugar de uma abertura preferencial e seletiva em relação a sócios regionais, ele processa uma diluição drástica da fronteira comum com a economia internacional. Desse modo o Mercosul se constitui a partir de uma contradição lógica, que confunde, desde o começo, seus objetivos. Com efeito, as discussões sobre a coordenação macroeconômica, no contexto da ofensiva norte-americana da Iniciativa para as Américas (que todos estes governos apóiam), parecem constituir um dispositivo a mais de pressão sobre o Brasil, país que alcançou o maior grau de desenvolvimento da região a partir de uma política de orientação protecionista, no sentido de forçá-lo agora a uma reconversão liberal. Essa posição foi claramente explicitada pelo representante paraguaio em dezembro de 91, na reunião de ministros da economia que se realizou no Rio de Janeiro.
Outro traço relevante é que começam a se estruturar núcleos de negociação e articulação. O Grupo Mercado Comum, organismo executivo com representantes dos ministérios de relações exteriores, da economia e dos bancos centrais, discute a harmonização de políticas e a formação de grupos de trabalhos com setores empresariais. Foi criada, também, uma Comissão Parlamentar Conjunta. Mas, chamemos a atenção para um fato decisivo: esta ampliação do espaço de discussão ocorreu quando todas as decisões fundamentais já haviam sido tomadas.
Em síntese, o projeto do Mercosul reafirma a opção neoconservadora do Estado mínimo, que se impõe em nível nacional e se reproduz na integração regional. Os Estados Nacionais que integram o Mercosul renunciam à sua capacidade reguladora: a reestruturação produtiva será processada pela lógica dos mercados, pela canibalização e ou cartelização. Mas esta opção abarca também os efeitos do processo sobre as estruturas regionais e sociais. O "fanatismo do mercado" é tal que, diferentemente de outros processos de integração internacional, como a Comunidade Européia ou o Pacto Andino, não está previsto nenhum tratamento diferencial para os países de menor desenvolvimento relativo.
Mas, já que nos referimos à Comunidade Européia, assinalemos outra diferença: a lógica que presidirá a integração e a necessária reconversão não é a da expansão, ampliação e incorporação de novos setores, mas a de economias que aprofundam seus mecanismos de exclusão, em contextos recessivos. Se décadas de prosperidade européia tiveram como resultado "sociedades dos dois terços", com significativas desigualdades regionais e sociais, a lógica de mercado do Mercosul supõe, na melhor das hipóteses, a cristalização das tendências de exclusão vigentes, na forma de "sociedades de um terço".
Qualquer observador informado sabe que a Comunidade Européia é produto de décadas de negociações multilaterais, que supuseram sucessivos desdobramentos da capacidade reguladora dos Estados Nacionais, como o estabelecimento da Política Agrícola Comum, ou o tratamento dos desequilíbrios nacionais e regionais. Os protagonistas foram governos representativos, pela sua capacidade de articular interesses sociais diversificados, e que tiveram sempre como objetivo um incremento das perspectivas de renda e de bem-estar de suas populações e uma ampliação e potencialização da acumulação de capital. O oposto do que ocorre em nossas democracias neoconservadoras periféricas, onde o desmantelamento da capacidade reguladora do Estado e das mínimas conquistas sociais e trabalhistas da população, junto com a consolidação de novos mecanismos de exclusão, são apresentados como êxitos.
Coerentemente com sua inspiração, os governos realizaram a parte fundamental das negociações, até a assinatura dos tratados, sem promover a informação, o debate, a análise das consequências e a participação dos setores que seriam afetados pelo processo de integração. Somente a partir da constituição do grupo Mercado Comum é que se incorporou uma instância orgânica de diálogo com interesses societários, apenas para viabilizar a implementação de decisões estratégicas já tomadas.
Esta convocatória, por outra parte, está organizada por setores econômicos, o que limita seu alcance aos problemas estritamente localizados, sem afetar a orientação do processo global. Além disso, está restrita aos empresários de cada setor. Somente no Uruguai o movimento sindical reivindicou (e obteve) sua participação no conjunto das comissões.
Desde a Independência, o fantasma da integração latino-americana percorre com assiduidade nosso continente. Possui uma série de conotações positivas, que o articulam a reivindicações próprias do campo democrático-popular, como a insistência em recuperar nossas identidades comuns, a busca de uma posição conjunta e claramente latino-americana na ordem internacional, um modelo de desenvolvimento alternativo, que interiorize seus benefícios para as maiorias populares.
Mas, também é verdade que esta bandeira, em sua operacionalização concreta, foi com mais frequência uma tendência ligada às necessidades de expansão e racionalização do capital multinacional (regional e extra-regional) face aos limites estruturais dos mercados internos latino-americanos. Quer dizer, foi levantada mais como uma alternativa para manter a viabilidade de modelos excludentes de acumulação de capital e para conservar uma ordem social polarizada, do que para apoiar uma reorientação democrática de nossos países.
Não queremos desenvolver aqui uma avaliação crítica das intenções de integração latino-americana. Basta dizer que o projeto original do Pice parecia informado dos "impasses" desta história, e não se propunha como fundamento de uma alternativa regional. O Mercosul, ao contrário, se apóia assumidamente em uma filosofia social neoconservadora, e faz da bandeira da integração regional uma leitura estritamente liberal, reduzindo-a à liberação do comércio, o que contradiz a doutrina integracionista. No contexto de uma dissolução geral das fronteiras com a economia internacional e da Iniciativa para as Américas (feita pelo presidente Bush em junho de 90, localizada cronologicamente entre o Pice e o Mercosul), a proposta perde seu sentido básico de sedimentar um bloco sub-regional frente ao resto do mundo (tendencialmente aberto a outros países da região), para constituir um dispositivo regional de harmonização de espaços econômicos, tendo em vista sua incorporação à área de hegemonia comercial dos Estados Unidos.
O discurso integracionista está constituindo, no âmbito do Mercosul, uma estratégia de ocultamento. O debate se reduz à discussão de normas técnicas, reservada aos especialistas e tomadores de decisões, públicos e privados, excluindo sistematicamente a explicitação das possíveis consequências sociais do processo. O discurso político legitima este silêncio, através de invocações abstratas à "herança doutrinária peronista" (no caso argentino), à mitologia latino-americanista (com conotações democrático-populares) e com a constatação "realista" (e falsa, já que não se baseia em análises "reais" de casos de integração econômica) de que o sinal dos tempos é a formação de grandes espaços econômicos (curiosamente, a desintegração do Comecon e da União Soviética são citados como exemplos a favor desta tese). A criação destes espaços consiste na supressão, o quanto antes, de qualquer restrição ao comércio e à mobilidade do capital, junto com uma retirada geral do Estado da sua função reguladora (quando 35 anos de experiência européia indicam o contrário).
Esse é o único caminho possível para alcançar o desenvolvimento e o bem-estar geral, consequência automática do livre jogo de mercado. Idéias já tão velhas na América Latina que doem por sua falta de imaginação.