Cultura

Muitos viram em Anos Rebeldes uma denúncia da ditadura militar. Os seus elementos dramatúrgicos desmerecem, porém, a memória e a atualidade da esquerda brasileira. A série reduziu a luta armada a um equívoco de jovens moralistas e pouco ajuizados e transformou suas causas em demandas do passado.

 

 

Algo de espantoso passou na Rede Globo. De 14 de julho a 14 de agosto de 92, toda semana, de terça a sexta, oficialmente às 22h30, mas de fato lá pelas 23h00, uma série falou do movimento estudantil brasileiro dos anos 60, depois os personagens centrais viraram guerrilheiros, e a série falou também da guerrilha, denunciou o arbítrio do golpe militar, condenou o AI-5, depois a tortura e a censura à imprensa. Entrou no ar Anos Rebeldes, de Gilberto Braga. Militares reclamaram, ofendidos, dizendo que a série distorcia os fatos. No dia 24 de julho, um certo Grupo Independente, reunido no Centro Monárquico do Rio, no bairro da Urca, debateu o assunto e concluiu, segundo um porta-voz, que os heróis do roteiro de Gilberto Braga "não passam de lacaios do movimento comunista internacional" (Folha de S. Paulo, 25/07/92, p 4-3). O Ministério do Exército comentou o assunto quase que no mesmo tom, no dia 27. Numa publicação chamada Noticiário do Exército, os militares acusaram os autores da série global de "revisionistas de plantão... que tentam conspurcar o nome do Exército, arguindo-lhe suspeição sobre crimes hediondos". Um reboliço.

Em contrapartida, quase todo o pessoal de esquerda que eu conheço - não é muita gente, eu sei, mas afinal é um universo representativo, ao menos para mim - começou a ficar entusiasmado. De um jeito ou de outro, lá estavam eles na televisão, os guerrilheiros. Não tomaram os meios de comunicação por mal, mas acabaram tomando por bem, não é irônico? A história da série era relativamente simples, como normalmente acontece com esse tipo de coisa na televisão. Maria Lúcia (Malu Mader), filha de um jornalista comunista, o Damasceno (Geraldo del Rey), namora João Alfredo (Cássio Gabus Mendes), o estudante rebelde, e é cortejada pelo melhor amigo de João, Edgar (Marcelo Serrado). Esse triângulo aí é da mesma turma no colégio, em tempos imediatamente anteriores ao golpe de 64. Quando vem o golpe e a luta contra a ditadura, a ação se desenrola contra o pano de fundo da conturbada década de 60. A tendência geral é simpática à esquerda, o autor compra a causa das liberdades democráticas, dos direitos humanos e condena em regra os gorilas do poder. Uma exceção na teledramaturgia da Globo. Mais que uma exceção, uma quente surpresa.

A exemplo da maioria, gostei da história logo nos primeiros capítulos. Mas mudei de idéia rapidamente. A maneira como os guerrilheiros foram retratados, todos tão bobos, foi me dando nos nervos. Acabei escrevendo que "Anos Rebeldes desmerece a memória e a atualidade da esquerda brasileira" (Folha de S.Paulo, "TV Folha", 09/08/ 92). Depois de cometer- e publicar - esta afirmação assaz categórica, fui bombardeado pelos meus conhecidos. Fui jogado em relativizações, considerandos tardios, por pouco não me arrependi. Os amigos protestaram veementemente. "A série pelo menos denuncia o que foi a ditadura"; "Você viu aquela cena em que a Heloísa (Cláudia Abreu) tira a camisa na frente do pai, Fábio (José Wilker), e mostra pra ele as marcas da tortura? Aquilo é fortíssimo."; "Os guerrilheiros eram todos chatos mesmo, até a Judith Patarra falou isso na sua entrevista para a Veja (11/08/ 90)". Eu me defendi como pude, procurando expor um humilde raciocínio aos interlocutores inconformados. As conversas foram tantas que concluí ser necessário organizá-las por escrito. Escrevo o que vem a seguir por dois motivos. O primeiro deles, egoísta, é convencer os meus amigos de que eu estou certo (quem é que não escreve movido por uma pretensão assim?). O segundo, mais militante, é trazer para as páginas de Teoria & Debate uma discussão que muitos podem achar menor, novela de televisão, prosa de comadre, mas que acredito ser indispensável. Ao fim deste artigo, os leitores poderão discordar de minhas opiniões, mas espero sinceramente que concordem comigo quanto à necessidade desse tipo de pauta numa revista como a nossa.

Gilberto Braga é, na atualidade, o maior dramaturgo de TV em atividade no Brasil. São dele alguns momentos memoráveis da nossa ficção global recente. A primeira metade de O dono do mundo (1990) foi de arrebentar, com Márcia (Malu Mader, Braga tem fixação por Malu), o retrato do servilismo da massa brasileira diante das suas elites, ardorosamente apaixonada pelo canalha Felipe (Antônio Fagundes), o retrato da elite parasitária, cruel, oportunista. caprichosa. E que argumento! Recém-casada suburbana, em lua-de-mel, em vez de se entregar ao noivo, trabalhador como ela, vai ainda virgem para a cama do patrão do cônjuge. Insisto na força da situação apresentada pela novela porque acabávamos de eleger um rapaz oriundo das oligarquias agrárias nordestinas para a Presidência da República. Com a desenvoltura de um galã, ele enganara a multidão de eleitores com promessas vulgares. Havia algo de feudal na essência de sua figura enfeitada, assim como havia algo de feudal na prerrogativa que assistia ao fictício Felipe (Fagundes) de desfrutar da primeira noite da mulher de um servo seu.

Alguém viu Calígula (Malcolm McDowell, no filme de 1980) currando uma noiva súdita com o próprio punho? "Eu, imperador...", e crau. Em O dono do mundo esse exercício de poder passava pelo consentimento feliz da dita cuja, tudo muito mais picante. E mais picante ainda porque ambos, presidente da República e Felipe, eram telecanalhas análogos, sem falar em Márcia (Malu) que, como a pátria brasileira, teimava em se envolver em seduções que se traduziriam mais tarde em humilhações. Naquele tempo, Malu Mader era muito atraente, tornava a novela tão irresistível como ela própria. Sejamos francos: todo mundo queria comer aquela noivinha. Novelas são feitas de coisas baixas assim, fazer o quê?

Todos sabemos que o argumento de Gilberto Braga nem era lá tão original, podia até ser visto como uma citação de Les Liaisons Dangereuses 60 (a adaptação do romance do século 18, escrito por Choderlos de Laclos, dirigida por Roger Vadim em 1959), com direito a estação de esqui para cenário da conquista amorosa e tudo mais. E daí? A potência de sua ficção arrebatava o imaginário continental deste país por tudo aquilo que estava dentro e fora do espaço cênico. Não dava para fugir do assunto. Mais do que a originalidade da idéia, o que nos fisgava era a oportunidade dela. Nisso reside o gênio do novelista de televisão.

Outro golaço de Gilberto Braga foi Anos Dourados (1986). Sublime nostalgia. Mas aquilo se passava nos anos 50, sabe como é. Anos 50, água com açúcar e PSDB não fazem mal a ninguém. Os anos 50 não fizeram mal sequer à carreira de Malu Mader, que passou incólume pelo papel de moçoila casadoira. O mesmo não se pode dizer de outros anos, os 60, os Anos Rebeldes. Lamento muito estar com esta opinião minoritária até agora, mas dessa vez nosso ficcionista patinou.

Talvez eu devesse dissertar sobre a natureza da década de 60, mas nossos leitores não merecem tamanho aborrecimento. Além do que, minha diferença com Anos Rebeldes fica muito mais no plano dramatúrgico, é mais um bode de telespectador, e só desdobra na política como o verbo ali, seis palavras atrás, já disse: por desdobramento. Se poupo os assinantes e compradores da revista de um seminário sobre anos 60, acho que não posso evitar de castigá-los com algumas breves considerações acerca do que entendo por melodrama de TV. Mesmo porque, como pretendo demonstrar logo mais, é impossível tratar Anos Rebeldes como drama político. Só podemos considerar a ficção de Braga como melodrama mesmo, este gênero que trata sentimentalmente dos sentimentos humanos.

O melodrama de TV serve para elevar o moral do espectador. Prende-o porque conforta-o, alivia o dilaceramento que a vida material produz no seu íntimo, devolve-lhe alguma forma de bem-estar. Ensina que a solução para as adversidades brota do centro do homem, na força de vontade, na fé, no amor - virtudes que por sua vez conduzem à (entra o fundo musical de violinos) paz, fraternidade, solidariedade, harmonia (e paro por aqui senão alguns leitores podem começar a chorar como se estivessem vendo um filme de Frank Capra). O melodrama reforça a ilusão de permanência do bem que trazemos em nós, por isso ele precisa ter a fórmula da superação de todas as misérias dentro de si, dentro do personagem, e não fora. Ele organiza e reorganiza as situações a partir de um centro de gravidade que está no núcleo do homem de bem; sua utopia de felicidade - sua esperança de final feliz (o final feliz pode não acontecer mas a esperança dele é indispensável) - está justamente em fechar este centro, torná-lo forte, resolvido e de longo alcance, livre de todo mal, amém.

Os relatos sobre uso de drogas atestam que a heroína dá uma sensação de auto-suficiência, ou mais que isso, de plenitude íntima; quem toma heroína experimentaria pois a sensação de não precisar de nada além dessa plenitude, nem de amor de outrem, nem de comida, nem de sono. O melodrama talvez produza um efeito análogo naqueles que o consomem, com sua mensagem de que Deus, a verdade, o bem, a beleza estão todos potencialmente acomodados dentro de cada um movido por boas intenções. O melodrama vem de fora mas desperta no seu consumidor o mesmo conforto sobre o qual ele tematiza, o conforto de que tudo já se tem, tudo está bem, tudo vai ficar bem.

Mas o melodrama, mais do que uma sensação, é uma narrativa, conta uma história. Tem começo, meio e fim. Normalmente, ele refaz o mito da consolidação do herói, que começa pelo trauma (a injustiça), passa pela promessa (a sagração, o juramento), continua na guerra, com a figura explícita ou velada do anjo da guarda ajudando o combatente do bem, prossegue na derrocada do dragão da maldade e seus comandados e culmina com a vitória do que antes teria sido o mais débil, a vítima, buscando promover assim a vingança boa, a guerra santa, lavar a alma dos fracos. Tanto que, embora o gosto da vitória seja compartilhado entre personagem e espectador, as agruras da batalha arriscam a existência apenas do personagem. O personagem arrisca sua existência em prol do conforto íntimo do espectador, do conforto de dentro.

Eu sei que você já está se perguntando por que estou nessa conversa mole aqui. Respondo: só para contrapor esses que me parecem os aspectos definidores de um gênero ao que se passou com Anos Rebeldes. É gozado como as pessoas reclamam que "a Globo transforma tudo em melodrama".

Ora, o problema não é este. Esta é justamente a parte deliciosa da televisão. Para mim, o problema começa quando ela transforma as coisas num melodrama que não se segura enquanto tal - e é daí que vêm os desdobramentos políticos dos quais reclamo.

Qual é o centro da série? Sim, o casal de namorados, Maria Lúcia (oh, Malu Mader, sinto muito) e João Alfredo (Cássio Gabus Mendes). O que se deve esperar desse que é o centro da trama? Que o casal se desfaça pelas nefandas influências malignas e depois, na luta do príncipe para libertar sua princesinha das labaredas do dragão - seja ele um galã, um antigalã, ou simplesmente um modo de vida -, que ele se recomponha num outro plano, num patamar superior como gostam de dizer os marxistas. Ou, se isso não dá pra acontecer, que ao menos aqueles valores, os princípios, aqueles objetos de fé que foram dados no início (o afeto do primeiro amor, ou mesmo as frases do discurso de formatura de João) se reafirmem, sobrevivam às turbulências da (viva o marxismo!) luta de classes, do curso material dos acontecimentos perversos. É preciso, enfim, que se consiga, ou pelo menos que se consiga acreditar possível "firmar o nobre pacto entre o cosmos sangrento e a alma pura".

Não, não é que eu queira escrever com antecedência o final de toda série ou novela de TV que vier a ser exibida a partir de hoje. O desfecho, a propósito, não-importa tanto. Importa mais o sentido dos movimentos que se desenrolam durante a trama, a vocação deles. Claro que um príncipe pode perder a batalha contra o dragão. Isso acontece nas melhores famílias. Mas o príncipe tem que ter aquela vocação, aquela aura sagrada, o poder de atrair para si os enfrentamentos e sua superação. O bem, mesmo que em gestação, tem que estar lá, vivo, dentro do herói, assim como as delícias da vida precisam morar na alma da princesa. Foi por isso que Steven Spielberg deu ao E.T. um coração que era pura luz dentro do peito. A luz, fonte de todo cinema, estava dentro do peito do E.T., o que tem todo o significado num cinema melodramático. Ele curava o Elliot com a ponta do dedo luminosa. Todo mundo chorava no cinema.

Assim, voltando à questão do desfecho, se ele importa ou não, eu diria que é importante que ele seja potencialmente bom desde o começo; é vital que o happy end seja crível, mesmo que não venha a se confirmar na hora H. Se ele não se confirma, mas era crível, teremos sempre dentro de nós a doce impressão de que ele ainda será realizável, porque o príncipe tinha a sua aura, a sua vocação, porque a princesa tinha sua sublime sensualidade. A tristeza é acidental, mas a felicidade é nosso verdadeiro destino (mais violinos).

Agora parem um pouco e pensem no casal de Anos Rebeldes, o centro da trama. Não é difícil notar que a Maria Lúcia de Malu Mader é a garota mais tenebrosamente chata de toda a história da TV Globo - e se admitirmos as heroínas das novelas mexicanas que passam no SBT para esse páreo, a Maria Lúcia continua sendo a mais repulsiva de todas elas. Maria Lúcia conseguiu ser mais fútil do que o Edgar (Marcelo Serrado), o cocôboy carreirista, que só não é mais carreirista porque é cocôboy demais. Lá no começo da série, o Edgar dá uma vitrola (naquele tempo era vitrola mesmo) de presente para a moça. Ela aceita, já que anda meio de paquera (naquele tempo era paquera mesmo) com ele. No bloco seguinte, ou no capítulo seguinte, ela começa a namorar o João Alfredo, meio traindo o Edgar, e depois, quando vai contar para o Edgar que ele perdeu sua doce namorada, anuncia solenemente que vai devolver a vitrola. O traído começa a espumar e se descabelar. "Você, capaz de pensar em vitrola numa hora dessas...", esbraveja.

Maria Lúcia concentra em si a futilidade típica que o centro de valores supostamente encarnado no herói condena. Ela é a negação de tudo aquilo que qualquer garota gostaria de ser nos anos 60. Sendo assim, Maria Lúcia não funciona como foco, pólo magnético, ponto de referência; vai apenas se deteriorando sem entrar em ação.

Quando um malogro desse tipo acontece com uma "princesa" de novela mais longa, uma das tramas paralelas ganha importância sobre ela e algum encanto antes marginal passa a substituir o encanto original que feneceu. Tudo se arranja. Malu Mader, tristemente, tem dado aí um certo azar. Sua personagem em O dono do mundo, a Márcia, desmilinguiu-se pelos capítulos afora. Precisaram arranjar um marido pra ela de última hora. E uma outra noiva para Felipe. Ela nem ficou com ele nem o derrotou. Ela não conseguiu ser o centro. Em Anos Rebeldes, contudo, não foi possível costurar algo assim a contento, principalmente em função da curta duração da série. Malu Mader e sua Maria Lúcia, que já não eram sólidas, apenas se desmancharam no ar.

Que não se pense que eu quero com isso invalidar a série. De modo algum. Ela tem lá seus méritos, mas continuemos um pouco mais nessa trilha. Maria Lúcia não era uma princesa de verdade, mas um traque; ela não resistia ao dragão da maldade mas se aliava bestamente a ele, e isso não apenas quando se casou com Edgar, o que teria até um sentido mítico. Poderia ocorrer nesse movimento a vingança irrefletida da princesa contra o bem, vingança que logo será motivo de arrependimento, algo típico dos contos de fada etc. Mas não. Maria Lúcia pactua com o dragão do modo de vida "alienado", "individualista", "acomodado" e "pequeno burguês" porque pertence a ele. Isso no plano material. No plano ideológico, se me dão licença de fazer essa distinção pouco ortodoxa, ela vive irritantemente dividida. Ela boicota toda a atividade política de João, um apaixonado pela política. Em contrapartida, não transa direito com Edgar, um apaixonado por Maria Lúcia; não se define de forma clara diante de nenhuma situação e finalmente sucumbe à mesquinhez de sua hesitação fundamental. Ela não entra para a guerrilha, mas também não fica de fora, fica ali atrapalhando, um horror. Maria Lúcia não dá e também não desce. Menos que um malogro de princesa, ela talvez fosse uma bruxa camuflada em sobrancelhas.

Premiado pela cruel conjuntura com uma namorada dessa laia, João é movido para a guerrilha por instinto de sobrevivência. Por mais paradoxal que pareça, casar com Maria Lúcia para ele seria a morte. A morte moral, a morte política, a morte da paixão - a morte dramática e dramatúrgica. Ora, isso tem um significado na tecitura do melodrama. Casado, João poria fim à ação da história. Faço aqui uma comparação: seria o mesmo que Tarzã ser comido pelo jacaré logo nos primeiros dez minutos de um filme.

Se João fica com ela, vai ter de cuidar de orçamento doméstico, vai ter de trabalhar, levá-la ao teatro etc; se ele vira chefe de família ou, no mínimo, maridão, ele não mergulha de vez na luta política; se ele não mergulha de vez na luta política, boa parte da emoção da trama (a guerrilha envolvendo personagens importantes) deixa de existir. Ele precisa romper com a sociedade conservadora para radicalizar sua atuação armada, à esquerda. Para João, romper com a ordem estabelecida, é romper com as expectativas pequeno-burguesas de Maria Lúcia. Para o telespectador, portanto, o casamento com ela, que deveria ser o nirvana, o paraíso final, torna-se algo indesejado. Entre desposar Maria Lúcia e converter-se a bundão irrecuperável há um indisfarçável sinal de igualdade.

A idéia básica de Gilberto Braga parece que era um pouco diferente disso. A madeira como ele organiza a narrativa nos leva a crer que João e Maria Lúcia protagonizariam a história de um amor impossível, mas de um amor enfim. Para ele, a garota, em vez da morte, representaria um sonho de felicidade. Entre ambos, o amor só não teria se realizado porque a ditadura e, depois, as desigualdades sociais, que tanto tocavam o príncipe, nunca permitiram. Em poucas palavras, o autor explica o afastamento entre os dois por razões outras - externas, posto que o mal, no melodrama, sempre vem de fora. "Uma guerra nos separou", diz João à Maria Lúcia no último capítulo. "Essa guerra agora acabou". Mesmo assim, eles terminam separados porque João, que acaba de voltar do exílio, com a lei da anistia, vai cumprir uma "tarefa" com camponeses sem-terra no Sul do país e adia por uma semana seu compromisso (com ela) de arranjar emprego. A luta armada talvez tenha passado, mas o bombardeio infernal de obrigações que Maria Lúcia despeja sobre o namorado continua inabalável. A separação final de João e Maria Lúcia deixa incontestável que safar-se dela, não por causa da guerra "externa", mas por causa da chatice "interna" da moça, foi o que permitiu a João levar a vida que ele quis. A sujeitar-se ao risco da morte que ele quis. Não fosse isso, não haveria Anos Rebeldes.
Mas até aí tudo bem. Os(as) chatos(as) também são dignos de amor. E há chatos que rendem ótimas histórias, além de ótimos artigos. Acontece que vários outros problemas que complicam ainda mais a eficiência da trama resultam da chatice "contra-revolucionária" de Maria Lúcia e comprometem o restante. A insistência de Gilberto Braga em enfatizar o amor de João à namorada, mantendo-o preso a um sentimento contraditório com seus valores e com suas fantasias de prazer e liberdade, corrói gravemente a própria integridade de João. Ele parece meio bobo. "Ora", alguém pode argumentar, "mas Romeu amou Julieta, uma inimiga mortal de sua família, e Julieta amou Romeu com a mesma intensidade". Sim, mas aquilo era uma tragédia e, quando transformada em melodrama por Zeffirelli, nas telas de cinema, tinha o grande trunfo de abrigar o casal central num único sistema de valores segundo o qual o amor a tudo poderia pacificar e submeter. Romeu e Julieta, escravos de um amor impossível, lutam até a morte para vivê-lo. João e Maria Lúcia, pretensamente acometidos do mesmo mal (a "família" de João é o ideal que o acolhe com calor, o humanismo de esquerda, e é inimiga da "família" de Maria Lúcia, que é a ambição de desfrutar da sociedade de consumo amparada pela ditadura militar), não lutam pelo amor impossível. Ao contrário. Ele luta por suas causas políticas e ela luta para ter uma vitrola e um quarto só dela. O melodrama francamente não convive muito bem com tamanha discrepância de sentimentos no casal central. Logo, se João insiste tanto neste romance capenga, deve ser ruim da cabeça.