Nacional

Herdeiro de Collor, Itamar Franco é prisioneiro das circunstâncias de sua posse. Para o PT, que pretende governar o Brasil no ano que vem, está afastada a hipótese de participar dessa administração federal. Nossa relação com o atual presidente deve se pautar pela negociação em torno de um plano mínimo

Antes de traçarmos o cenário de 93 convém fazermos uma avaliação do ano de 92 para estabelecer em que condições políticas e sócio-econômicas iniciamos o ano.

Sem dúvida em 92 conquistamos uma grande vitória política com o impeachment de Collor. Esta vitória tem duas faces: a primeira - a cassação constitucional do presidente - coloca em risco o projeto neoliberal que Collor assumiu e levou à prática. A segunda é a ampliação da democracia. com a participação sem precedentes da sociedade, ainda que de forma restrita, da opinião pública organizada e das entidades nas decisões políticas antes exclusivas das elites dominantes ou do estamento militar.

A qualidade da luta pelo impeachment de Collor se equipara à luta contra a ditadura, à campanha das diretas e à luta pela Constituinte, porque desnudou o sistema político brasileiro, o papel das elites empresariais e democratizou a ação política não só partidária como cidadã. Os cidadãos, as entidades, e não apenas os partidos políticos, exerceram seus direitos políticos constitucionais junto ao Parlamento e ao poder Judiciário. Não, foi por acaso que o pedido de impeachment foi assinado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e entregue ao Parlamento por centenas de entidades da sociedade civil.

A consciência do caráter elitista, excludente e mesmo autoritário das instituições políticas brasileiras, tende, a partir da luta pelo impeachment, a se transformarem ação política por reformas democráticas. A derrota de Collor criou um impasse nas elites sobre a continuidade do projeto neoliberal, mesmo levando-se em conta a hegemonia destas idéias no meio empresarial e mesmo na burocracia estatal.

A decorrência possível da cassação constitucional do presidente foi o governo Itamar Franco e a derrota das forças políticas e partidárias que sustentaram Collor nas eleições municipais de 92. O resultado das eleições definiu em boa medida o cenário político para 93/94, só não alterando as condições políticas para o governo Itamar, por não atingir o Congresso Nacional, que só será renovado em 94. Além da derrota da coalizão que sustentou Collor, PFL-PRN-PTB-PDC-PL-PSC, o próprio PMDB saiu enfraquecido. Na verdade, a tendência do eleitorado foi de centro-esquerda. Ao contrário dos prognósticos, não houve uma avalanche de votos nulos e brancos e a abstenção se manteve dentro dos índices históricos. O PT e seus aliados (PSDB, PSB, PPS) venceram as eleições em 13 capitais, o PDT em 4. O PMDB venceu em 4. O PFL em uma, e o PDS conquistou a maior capital do país, São Paulo.

Duas lideranças - Lula e Maluf - saíram fortalecidas da eleição. Antonio Carlos Magalhães, Brizola e Quércia foram derrotados. As próprias pesquisas de opinião pública já retratam esta polarização: Lula tem cerca de 27% de votos e Maluf 14% na corrida rumo a 94.

O PT, apesar do resultado favorável. com a conquista de Belo Horizonte e Goiânia, além da vitória em Porto Alegre e Rio Branco, sofreu importantes derrotas em São Paulo, Vitória, São Bernardo e Santo André. Além disso, não crescemos em número de vereadores ou prefeituras como havíamos previsto e tivemos uma queda sensível no voto proporcional.

É verdade que o PT se consolidou como partido de caráter nacional e sua política de alianças mostrou-se correta e vitoriosa. Também é um fato que a ausência de uma organização partidária estruturada e de direção política no plano nacional e na maioria dos estados levou-nos a muitas derrotas e erros políticos na condução das campanhas e, antes, na elaboração das chapas e na política de alianças. Ficou patente nossa incapacidade de responder às campanhas contra o PT e a ausência da marca petista em várias cidades e mesmo em nível nacional.

Muito a fazer

Apesar de o PT ter sido o partido mais votado no 1º e no 2° turno nas capitais, está claro que para crescer precisamos trabalhar e organizar o eleitorado de baixa renda, desempregado ou com emprego informal, o que exige um trabalho partidário e social de qualidade superior à nossa política atual. O resultado das eleições municipais mostra a possibilidade de vitória de uma coalizão de centro-esquerda em 94, seja para a Câmara dos Deputados seja para a Presidência e governos estaduais.

O ano de 93 evidentemente será marcado pelo governo de Itamar Franco, agora presidente definitivo. Herdeiro de Collor e de sua política neoliberal, Itamar é prisioneiro das circunstâncias de sua posse e da correlação de forças políticas no Congresso Nacional. Num primeiro momento organizou um Ministério para garantir o impeachment e, agora, parece vacilar em dar ao seu governo um programa, uma base partidária e social, preferindo a retórica e o discurso de um programa e de uma base social, que não encontra correspondência na ação governamental.

A questão de fundo para o presidente é a herança collorida. e não há como fugir desta questão: ruptura ou continuidade do projeto neoliberal. Tudo indica que o governo Itamar Franco não terá condições políticas para resolver esta questão e somente com eleições gerais em 94 e com um novo governo presidencialista ou parlamentarista é que enfrentaremos este dilema. Assim, caberá mais uma vez à cidadania, ao povo, em eleições, decidir o futuro do Brasil. A questão de fundo para 93 é a disputa política e pela hegemonia tendo em vista 94, a elaboração de projetos nacionais e de um programa de governo democrático-popular, de reformas que tenha como base uma coalizão partidária e um bloco social. Esta disputa passa pelo governo Itamar Franco, pelo plebiscito de abril, pela revisão constitucional e depende basicamente da capacidade de cada força político-partidária se constituir em alternativa de governo.

A direita procura se reagrupar e conta com a indefinição do governo Itamar para influenciar e, se possível, comandar todo o processo. A partir da cidadela conquistada por Maluf e da bancada de ACM trabalha para impedir que o governo Itamar abandone o projeto de Collor. Duas disputas foram importantes para este grupo: a Mesa da Câmara (e a Vice-Presidência) e o ajuste fiscal. A médio prazo trabalham para manter a agenda neoliberal de combate à inflação e de privatizações e a chamada modernização (portos, patentes, abertura da economia, desregulamentação etc).

O problema destas forças de direita é o esgotamento do projeto neoliberal e o fracasso de suas políticas de ajuste e estabilização da economia e a desmoralização do discurso collorido. A própria questão do papel do Estado não é mais consenso, como demonstram as divergências na Fiesp, templo do capitalismo brasileiro.

Sem respostas para o agravamento da questão social e o crescimento da miséria, da violência e da criminalidade, as elites brasileiras bradam no deserto seu discurso liberal, sem resultados práticos depois de doze anos de estagnação econômica e miséria social. Frente ao fracasso do liberalismo nos EUA e na Grã-Bretanha, e a reversão destas políticas para práticas protecionistas e intervencionistas nos países capitalistas, fazem de conta que nada está acontecendo, arriscando o futuro do Brasil. No centro, o PMDB e o PSDB aceitam o caráter transitório do governo Itamar, sua agenda eclética e, junto com o PSB, PDT, PC do B e PPS participam e dão sustentação ao governo, que também conta com o apoio de parte do PFL (que rompeu com Collor), do PTB e mesmo do PDS-PL-PDC. Cada um destes partidos trabalha no horizonte de manter a governabilidade e acumular forças para 94. O PMDB viabilizando seus governos estaduais e municipais e preparando-se para a disputa presidencial. O PSDB apostando no parlamentarismo e numa aliança partidária para governar o Brasil, depois das reformas políticas que defendem.

Retórica tautológica

A chamada governabilidade ainda não tem identidade, é uma tautologia governar para manter o governo. Daí decorre a necessidade do ajuste fiscal, para dar recursos ao governo, daí o discurso contra a miséria e os juros altos, o desejo de crescer e de impedir os aumentos de preços e ao mesmo tempo manter (ainda que com mudanças importantes) as privatizações e a famosa agenda da modernização. Como vemos, aparentemente todos estariam atendidos, a direita e a esquerda.

Para o PT, que pretende governar o Brasil a partir de 94, com Lula presidente, seja qual for o sistema de governo, está afastada a proposta de participar do governo, direta ou indiretamente. Nossa posição desde o início foi de independência, nosso único compromisso era com a posse legal e constitucional de Itamar Franco. A questão de fundo era a relação que deveríamos manter com o governo Itamar, o tipo de oposição a fazer e qual o nosso papel no Parlamento e na sociedade.

Nossa posição era de que o PT, a partir da posição correta de não participar do governo Itamar, deveria disputar na Câmara dos Deputados, junto a nossos aliados no governo e na sociedade, para que o novo governo rompesse com a herança neoliberal de Collor. E, a partir de um programa mínimo - definido pelo Diretório Nacional antes mesmo do impeachment -, deveríamos pautar nossa relação com o governo Itamar Franco. Levando-se em consideração a disposição do governo para o diálogo e a participação de nossos aliados no governo, o PT estaria aberto à negociação, aos acordos pontuais que visassem a continuidade do desmonte da máquina de corrupção e tráfico de influência do esquema PC-Collor, as reformas políticas democráticas e uma nova política econômica.

Esta proposta atende às peculiaridades do momento histórico que estamos vivendo e credencia o PT como alternativa de governo em 94. Não inviabiliza nossa política de alianças, não afeta nossa independência do governo Itamar Franco, nem impede nossa oposição à continuidade da política neoliberal ou à manutenção do atual modelo econômico-brasileiro.

A realidade é que queremos e vamos governar em 94, e antes vamos disputar as eleições gerais. Os problemas que estão colocados hoje para o país estarão colocados para nós, para nosso governo. Temos todo interesse que durante o governo Itamar Franco se criem as condições para saídas e soluções e, principalmente, que não se agrave a situação administrativa e financeira da União e o quadro recessivo e social brasileiro.

Para disputar e ganhar as eleições de 94 e governar o Brasil, dependemos do desenlace do governo Itamar, do plebiscito e da revisão constitucional.

O plebiscito de 21 de abril sobre regime e sistema de governo traz novamente à tona a velha disputa entre elitismo-autoritarismo x democracia participativa. Como no passado, nossas elites querem se utilizar da questão do sistema de governo para manter ou mesmo agravar o caráter elitista e autoritário das instituições políticas brasileiras. Incapazes de governar o país a partir das instituições que organizaram na Constituição de 88, agora se apegam à necessidade de reformas institucionais para reforçar seu domínio político-institucional. Por isso se recusam (presidencialistas e parlamentaristas) a discutir as reformas democráticas na composição da Câmara dos Deputados, no papel do Senado, na legislação eleitoral e partidária, na administração pública e na lei de concessões de canais de rádio e TV. Quando falam em reformas na legislação partidária e eleitoral, o fazem com o único intuito de restringir a participação política e elitizar o processo decisório. Não tocam na questão do voto facultativo e só falam em voto distrital como saída para seu crescimento eleitoral.

Operação desmonte

A questão de fundo colocada para o PT e para as forças políticas e sociais democráticas é o desmonte institucional do atual regime político elitista e a radicalização da democracia, inclusive com o aumento de participação popular na elaboração legislativa, no controle dos serviços públicos e dos fundos sociais, nas consultas sobre decisões de governo e prioridades nacionais ou mudanças constitucionais, através das emendas populares, eleições de promotores e juízes, referendos e plebiscitos.

A disputa do plebiscito de abril, que já começou na elaboração da nova lei partidária, não se resume portanto ao sistema de governo, mas diz respeito ao grau de democracia e participação popular que teremos no Brasil a partir da revisão de 93 e de certa forma definirá, também, as condições da disputa eleitoral de 94 e do governo a ser empossado em janeiro de 95.

Mas a experiência da luta contra a ditadura, das diretas e da luta contra Collor, demonstra cabalmente que somente com uma ampla política de alianças e com mobilização popular será possível realizar mudanças e reformas democráticas no Brasil. Não bastassem os exemplos do passado, o impeachment de Collor mais uma vez colocou na ordem do dia a participação popular na política e nos negócios públicos como decisiva para derrotar as forças da direita e do atraso. Por isso, em 93, qualquer político terá que responder a esta questão: como mobilizar a sociedade, as entidades, associações, juventude, movimentos populares e sindicais para a disputa em torno das políticas do governo Itamar, do plebiscito e da revisão constitucional? Esta é uma tarefa que o PT precisa assumir em 93/94 como fundamental não só para barrar a continuidade da política neoliberal e defender uma alternativa, como para realizar as reformas políticas democráticas e preparar a vitória de Lula em 94.

Sucessão de obstáculos

A recessão, o desemprego, o aumento da violência e da criminalidade colocam obstáculos à mobilização na área sindical e popular. O momento político, no entanto, é propício, e sem exigir o abandono da pauta de reivindicações e de luta, permite que se viabilize uma alternativa de governo e reformas capazes de implementar uma outra política econômica para o Brasil.

Independentemente de nossa defesa do parlamentarismo democrático republicano e de nossa convicção de que este sistema de governo é mais democrático e oferece condições institucionais para um governo popular de reformas no Brasil, precisamos estabelecer, parlamentaristas e presidencialistas do campo democrático-popular, uma agenda de reformas e trabalhar por um programa comum para 94. Este programa deve ser apoiado numa ampla mobilização popular, sob o risco de tanto no plebiscito como na revisão sermos derrotados pela direita conservadora. É evidente que a disputa em 94 está não só ligada como é uma decorrência destas disputas de 93. A vitória eleitoral em 94 de Lula, do PT e de uma coalizão de centro-esquerda depende de nossa capacidade de aglutinar forças políticas e sociais neste processo, criar alternativas ao governo Itamar, governar as cidades com coalizões e com avanços sociais e políticos, exercendo a hegemonia política, num verdadeiro ensaio para 94.

Duas questões de fundo estarão presentes durante todo o ano de 93: a elaboração de um programa de governo para 94 e a política de alianças.

A questão do programa de governo passou a ser o calcanhar de aquiles da esquerda e de qualquer proposta de governo popular. Nossa própria experiência de governo no plano municipal já demonstrou os riscos que corremos. Experiências internacionais de governos populares têm levado a impasses e derrotas, senão a retrocessos programáticos e ideológicos, quando partidos com compromissos populares e socialistas assumem abertamente o receituário liberal para reativar economias e governar.

No caso específico de nosso país, a situação se complica devido à crise estrutural que vivemos, combinando a falência do Estado a uma estagflação que já dura doze anos, além da incapacidade de sair da crise com as tradicionais políticas econômicas monetaristas e fiscais. Está evidente que o Brasil precisa de um novo projeto nacional, de uma mudança radical na sua estrutura sócio-econômica e de poder. A própria questão do Estado Nacional volta a ser debatida e há riscos evidentes de uma desagregação social, além dos sintomas regionalistas. Nossas elites se mostram incapazes de pensar o Brasil como nação soberana, desprezam nossa capacidade nacional e não levam em conta o potencial de recursos naturais, mercado interno e base industrial e agrícola que o país possui, em seu afã mimetista de copiar estratégias dos países capitalistas centrais com os resultados desastrosos que a era Collor tão bem representou.

Portanto, qualquer projeto de governo tem que considerar a questão nacional e as reformas estruturais, o que implica uma política de alianças. Por isso faz-se necessário construir uma coalizão de centro-esquerda que expresse esta política e viabilize um bloco social e uma base parlamentar para o programa radical de reformas. Isto só será possível se o campo popular for capaz de apoiar um programa de governo e dar sustentação política com mobilização popular a este governo. Do contrário será o imobilismo, o recuo para as concessões e para a governabilidade pela governabilidade.

Nenhum governo popular poderá administrar o país na base de políticas conjunturais. Os problemas de fundo estão colocados e ninguém governa sem enfrentá-los: reforma do Estado, combate à miséria, crescimento econômico, desenvolvimento tecnológico, distribuição de renda, integração internacional, além das questões democráticas. As próprias Forças Armadas e mesmo importantes setores do empresariado já colocam esta pauta na ordem do dia e afirmam que sem um projeto nacional o Brasil não sairá da crise; pelo contrário se consumirá nela.

Políticas de alianças

A questão da política de alianças vai se tornando cada vez mais complexa para o PT. Participamos de governos de outros partidos (PSDB, PPS, PSB), mantemos alianças com partidos que estão no governo Itamar. Simultaneamente, aumentam as diferenças e divergências sobre questões como a reforma do Estado e as reformas políticas e está colocada a complexa questão das alianças para as eleições gerais de 94, para governadores e deputados, além de 2/3 do Senado e da Presidência da República. Não existe alinhamento automático, sem acordos com outros partidos, como a própria eleição de 92 já demonstrou.

Se temos obstáculos, temos também as campanhas e vitórias de 92, os governos de coalização de 89-92, os próximos que vamos realizar e nossa luta conjunta contra Collor e pelo impeachment. A questão das alianças é vital para o PT. Sabemos que não podemos e não devemos abrir mão delas. Precisamos de uma maioria no Congresso Nacional para governar e de apoio nos estados e cidades de grande porte, além de uma ampla mobilização popular para levar à prática um programa de reformas políticas e econômicas que enfrentará resistências e romperá com privilégios e com a atual estrutura de concentração de riquezas. Assim, nossa principal tarefa em 93 é consolidar uma aliança partidária visando 94, com base num programa de governo e de mudanças.

O desafio está lançado, acredito que estamos à altura, nós e nosso povo, que tem demonstrado ser superior a suas elites nos momentos de crise.

José Dirceu é deputado federal e secretário-geral do PT.