Mundo do Trabalho

As perspectivas generosas de emancipação humana, tão caras a Marx, foram ou estão sendo pouco a pouco trocadas pelos valores da acomodação social-democrata. Ao movimento sindical impõe-se a decisão: vamos elaborar um programa de emergência para gerir a crise do capital sob sua ótica ou avançar na elaboração de uma alternativa?

A crise que atinge o mundo do trabalho, seus organismos sindicais e partidários é de proporções ainda não de todo assimiladas. Sua intensidade e agudeza devem-se ao fato de que, simultaneamente, atingiu a materialidade e a objetividade do ser-que-vive-do-trabalho. Não foram poucas as transformações vivenciadas nesta última década, atingindo centralmente os países capitalistas desenvolvidos, mas com repercussões fortes, decorrentes da mundialização e globalização do capital, no conjunto de países do Terceiro Mundo, especialmente aqueles intermediários, com um significativo parque industrial, como é o caso do Brasil.

Indico, a seguir, alguns elementos que, no seu conjunto, compõem a causalidade deste quadro agudamente crítico: a automação, a robótica e a microeletrônica possibilitaram uma revolução tecnológica de enorme intensidade. O taylorismo e o fordismo já não são únicos, convivendo, no processo produtivo do capital, com o "toyotismo", o "modelo sueco", entre outros. Tais mudanças têm consequências diretas no mundo do trabalho, especialmente na classe operária. A flexibilização da unidade fabril, a desconcentração da produção, a arrasadora desregulamentação dos direitos do trabalho, os novos padrões de gestão e "envolvimento" da força de trabalho, como os Círculos de Controle de Qualidade (CCQ), experimentados no Japão – em realidade uma apropriação do fazer e saber do trabalho, sob o comando manipulatório do capital dos nossos dias, levando o estranhamento do trabalho (no sentido marxiano) ao seu limite – tudo isso, feito sob um "inquestionável domínio" da "produtividade" e da "modernidade social", acabou afetando a forma de ser do proletariado fabril, tradicional. A classe-que-vive-do-trabalho metamorfoseou-se.

Se já não bastassem estas transformações, a crise atingiu diretamente a subjetividade do trabalho, sua consciência de classe, afetando seus organismos de representação, dos quais os sindicatos e os partidos são expressão. Os primeiros, os sindicatos, foram forçados a assumir uma ação cada vez mais defensiva, cada vez mais atada ao imediatismo, à contingência, regredindo em sua já limitada ação de defesa de classe no universo do capital. Gradativamente foram abandonando seus traços anticapitalistas visando preservar a jornada de trabalho regulamentada, os demais direitos sociais já conquistados e, quanto mais a "revolução técnica" do capital avançava, mais lutavam para manter o mais elementar e defensivo dos direitos da classe trabalhadora, sem o qual sua sobrevivência está ameaçada: o direito ao trabalho. ao emprego.

É nesta contextualidade adversa que se desenvolve o sindicalismo de participação em substituição ao sindicalismo de classe. Participar de tudo .... desde que não se questione o mercado, a legitimidade do lucro, o que e para quem se produz, a lógica da produtividade, a sacra propriedade privada, enfim, os elementos básicos do complexo movente do capital. As perspectivas generosas da emancipação humana, tão caras a Marx, foram ou estão sendo pouco a pouco trocadas pelos valores da acomodação social-democrata. Entre o estrago neoliberal e a bancarrota do Leste Europeu (equivocadamente assimilada por enormes contingentes da esquerda como o "fim do socialismo e do marxismo"), o universo político e ideológico do mundo sindical de esquerda, incapaz de buscar novas alternativas socialistas, refundidas, redescobertas e radicais, se insere cada vez mais na preservação do chamado welfare state, no universo da ação social-democrata. A luta pelo controle social da produção, presente com intensidade nos anos 60/70 e em tantos outros momentos da luta dos trabalhadores, parece cada vez mais distante. O moderno é o mercado, a produtividade, a integração, a negociação, o acordo, a conciliação, a concertação.

Incapaz de apreender a amplitude e a dimensão da crise do capitalismo, postado numa situação desfavorável que lhe obsta a possibilidade de visualizar e agir para além do capital, o sindicalismo, em seus traços e tendências dominantes, conduzido pelo ideário que tem conformado suas lideranças, a cada passo dado recua a um patamar anterior, assemelhando-se a um indivíduo que, embora pareça caminhar para frente, desce uma escada de costas, sem visualizar o último degrau e menos ainda o tamanho do tombo. Cada vez mais atuando sob o prisma institucional, distanciando-se dos movimentos sociais autônomos, o sindicalismo, vive uma brutal crise de identidade. Penso que se trata mesmo da mais aguda crise no universo do trabalho, com repercussões fortes no movimento dos trabalhadores. A simultaneidade da crise, tanto na materialidade quanto na subjetividade da classe-que-vive-do-trabalho, a torna muito mais intensa. Quais foram as consequências mais visíveis destas transformações?

No que diz respeito ao mundo do trabalho, as respostas são complexas e envolvem múltiplas processualidades que aqui somente podemos indicar, de modo a tentar configurar um esboço explicativo para a crise que assola a classe trabalhadora e em particular o movimento sindical. É visível a redução do operariado fabril, industrial, gerado pela grande, indústria comandada pelo binômio taylorismo-fordismo, especialmente nos países capitalistas avançados. Porém, paralelamente a este processo, verifica-se uma crescente, subproletarização do trabalho, através da incorporação do trabalho precário, temporário, parcial etc. A presença imigrante no Primeiro Mundo cobre fatias dessa subproletarização. Ora se confundindo, ora se diferenciando desta tendência. há um fortíssimo processo de terceirização do trabalho, que tanto qualifica como desqualifica e com certeza desemprega e torna muito menos estável a condição operária. Deslancha o assalariamento dos setores médios, incorpora-se o trabalho das mulheres no processo produtivo. Há qualificação em vários setores, como no ramo siderúrgico, acarretando, enquanto tendência, um processo de intelectualização do trabalho industrial (o trabalhador como "supervisor e regulador do processo de produção", conforme a antecipação genial de Marx nos Grundrisse), e desqualificação em outros, como no mineiro. A processualidade é complexa e multiforme e tem como resultado uma classe trabalhadora mais heterogeneizada,fragmentada e complexificada.

O sindicalismo não permaneceu inume a estas tendências: diminuíram as taxas de sindicalização, na(s) últimas) década(s) nos EUA, Japão, França, Itália, Alemanha, Holanda, Suíça, Reino Unido, entre outros países. Com o aumento do fosso entre operários estáveis e precários, reduz-se fortemente o poder dos sindicatos, historicamente vinculados aos primeiros e incapazes, até o presente, de incorporar os segmentos não estáveis da força de trabalho. Houve, na década de 80, redução do número de greves em vários países do centro. Aumentaram os casos de corporativismo, xenofobia, racismo, no interior da própria classe trabalhadora. Tudo isso permite constatar que o movimento sindical encontra-se numa crise de proporções nunca vistas. Que atingiu com intensidade, na década de 80, o sindicalismo nos países avançados e que, na virada de 80 para 90, tocou diretamente os países subordinados, especialmente aqueles dotados de um parque produtivo relevante, como o Brasil. Quando se reflete sobre as transformações vivenciadas no sindicalismo nos países centrais e seus paralelos com aquele praticado no Brasil, é preciso fazer as devidas mediações. Participamos de um contexto econômico, social, político e cultural que tem traços universais do capitalismo globalizado e mundializado, mas que tem singularidades que, uma vez apreendidas, possibilitam resgatar aquilo que é típico deste canto do mundo e, desse modo, reter a sua particularidade. Trata-se, portanto, de uma globalidade desigualmente combinada, que não deve permitir uma identificação acrítica ou epifenomênica entre o que ocorre no centro e nos países subordinados.

O nosso sindicalismo viveu, na década de 80, ora no fluxo, ora no contrafluxo das tendências acima descritas. Diria que, na contabilização da década, seu saldo foi muito positivo. Houve um enorme movimento grevista; ocorreu uma expressiva expansão do sindicalismo dos assalariados médios e do setor de serviços; houve continuidade no avanço do sindicalismo rural, em ascenso desde os anos 70; surgiram centrais sindicais, como a CUT; procurou-se, ainda que de maneira muito insuficiente, avançar nas tentativas de organização nos locais de trabalho, debilidade crônica do nosso movimento sindical; efetivou-se um avanço na luta pela autonomia e liberdade dos sindicatos, onde sobressai a presença organizacional dos funcionários públicos; houve aumento nos níveis de sindicalização, configurando-se um quadro nitidamente favorável para o novo sindicalismo ao longo da última década.

Porém, paralelamente a este processo, nos últimos anos da década de 80 acentuaram-se as tendências econômicas, políticas e ideológicas que inseriam o nosso sindicalismo na onda regressiva. A automação, a robótica e a microeletônica, desenvolvidas dentro de um quadro recessivo intensificado, desencadearam um processo de desproletarização de importantes contingentes operários, de que a indústria automobilística é um exemplo forte. As propostas de desregulamentação, de flexibilização, de privatização acelerada, de desindustrialização, tiveram no neoliberalismo do projeto Collor forte impulso.

Esta nova realidade arrefeceu e acuou o novo sindicalismo que se encontrava, de um lado, frente à emergência de um sindicalismo neoliberal, expressão da nova direita, sintonizada com a onda mundial conservadora, (dê que a Força Sindical é o melhor exemplo) e de outro, frente às próprias lacunas teóricas, políticas e ideológicas no interior da CUT. Estas lacunas lhe dificultavam enormemente o avanço qualitativo, capaz de transitar de um período de resistência, como nos anos iniciais do novo sindicalismo, para um momento superior, de elaboração de propostas econômicas alternativas, contrárias ao padrão de desenvolvimento capitalista aqui existente, que pudessem contemplar prioritariamente o amplo conjunto de nossa classe trabalhadora. Neste caso, além da combatividade anterior, era necessária a articulação de uma análise aguda da realidade brasileira com uma perspectiva crítica e anticapitalista, de nítidos contornos socialistas, de modo a dotar o novo sindicalismo dos elementos necessários para resistir aos influxos externos, à avalanche do capital, ao ideário neoliberal, no lado mais nefasto e, ainda, à acomodação social-democrática, que apesar de sua crise no centro, aumentou fortemente seus laços políticos e ideológicos com o nosso movimento sindical, apresentando-se cada vez mais como a única alternativa possível para se combater o neoliberalismo.

Não é preciso dizer que o quadro hoje é agudamente crítico. O sindicalismo da Força Sindical, com forte dimensão política e ideológica, preenche o campo sindical da nova direita, da preservação da ordem, da sintonia com o desenho do capital globalizado, que nos reserva o papel de país montador, sem tecnologia própria, sem capacitação científica, dependente totalmente dos recursos externos.

Na CUT o quadro também é de grande apreensão. Ganha cada vez mais força, dentro da Articulação Sindical, a postura de abandono de concepções socialistas e anticapitalistas, em nome de uma acomodação dentro da ordem, daquilo que, dizem, é o possível. O culto à negociação, às câmaras setoriais, ao programa econômico para gerir pelo capital a sua crise, está inserido num projeto de maior fôlego, cujo oxigênio é dado pelo ideário e pela prática social-democrática. Trata-se de uma crescente definição política e ideológica no interior do movimento sindical. É uma postura cada vez menos respaldada numa política de classe. E cada vez mais apoiada numa política para o conjunto do país, o país integrado do capital e do trabalho.

No campo que se reconhece como socialista e anticapitalista no interior da CUT, as dificuldades também são de grande monta. Como é possível resistir a uma onda tão intensa? Como é possível elaborar um programa econômico alternativo que incorpore os milhões de trabalhadores que não participam do mercado e que vivem da miséria da economia informal? Como é possível gestar um novo modelo econômico que elimine definitivamente a superexploração do trabalho? Quais são os contornos básicos desse modelo econômico alternativo, cuja lógica deverá iniciar o desmonte do padrão de acumulação vigente no país? Como é possível pensar numa ação que não impeça o avanço tecnológico, mas o faça em bases reais, com ciência e tecnologia de ponta desenvolvida em nosso país? Como é possível um caminho alternativo que recupere valores socialistas originais, verdadeiramente emancipadores? Que não aceite uma globalização e uma integração impostas pela lógica do capital, integradora para fora e desintegradora para dentro? Como é possível, hoje, articular valores inspirados num projeto que olha para uma sociedade para além do capital, mas que tem que dar respostas imediatas para a barbárie que assola o cotidiano do ser que vive do trabalho? Em outras palavras, como superar um caminho meramente doutrinário e buscar a difícil e imprescindível articulação entre os interesses imediatos e uma ação estratégica, de longo prazo, de clara conformação anticapitalista? São, como se pode perceber, desafios enormes.

Se, entretanto, consegui traçar um quadro crítico aproximado, o desafio mais urgente do nosso sindicalismo pode ser assim sintetizado: como se efetiva, no contexto de uma situação defensiva, uma ação sindical que dê respostas às necessidades imediatas do mundo do trabalho, preservando elementos de uma estratégia anticapitalista e socialista?

Recorro a uma síntese que me parece feliz, para expor o "espírito" da resposta que me parece possível indicar:

"Sob pena de divisão, desmoralização e derrotas certas, o movimento operário não pode se contentar em opor à crise a simples proclamação da necessidade de uma luta anticapitalista de conjunto. A crise confronta os trabalhadores com problemas concretos angustiantes: dispensas, perdas de empregos, fechamento de empresas, ataques aos salários e à assistência social, aceleração dos ritmos, ataques aos direitos sindicais e políticos conquistados. Recusar o combate defensivo, através de reivindicações imediatas, sob pretexto de que não há saída no quadro do capitalismo, é condenar toda a classe operária à impotência... Não há melhor meio para desencadear um combate geral do que alguns combates parciais plenamente coroados de sucesso, que demonstrem na prática, aos trabalhadores, que eles podem defender o emprego, os salários e os direitos conquistados.

Mas é verdade que todo sucesso em um combate defensivo será frágil e provisório. É verdade que a longo prazo a lógica do capital se imporá, na medida em que continuamos no regime capitalista. Essa lógica do capital coloca-se de forma especial contra a classe operária em um período de desemprego massivo e de depressão econômica. Por isso, todo combate defensivo deve se integrar em uma estratégia anticapitalista de conjunto, que procure efetivamente favorecer a mobilização do operariado por reivindicações transitórias, que sejam contrárias às causas fundamentais do mal que o atinge". (Ernest Mandel, "O movimento operário diante da crise", A crise do capital, Editora da Unicamp).

Que caminho vamos adotar: negociar dentro da ordem ou contra a ordem? Elaborar um programa de emergência para gerir a crise do capital sob sua ótica ou vamos avançar na elaboração de um programa econômico alternativo, formulado sob a ótica dos trabalhadores, capaz de responder às reivindicações imediatas do mundo do trabalho, mas tendo como horizonte uma organização societária fundada nos valores socialistas e efetivamente emancipadores? Pode-se responder que para tanto é preciso muito mais que a ação sindical. É verdade. Mas pode-se responder que a ação sindical no Brasil dos nossos dias seguramente auxiliará, numa ou noutra direção, o que lhe confere uma enorme responsabilidade. E que não se pode permitir a omissão de todos aqueles que estão envolvidos na luta dos trabalhadores.

Ricardo Antunes é professor de Sociologia do Trabalho na Unicamp.