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Mais do que qualquer outra cidade, o Rio de Janeiro acumulou forças contraditórias da ordem e da desordem. Alguns historiadores do século XVII já falavam da população carioca como um povo irreverente, indisciplinado e rebelde. A melhor expressão das formas de protesto popular naquele período foi a Revolta da Cachaça. Em reação a Portugal pela imposição de novos impostos e pela proibição à fabricação da já famosa aguardente, o povo se ajuntou em todas as cercanias da Casa de Câmara, exigiu a presença de seus oficiais e, entre gritos de "viva o Rei", destituiu o governador.
Mas foi nos primeiros anos da República que começaram a se estabelecer pactos informais entre cidadãos que passavam à margem das formalidades do sistema político. José Murilo de Carvalho nos conta sobre como, naquele período, havia algo no comportamento popular que não se encaixava ao modelo e à expectativa dos reformistas, tanto da elite como da classe operária. Para os anarquistas, o próprio carnaval revelava, do lado dos participantes, uma turba de bestializados.
Ao mesmo tempo que encontravam dificuldades de se incorporar aos mecanismos formais de participação política, os cariocas mostravam-se de grande iniciativa, carnavalizando suas formas de manifestação. Algumas delas, como a Festa da Glória, desde o Império, já se distinguiam por ser um momento de encontro da família real com o povo. No dizer de Raul Pompéia, era "ocasião de rendez-vous dos príncipes com a arraia miúda". Tipicamente, o encontro de governantes com o povo se dava fora dos domínios da política.1
Misturando ritmos portugueses e africanos - o fado, o samba, a tirana, a caninha verde - algumas festas, como a da Penha, começaram aos poucos a ser tomadas dos portugueses pelos negros. Aflorava uma cultura negra, não oficial, que ganharia um significado de resistência e de manifestação popular na história do Rio de Janeiro.
Esta cultura negra, com seus símbolos de resistência e revolta, era a todo momento chamada a se manifestar publicamente devido à intolerância com que eram tratados os setores populares pelas classes dominantes e pelas instituições.
A Revolta da Vacina é parte desta história. No início do século, com as obras de Pereira Passos, o Rio se transformava. A construção da avenida Central, hoje Rio Branco, custou a demolição de setecentos prédios ocupados pela população operária ou por casas de artífices e de pequeno comércio. Por razões de saneamento, foram demolidas pela saúde pública cerca de seiscentas outras habitações coletivas e setecentas casas. Sem moradia, a solução para a população mais pobre era a periferia, enfrentando os custos de transporte, ou as favelas2.
O "Bota Abaixo", como era chamado o prefeito, deixou muitos sem teto. Nas casas próximas ao centro, que escaparam do traçado, as pessoas se apertavam nas noites quentes. As ruas estavam repletas de desabrigados e desempregados, deserdados de uma cidade moderna feita à imagem e semelhança da sociedade industrial que nascia. A reação à Campanha da Vacina Obrigatória, desencadeada por Osvaldo Cruz, significava uma oposição ao tratamento arbitrário, no caso da vacina, e segregador, no caso das demolições. Capoeiristas e malandros ficaram nas páginas de jornais como heróis da revolta.
As formas contraditórias de entrosamento entre o legal e o ilegal, entre a ordem e a desordem urbana, manifestavam-se ora como festa ora como revolta. Esta teia de relações resultou numa cidade real escondida sob uma cidade formal, produzindo relações de poder invisíveis e não-institucionais. Surgiram os "Charles Anjo 45", o rei da malandragem. Um homem de coragem, protetor dos fracos e dos oprimidos. Mas marcou bobeira, e foi para numa colônia penal.
Uma duplicidade de mundos que se integram numa vivência da cidade que não pode ser dissociada e separada de uma cultura negra de resistência. Glória a João Cândido, legenda não só na zona portuária como na Pequena África do bairro da Saúde, por liderar a revolta da marujada contra os bárbaros chibatamentos. "Salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais. Glória a todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais". (Aldir Blanc e João Boseo, O mestre-sala dos mares).
Estes traços de cultura permanecem até hoje desafiando partidos e lideranças políticas. Paralelamente se constituiu uma distância entre o Estado e a população que legitima relações de poder entre comunidades e seus "benfeitores". O acúmulo da não-intervenção do Estado nas áreas carentes reforça e legitima o poder de contraventores e traficantes. A distância entre as formas ativas de associação da população e os caminhos institucionais de participação política se tornam maiores.
Relação de favores
Durante os últimos dez anos, o PDT se elegeu a partir das favelas e bairros populares onde cresciam esses poderes paralelos. A relação de clientela estabelecida com essas comunidades não permitia que se superasse a histórica distância entre ausência completa de direitos e cidadania ativa. Com Brizola, reforçou-se esta relação de favores concedidos à comunidade pelo Estado. No imaginário popular, através de sua imagem de pai e protetor, na esperança de favores concedidos pelo líder, não há lugar para uma nova cultura de diretos.
Com a crise econômica, reforçada pela ineficiência do governo Brizola, degradaram-se ainda mais as condições de vida da população pobre, abrindo caminho para o fortalecimento dos poderes paralelos da contravenção e do narcotráfico. As comunidades passaram a conviver de forma mais dramática com dois mundos.
Esta duplicidade de mundos, este entrelaçamento entre ordem e cultura negra estiveram presentes como argumento principal do enredo das últimas eleições.
César Maia, refém de sua campanha de direita, se colocou como o candidato da ordem, procurando identificar a campanha da Benedita com a marginalidade, os traficantes e os arrastões. Retomava o discurso da ordem e do progresso, a velha forma positivista e que mais tarde o golpe militar de 1964 transformou em segurança e desenvolvimento. Prometeu colocar o Exército na rua para enfrentar a violência urbana. Para tirar os camelôs das ruas, reservou a Polícia Federal.
Ao identificar a campanha de Benedita com a desordem e a marginalidade urbana, César Maia trouxe de volta o velho debate que produziu as teorias de remoções de favelas, as concepções de que favelado é um marginal que não se integrou à ordem urbana. Daí para as medidas autoritárias e segregadoras dessa população é um passo. E assim o fez com suas propostas de zona de segurança máxima e de impedir o acesso da população dos subúrbios às principais praias cariocas.
Mas a desordem é só uma ordem que exige uma leitura mais atenta, como afirmou Carlos Nelson dos Santos. E mais uma vez essa campanha mostrou que a desordem tem uma lógica onde predominam os poderosos interesses do processo de mercantilização da cidade. Uniram-se as forças conservadoras, os setores mais anacrônicos do empresariado e bancos especulativos de terras urbanas no estímulo a uma cultura do medo e do preconceito. Uniram-se os defensores da ordem que produzem a desordem. Foram cultivadas as mentalidades dos condomínios fechados, das casamatas, o medo de uma classe média que perdeu, pelos seus temores e pela própria realidade da violência urbana, a dimensão social e cultural da cidade.
Esta tendência de retomar uma visão autoritária e conservadora de planejamento urbano parece se expressar nacionalmente quando ouvimos o secretário de Habitação de Paulo Maluf afirmar que em favelas só tem bandidos. Expressa um movimento de reorganização das idéias da direita sobre a administração nas grandes cidades, reeditando as velhas teses levadas à prática no Rio de Janeiro à época de Carlos Lacerda, com incêndios criminosos em favelas inteiras.
Pelo que acompanhamos nacionalmente, as forças de direita tentaram produzir um antipetismo para enfrentar o acúmulo que o partido tem demonstrado na gestão das prefeituras. Acúmulo que afirma, com realizações, que a desordem é fruto de uma ordem urbana que tem que ser modificada. As experiências de inversões de prioridades na confecção do orçamento para as áreas de saúde, educação e habitação popular, as aberturas de canais de acesso da população à administração, a descentralização administrativa, priorizando os bairros mais desassistidos, expressam a mudança desta ordem de segregação urbana e um caminho de construção da cidadania.
Não se trata de propor uma nova ordem, mas de atribuir um significado novo às relações sociais que se constróem no Rio de Janeiro. Em vez do medo a solidariedade, em vez da segregação o direito à vida na cidade.
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Duas histórias da campanha
Nesta cidade em que o poder e seus representantes desenvolveram táticas de convivência com a desordem, ou com uma ordem distinta da prevista, onde a lei é desmoralizada em todos os domínios, a análise das eleições não pode estar restrita a um tom moralista.
Mesmo não tendo vencido, o Partido dos Trabalhadores e a Frente da Feliz Cidade saíram vitoriosos sob o ponto de vista político nas eleições para a Prefeitura do Rio de Janeiro. Ao lado da pequena margem de votos que definiu estas eleições - diferença de apenas 100 mil em um eleitorado de 3,8 milhões de eleitores -, a campanha afirmou uma das maiores lideranças populares em nossa história política. além do crescimento da bancada de vereadores, não só quantitativamente como pela representatividade social dos novos vereadores.
Contudo, uma eleição em dois turnos tem duas histórias. A do primeiro turno, esteve muito marcada pelas dificuldades do PDT em explicar o apoio de Brizola a Collor, somada à avaliação negativa que a população tem de sua gestão no governo estadual. Diante do vazio político e da quebra, no imaginário popular, da figura de Brizola como defensor das causas populares, Benedita cresceu como um novo fenômeno político, trazendo na pele e na sua história a marca de construção de uma nova identidade política para o Rio de Janeiro.
A campanha de Benedita rompeu os limites estabelecidos entre a cidade formal e a cidade real. Ainda que não mudasse, e nem poderia numa campanha eleitoral, a relação paternal e mítica que a população estabelece com seus líderes, a herança secular clientelista e corporativa, Benedita expressou um projeto de aproximação do povo marginalizado com a construção de uma cidadania ativa, reduzindo a distância entre o asfalto e o morro, ou seja, entre a cidade legal e a cidade real.
Expressou, também, a possibilidade de recuperação de uma identidade social da cidade do Rio de Janeiro pela possibilidade de legitimação e institucionalização da forte cultura negra. Ou seja, fazer formal o que já se fez real.
Por essa capacidade de resgatar duas dívidas de nossa história - a distância entre a população marginalizada e uma cidadania ativa e a cultura negra da cidade -, a campanha de Benedita ganhou os bairros populares. Não se derrotou Brizola apenas por sua posição frente ao impedimento de Collor, mas fundamentalmente pelo significado de resistência social e cultural construído na relação de Benedita com os setores populares. Identidade estabelecida no esfregar de dedos na pele, no grito de "sangue bom", no jeito ritmado de mexer as mãos, como uma mestra de bateria, cumprimentando as comunidades.
O segundo turno mobilizou as forças conservadoras contra este movimento de resistência política e cultural vitorioso na fase inicial da campanha. Assistimos a um embate entre duas propostas bem distintas para governar o Rio. Num campo a união dos segmentos progressistas e democráticos em torno de Benedita e de uma proposta de governo para todos, baseada na transparência e na descentralização como condições para a maior participação da sociedade nas decisões e na gestão da coisa pública. O objetivo fundamental dessa proposta é a inversão de prioridades e a conquista da cidadania, com a orientação de grande parte do orçamento para a área social.
Em outro, a união das forças conservadoras em torno de uma proposta que trabalha o imaginário popular com pianos tecnocráticos de impacto, tais como o Exército nas ruas para combater a violência: mas que desconsidera a necessidade de enfrentar o dramático problema social de nossa cidade e de nosso país.
A proposta de César Maia apenas atualiza a concepção das elites de que o problema social é um caso de polícia e atua no sentido de aprofundar o gigantesco fosso que separa os pobres e miseráveis da classe média e dos ricos.
Benedita só não foi vitoriosa eleitoralmente porque enfrentou a tríplice aliança do preconceito com o poder econômico e a máquina político-administrativa do prefeito Marcelo Alencar. Preconceito contra sua raça e origem social, ainda existente em alguns setores da sociedade. Poder econômico que, entre outros, permitiu a contratação de milhares de cabos eleitorais, para a boca de urna, a Cr$ 150 mil por pessoa. Máquina político-administrativa orientada pelo prefeito Marcelo Alencar que se jogou de corpo e alma na conquista de votos para César Maia, como revelou a postura de seu filho Marco Antônio Alencar e de vários de seus secretários.
Por que perdemos
Perdemos eleitoralmente porque, ao mesmo tempo que avançamos nas áreas populares, tivemos dificuldade de ampliar nossos votos na classe média. Não explicitamos claramente para a sociedade um projeto sobre a cidade que se confrontasse com aquele do medo e da reprodução da segregação social defendido por César Maia.
Deve-se ainda destacar o papel da imprensa que, em muitos momentos, não limitou seu apoio ao candidato do PMDB aos editoriais - às vezes de baixo nível. O tratamento desigual dado às denúncias contra um ou outro candidato foi típico desta postura.
Ao enfrentar este forte esquema das elites conservadoras e o aflorar de preconceitos contidos e submersos nos setores mais retrógrados e pouco esclarecidos da população, a campanha de Benedita tem um significado que transcende o resultado eleitoral. Inscreve-se como mais uma página de luta pela construção de uma cidadania plena em nosso país.
E esta é a razão por que afirmamos que a campanha é vitoriosa politicamente. Incorpora-se, desta forma, à vitória política que o PT e as forças progressistas obtiveram no plano nacional. Integra-se ao avanço de um projeto alternativo para o país, de modernidade sem exclusão social.
Administração tradicional
O prefeito Marcelo Alencar assumiu em 1988 uma prefeitura endividada e falida, com um orçamento de pessoal que ultrapassava as despesas correntes. As entidades da sociedade civil organizaram, naquele momento, o movimento SOS Rio de Janeiro, contribuindo para a recuperação da cidade. Este movimento poderia ter se constituído num processo mais amplo de um governo participativo. Não foi o que aconteceu.
Marcelo Alencar conseguiu, com esse movimento, condições de governabilidade para a recuperação econômica da prefeitura. A partir daí, centralizou seu orçamento, direcionando grande parte de suas despesas para a maquiagem da cidade. Não consideramos sem importância a manutenção dos parques e jardins da cidade. O que é inaceitável é que esta prioridade passe por cima do drama social que se avoluma diante do quadro de pobreza urbana e de degradação dos serviços públicos de educação, saúde e transporte coletivo.
A administração tradicional de Marcelo Alencar, fechando os olhos para uma realidade onde 60% da população da cidade ganha menos que três salários mínimos e os favelados crescem mais que a população total, não desenvolveu uma política compensatória com relação ao acúmulo de décadas de não-intervenção dos governos municipais nos bairros populares. A ausência desta intervenção-decisiva e necessária nas favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais - permite a ampliação dos "benfeitores e malfeitores" nestas comunidades e consolida o processo de fragmentação territorial, de territórios fechados e poderes paralelos.
A recuperação da credibilidade do poder público exige a mudança da lógica de exclusão social. Lamentavelmente, o prefeito Marcelo Alencar não só não priorizou as áreas sociais, como no caso de saúde e saneamento reduziu sua participação a 9% da despesa total, a menor de toda a década. ao mesmo tempo que aplicava 38% em urbanismo.
Diante da não-intervenção do poder público, surgiram os microterritórios, com seus códigos e formas de poder próprios. A melhor imagem deste confronto de poderes foi a foto da última inauguração de um Ciep realizada pelo prefeito Marcelo Alencar. No palco vazio, o prefeito, sem a presença da comunidade que, por ordem de um poder interno, tinha sido proibida de comparecer. Um pouco mais acima, no alto das casas, os traficantes armados assistiam à cena.
O prefeito não desenvolveu uma política capaz de enfrentar os problemas estruturais da cidade. A crise econômica que vive o país se sobrepõe, no caso do Rio de Janeiro, à crise estrutural local. Desde a década de 60 assistimos à perda da importância relativa de nossa economia no quadro nacional. Este é um processo de longo prazo que está associado à transferência da capital para Brasília e à fusão posterior do estado da Guanabara com o do Rio de janeiro. Nada foi feito para que superássemos a longa trajetória de decadência, esvaziamento do setor de serviços, desmonte de parques industriais e deslocamento de capital para outros centros. Contudo, o Rio de Janeiro, maquiado, continua lindo!
Cultura da desordem
Diante deste quadro de fragmentação social, de descaracterização do poder público, de formação de microterritórios, de poderes paralelos, de "benfeitores" e contraventores, cunhada pela mídia como cidade da violência e do medo, o Rio de Janeiro, cantado em verso e prosa, parece não ter solução.
Não há caminhos de resgate de uma identidade social no Rio de Janeiro se não desafiarmos esta cidade com um projeto que mexa com seus valores. Estamos falando do resgate de sua cultura, integrando-a a um processo transformador de construção da cidadania.
Mas essa cultura nasceu da desordem. O Rio de Janeiro, que se recria a partir das tradições dos negros e das revoltas populares, construiu, através da sua história, relações de poder onde o real se esconde sob o formal. Os momentos de crise ocorreram quando governos opuseram, de forma autoritária e segregadora, o formal ao real, a ordem à desordem. Trabalhar a ordem e a desordem como dois mundos, fixar esta polarização, é não entender a constituição da cidade.
O Rio perdeu, contudo, a dimensão de direitos e deveres individuais e coletivos. É necessário reconstruir a confiança no poder público. A cidade precisa ser humanizada em seu cotidiano. Nesse sentido, a principal marca de nosso projeto político é a afirmação da garantia da cidadania pelo poder público, é transformar cada morador desta cidade em um cidadão com plenos direitos.
A reconstrução de regras e normas de ordem pública passa pela compreensão de que é o grau de degradação econômica e da vida de seus moradores, aliado à não-intervenção do poder público, que produz os "benfeitores" e a negação de qualquer norma.
A construção da cidadania no Rio de Janeiro significa a revalorização da cidade como centro econômico, articulando necessidades e potencialidades locais; a revalorização do direito à vida na cidade, reconhecendo e estimulando a constituição de uma diversidade de atores sociais que afirmem sua identidade como grupo; a revalorização de uma ação cultural que sirva aos setores populares, que os dote de meios de expressão e de representação, com identidade e força.
Há, em geral, uma concepção de que não se pode realizar um projeto de desenvolvimento econômico no âmbito de um município. Ao contrário, nós acreditamos que o poder público deve ser o catalisador e promotor do encontro entre os interesses dos diversos atores e esferas econômicas. Trata-se de abandonar um papel passivo, dependente de outros agentes públicos e privados, constituindo-se numa peça chave com força para impulsionar os fatores capazes de potencializar uma nova concepção de desenvolvimento.
Alguns dados sobre o mercado informal demonstram que esta é uma ação básica para o enfrentamento da questão social em nossa cidade. Pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro indica que 81 % dos ambulantes já tiveram emprego anterior, sendo que 62% já tiveram, inclusive, carteira assinada.
Além disso, as condições de trabalho na rua são bastante adversas, destacando-se uma carga de trabalho média, por semana, de 57 horas. Esses dados indicam que a falta de emprego no setor formal, decorrente da fraca atividade econômica, é causa importante do aumento do número de ambulantes.
Uma ação municipal de recuperação econômica deve ser trabalhada incorporando a diversidade das potencialidades do Rio de Janeiro, em suas dimensões econômicas, políticas e culturais. Cidade diferenciada em suas identidades centro turístico, financeiro e tecno-científico, pólo cultural e de serviços -, ela não pode ser pensada apenas como balneário ou por uma determinada vocação.
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Reconstrução da cidadania
É necessário um projeto integrado de desenvolvimento que articule os diversos atores sociais. Sediando uma das maiores concentrações técnicas e científicas do Brasil, pode-se desenvolver no município um projeto que integre desenvolvimento econômico e técnico-científico com justiça social.
Um outro aspecto essencial à reconstrução da cidadania é a ação efetiva contra todas as formas de violência, desde aquelas ligadas à segurança pública como às que se constituem em formas de segregação social, de raça e de gênero, através de condições indignas de moradia, atendimento precário do sistema de saúde, educação ou transporte, das posturas e códigos preconceituosos que povoam o cotidiano da cidade.
Assim, quando falamos em formas efetivas de combate à violência, referimo-nos ao direito à vida na cidade assegurado por sistemas públicos eficazes e pelo combate a qualquer tipo de preconceito.
Mas isso não significa que possamos responder aos problemas de segurança pública dizendo que a questão é social. Segurança pública tem sido um tema maldito, que as prefeituras democráticas e populares têm dificuldade de enfrentar, não apresentando experiências relevantes que indiquem uma ação transformadora nesta área.
Uma concepção de segurança pública pensada no interior de um projeto de reconstrução da cidadania exige, mesmo sem se pensar idealisticamente a polícia, a reaproximação desta do sentido de justiça e da própria comunidade. A humanização do cotidiano da cidade deve orientar a mudança da relação entre polícia e sociedade.
O projeto de construção da cidadania e de humanização do cotidiano da cidade do Rio tem de ser acompanhado de medidas que permitam uma maior acessibilidade e transparência na administração pública, informando sobre suas rotinas e sobre direitos dos cidadãos. Uma política progressista de democratização da informação significa aumentar a capacidade de informar aos desinformados, de chegar aos marginalizados, de organizar os desorganizados, de dar identidade coletiva aos anônimos, de fazer difusão de massas dos bens culturais das elites, de promover a criatividade dos que não sabem que criam ou que podem fazê-lo, e, em consequência, de dar força social e influência política aos que cotidianamente não as têm.
No Rio de Janeiro, muito mais do que qualquer outra cidade, a política de participação não pode se limitar às organizações populares consolidadas, sindicatos e associações de moradores. Como o artista, devemos estar aonde o povo está, nas praças, nas ruas, nas escolas, em todos os locais onde se promovem formas de apropriação coletiva da cidade e de socialização do espaço urbano.
Todas estas idéias fundamentam a construção de um projeto progressista para o Rio de Janeiro. A superação do quadro atual só será obtida através de uma política de mobilização da sociedade carioca, que se contraponha às concepções conservadoras de César Maia, e constitua uma cultura de direitos no sentido de reconstrução da cidadania em nossa cidade.
César Maia se apropriou desta crise, colocando-se como um super-homem capaz de resolver sozinho os difíceis problemas políticos e sociais do Rio de Janeiro. A semelhança com Collor não se limita apenas às estratégias de marketing, tornando-se mais explícita quando se refere ao projeto neoliberal. César Maia praticamente tem afirmado que este era um projeto correto com o homem errado. A participação de Marcílio Marques Moreira e de Eduardo Modiano em sua equipe de governo permite pensar que ele procurará se colocar como centro rearticulador das forças sociais que apoiaram o projeto neoliberal de Collor.
Certamente a saída para o Rio não se fará pelos caminhos de um projeto neoliberal ou por propostas tecnocráticas. Em sua história política, como afirma José Murilo de Carvalho, a cidade não consegue transformar sua capacidade de participação comunitária em capacidade de participação cívica. A atitude popular perante o poder oscila entre a indiferença, o pragmatismo fisiológico e a reação violenta. A cidade e a cidadania continuam dissociadas; quando muito perversamente entrelaçadas.
A campanha de Benedita aproximou os cidadãos de sua história política e cultural, de identidades que se constróem mais próximas ao seu cotidiano, de possibilidade de uma cidadania ativa. O PT sai desta eleição contando nos seus quadros com algumas das lideranças mais representativas do município e, diante de um PDT em crise, como a força partidária com maior potencial de crescimento, quer na intelectualidade, quer nos setores populares.
O Rio de Janeiro permanece atônito, dividido e com medo, buscando perdidamente seus cidadãos. Temos o desafio de dar continuidade, nesta cidade mais que imperfeita, palco de políticas oficiais e invisíveis, ao resgate de sua identidade política e cultural e reverter a lógica de fragmentação e segregação que hoje marcam nossa vida urbana.
Franklin Dias Coelho é professor da Universidade Federal Fluminense.
Jorge Bittar é membro da Executiva Nacional do PT e vereador do Rio de Janeiro.
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