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Figura de destaque no PT do Rio de Janeiro desde sua fundação e deputado federal há mais de seis anos

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Vladimir Palmeira, 48 anos, pai de duas filhas, é hoje uma estrela em ascensão no PT. Coincidentemente, logo após o momento de Anos Rebeldes e dos caras-pintadas, este ex-líder estudantil de 68 (talvez o de maior destaque na época) tornou-se líder da bancada federal do PT, derrotando por apenas um voto seu antigo companheiro, amigo (e/ou concorrente?) José Dirceu.

Figura de destaque no PT do Rio de Janeiro desde sua fundação e deputado federal há mais de seis anos, até o fim do ano passado Vladimir nunca desempenhara um papel de primeira linha nas articulações do PT no plano nacional, agindo muito mais como franco-atirador (termo, aliás, que ele não aprecia). Todavia, este ano ele vem se destacando não apenas como líder da bancada e ativíssimo defensor do presidencialismo, mas também como figura de proa na luta política interna, aparecendo como uma grande referência política para todo o novo campo.

T&D ouviu este alagoano de Maceió (AL) sobre os anos rebeldes e o PT de hoje.

Você é filho de uma tradicional família alagoana. Seu pai, o senador Rui Palmeira, foi um dos líderes maiores da UDN e seu irmão, Guilherme Palmeira, foi governador de Alagoas pela Arena e hoje é senador pelo PFL. Como você se tornou de esquerda?

Vladimir Palmeira — Eu fazia parte da revista Seiva, no meu colégio, criada na década de 1950.

Em Maceió?
Não, foi no Rio. Saí de Maceió com 6 anos de idade, em 1951. A revista promovia debates de ordem cultural, política, literária. Víamos o constante choque entre o que aprendíamos em casa e a própria vida. Um amigo meu, o Sérgio Otero, de família comunista, viajou a Cuba e fez para a revista um artigo a favor da Revolução Cubana. Escrevi um artigo contra. A diretora da escola exigiu que a gente retirasse o artigo sobre Cuba, dizendo que aquilo era comunismo. Então fechamos a revista, porque não admitíamos censura.

Em que ano isso aconteceu e em que colégio você estudava?
Foi em 1961, 1962, e eu estudava no Mallet Soares. Aí começaram as disputas mais fascinantes da vida brasileira, no período imediatamente anterior ao golpe. Era a luta pela reforma agrária, pela reforma urbana, muita greve, um movimento estudantil muito oficialista, mas presente, um movimento operário muito forte no Rio. O movimento começou a crescer, e fui progressivamente para a esquerda. Já tinha gente mais à esquerda do que eu, como o Daniel Aarão Reis, que era meu amigo. Em 1962, formamos um grêmio no colégio, o Centro Cívico Olavo Bilac. Nesse mesmo ano comecei a militar na Ames — Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas. Em 1961, no Congresso Regional do Rio, votei com a direita. Em 1962 já votávamos com a esquerda. Foi o momento de ruptura.

Houve choque com a família tradicional de Alagoas?
Nunca houve problema. Eu tinha uma participação política limitada. A família só foi se preocupar quando eu comecei a aparecer em jornais. Em 1965 ou 1966, eu estava numa movimentação estudantil e saí no Última Hora. As amigas ligaram para minha mãe e, pela primeira vez, ela me disse para tomar cuidado.

Qual foi o impacto do golpe de 1964 sobre você?
Foi grande. Eu tinha feito vestibular para a Faculdade Nacional de Direito. O Caco (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira) era o mais tradicional do país. No dia 31 de março ficamos em vigília. Em 1º de abril a polícia invadiu a sede, deu uns tiros, matou gente. Eu estava exatamente nas escadarias, na entrada, ao lado do Renée, filho do Apolonio de Carvalho, quando eles atacaram.

Ele também estudava lá?
Não. Ele estava ali para se reunir com todo mundo. A [faculdade de] filosofia já tinha sido atacada, decidimos fazer do Caco o último reduto.

Vocês se identificavam com o governo do Jango [João Goulart], com a luta pelas reformas?
Eu me identificava com o [Miguel] Arraes [então governador de Pernambuco], com a luta armada. Naquele momento, tinha de tudo no seu governo: trotskistas, gente da AP (Ação Popular), do Partidão. O Nordeste era um caldeirão. Eu concluí que aquele movimento no Brasil não ia dar em nada se não houvesse uma preparação para a luta armada, para defender o governo legal. Eu era da ala mais radical, mas era um radical independente.

Cuba era uma referência para você?
Para mim nunca foi. Eu acho que sou um caso à parte.

E o Brizola?
O Brizola era. Eu cheguei a participar de uma reunião do Grupo dos Onze*. Era uma palhaçada. Com um pouco de bom senso se via que aquilo não ia dar certo.

E depois do golpe, como você retomou o movimento estudantil (ME)?
Logo depois do golpe ficou difícil fazer movimento estudantil. Foram abertos inquéritos policiais militares, inclusive no Caco. O clima na escola era de terror absoluto. De forma que eu só estudava. Mas iniciei e participei de um grupo de resistência. Todo mundo estava perdido, o Partidão estava quebrado, a AP e a Polop [Política Operária] tinham sido quebradas parcialmente. Esse povo perdido se juntou para formar um grupo. Não tínhamos nenhuma identidade política mas resolvemos lutar contra a ditadura. Fazíamos panfletagens clandestinas na avenida Rio Branco de cima de prédios. Era um sucesso. O pessoal parava, corria para pegar o papel e a gente se sentia gratificado. Tornei-me um especialista nos edifícios do centro do Rio de Janeiro.

Como foi o processo de reorganização?
Em 1965, as organizações voltaram a se recompor. E começaram as diferenças ideológicas no grupo, que acabou se dissolvendo. Nessa época o pessoal do movimento estudantil (ME) estava se reorganizando e me chamou para militar. Eu dizia “não milito em movimento pequeno-burguês”. Minha idéia era de que estava fazendo revolução. Mas não me restou outro caminho senão começar a militar no ME. Em 1964, houve eleição para o Caco, a primeira eleição democrática no Brasil depois do golpe militar. Basta dizer que foi manchete do Última Hora. Nossa chapa era “Pelas Liberdades Democráticas”, evidentemente sob a égide do Partidão. Ganhamos e 15 dias depois a polícia invadiu a faculdade.

 

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A repercussão do movimento estudantil da Europa era forte entre vocês?

O “Maio francês” foi, sem dúvida, um acontecimento de repercussão mundial mas, em 1967, já se falava em “poder jovem”, “poder negro”, “poder feminino” e tudo vinha muito mais dos americanos do que da movimentação européia. Do ponto de vista musical, a influência que marcaria o Tropicalismo e todo o avanço da música brasileira era de origem americana, para desgosto do Zé Dirceu, que, como você sabe, era um cara conservador e acho até que vaiou o Caetano.

Como foram suas primeiras intervenções no ME?
Em 1965 a ditadura criou a Lei Suplicy de Lacerda que proibia a organização livre dos estudantes. Decidimos criar um centro acadêmico livre, fora das instituições burguesas. A direita concorreu e ganhou o Centro Acadêmico oficial. Estávamos certos de que não ia acontecer nada mas, depois de um ano, sentimos a barra. Tínhamos mais força, éramos mais respeitados, mas a direita começou a meter a mão na massa, a editar carteirinha, tinha a representação legal na Congregação da Faculdade. E nossa escola continuava sendo invadida a cada dois meses. Resistíamos fazendo greve.

Como você vê a greve estudantil?
Sempre achei greve estudantil uma furada. Não acontece nada, salvo caso raro de greve política, um momento muito delicado para a reitoria ou para a direção da escola. A Convergência Socialista jamais prosperaria no ME porque não há greve geral que resolva o problema educacional!

O que aconteceu depois?
Num certo momento, decidimos fazer uma manifestação tripartite. A faculdade de filosofia ia puxar uma passeata em direção à Central do Brasil. Os funcionários públicos fariam a primeira assembléia depois do golpe, na Cinelândia, e puxariam outra passeata em direção à Central. E nós, do Caco, faríamos o julgamento do golpe. Pois bem, nesse dia foi editado o Ato Institucional nº 2, que extinguia os partidos, voltava a reprimir, abria novas cassações. E acabou a manifestação da Filô, acabou a manifestação dos funcionários públicos e uns gatos pingados foram para o Caco. O presidente da UNE era de São Paulo, o [Antônio] Xavier, da AP, e estava no maior drama se íamos ou não para a rua. Nós, do Caco, éramos uma turma que deu o que falar: Daniel Aarão Reis, Jorge Eduardo Saavedra Durão, Valter Beser, Antonio Serra, Heitor Silva, Sérgio Marques, o Boaventura, eu, uma turma bem pesada. Decidimos ir. Saímos para uma passeata na Central do Brasil, 80 pessoas andando pela calçada, um pouco encolhidas, meio envergonhadas. Quando chegamos na Central não havia classe operária industrial nos esperando, mas todo o lumpesinato abria alas e nos aplaudia. Foi um delírio! Subimos na escadaria e demos a palavra ao Xavier, que estava emocionado e fez um discurso ardente, como se dizia na época. Levantou-se um advogado que tinha pedido mais de mil habeas-corpus, um louco — fazia os pedidos à revelia dos presos e perdia todos —, e gritou: “Todos para a Cinelândia!” Começaram a ir atrás do advogado. Fomos também. Andamos uns 30 metros, chegou um carro do Dops e a polícia nos deu dois minutos para dispersar. Jogaram bombas, a manifestação simplesmente acabou. Saímos um pouco eufóricos. Bem ou mal, era nosso primeiro confronto de rua.

Como foi a repercussão deste episódio?
No dia seguinte o Jornal do Brasil, se não me engano, noticiava o Ato de Força, que era o Castelo assinando o AI-2; o Ato de Apoio — não sei se de políticos ou empresários; o Ato de Protesto, que era o nosso. Ficamos orgulhosíssimos. Depois disso nos preparamos para fazer o Congresso da UME — União Metropolitana dos Estudantes. Naquela época o Rio ainda era uma metrópole! Fui nomeado pela Frente de Esquerda para dirigir uma passeata em solidariedade aos estudantes que tinham sido brutalmente reprimidos. Tínhamos o hábito de ter um comando clandestino na manifestação. Fomos para a Cinelândia e juntamos 5.000 estudantes. Não sabíamos o que fazer com tanta gente.

Quem era do comando?
O comando era formado pelo Heitor Silva e por mim. Nós estávamos inclinados a dizer “chega, já foi uma grande vitória”. Nunca tínhamos feito coisa semelhante. Quando pensamos em parar, a massa estudantil rebateu: “Vamos continuar.” E, pela primeira vez, entramos na contramão da avenida Rio Branco. Foi uma atitude absolutamente espontânea. Com o tempo, descobrimos as virtudes militares ou organizacionais dessa tática porque, quando interrompíamos o trânsito, parávamos também os carros da polícia e a movimentação mais rápida da repressão. A passeata saiu da Cinelândia e foi para a Central do Brasil. Ali começaram as divergências. Eu comecei a subir nos carros e dizer “para a esquerda”, para o pessoal não ir para o Ministério da Guerra. Tinha um bronco que subia no carro e dizia: “Ministério da Guerra!” Pela primeira vez eu falei nos movimentos de massa. Pedia para dispersar e enfrentava os companheiros do PCdoB que diziam: “Temos de continuar, querem desmoralizar o movimento.” Foi a maior manifestação do ano, no Rio, e abriu um ciclo que nos levou às grandes manifestações de 1966.

E a história das mensalidades?
O governo decidiu cobrar anuidades nas faculdades públicas, dentro de um projeto para privatizar as escolas. E, com aquela sabedoria de séculos de dominação da burguesia, em vez de dizer que ia transformar a universidade pública em escola paga, começou cobrando uma anuidade mixuruca. Nós nos rebelamos e começou um amplo movimento no Rio, a partir da Escola de Arquitetura. O Caco só pagaria anuidades no segundo semestre. Nesse período houve eleições e eu fui eleito presidente.

Como você foi escolhido?
A escolha se deu na reunião da Frente de Esquerda. Votei e defendi a candidatura do Daniel, mas a turma da AP votou toda em mim porque achava que eu era mais radical. Fui eleito com tranqüilidade e comecei a liderar a luta contra as anuidades, que era, como descobri depois, uma luta suicida. O governo criou naquela época a possibilidade de pagar em banco. Enquanto a gente estava ali bloqueando a tesouraria, o pessoal já tinha pago. O estudante não pagava, mas os pais pagavam por ele. Perdemos o controle. O movimento foi se dissolvendo e, no último dia do prazo, vi que não tínhamos a maioria dos estudantes conosco. Decidimos pagar, foi uma crise de histeria, de choro, derrota total. E eu, que entrei com aquela história de que ia mudar o mundo, tive de explicar para os colegas que a luta era mais longa do que a gente imaginava e que, infelizmente, às vezes, a gente tinha de recuar. Recuei com dor na alma. Depois fui suspenso por um ano e o Caco foi dissolvido. Essa luta ganhou tanta repercussão que me tornei um cara conhecido. Para a época eu era relativamente bom orador. No segundo semestre, passeatas eram coisa comum. Bolamos que sempre que a polícia chegasse nos dispersaríamos, sem levar porrada, e dez minutos depois convocaríamos uma manifestação em outro canto. Começamos a fazer os comícios-relâmpago, subíamos nos postes e falávamos dois minutos. Transmitíamos um recado. A síntese verbal foi uma característica da minha geração. E, ao mesmo tempo, distribuíamos panfletos para a população. Em 1966 ou 1967 a polícia concluiu que não adiantava lutar contra a gente assim e começou a se infiltrar no ponto de partida da manifestação.

Como vocês despistavam a polícia?
Marcávamos um ponto de concentração, onde ia um líder e a massa que sabia da manifestação pelo jornal. Os setores organizados iam para outro ponto, que a polícia não poderia saber. Foi outra novidade.

Qual era a interpretação que vocês davam ao golpe?
Em 1966 percebemos que o golpe de 1964 era modernizante, que começava a fazer mudanças. A Universidade era ruim e os militares nos diziam: “Queremos mudar a Universidade, mas dentro de uma filosofia.” Descobrimos que tínhamos de ter uma proposta de Universidade, para mudar em outra direção. Defendíamos uma Universidade mais democrática, que fosse geradora de tecnologia, de cultura nacional. Na época tínhamos muito pejo em dizer que lutávamos pela reforma universitária. Dizíamos que queríamos uma revolução universitária. Na verdade, nós tínhamos um projeto de reforma e a ditadura, outro.

Nesta época começavam a se cristalizar diferenças na forma de enfocar o ME...
Achávamos que quem fazia a revolução e tinha a hegemonia era o proletariado. E que a pequena-burguesia era uma força que devia auxiliar e apoiar. O ME compunha a Frente Popular mas não podia liderá-la. A turma do [José Luís] Guedes, presidente da UNE eleito em Belo Horizonte em 1966, achava que o movimento estudantil tinha de ser a vanguarda e lançou o Movimento Contra a Ditadura, que devia envolver marinheiros, camponeses, soldados, operários e populares sob a liderança dos estudantes. Compreendíamos que isso era impossível. Depois de muita passeata fizemos uma concentração na Faculdade de Medicina do Rio. Ao final, em vez de sair, os estudantes decidiram ocupar a escola enquanto o reitor não atendesse às reivindicações. A faculdade tinha dois ou três andares e uma entrada lateral, de forma que, do alto, podíamos controlar, em tese, todo o movimento. O pessoal começou a fazer coquetéis molotov e preparar bombas de ácido. Criou-se um clima de radicalismo e a polícia cercou a faculdade. De madrugada, eles invadiram o prédio. Fomos nos refugiar no último andar, onde deveria ter ácido, pedra, mas não tinha nada. Eles fizeram a gente descer três andares apanhando, num corredor polonês. Era uma violência absurda: nego enfiava cassetete na vagina das meninas! Machista, fui proteger minha namorada e apanhei que nem boi ladrão, mas saí com a Ana. Prenderam uma porção de gente. Dos que participaram do chamado “Massacre da Praia Vermelha”, a grande parte nunca mais militou no movimento estudantil. Quem sobrou e decidiu continuar, virou quadro. Dali saiu a nata da militância que agüentou até 1968.

O movimento começava a amadurecer...
A partir dessa experiência de 1966, fomos compreendendo que o movimento estudantil tinha contradições objetivas com a ditadura e que a classe média tinha contradições objetivas com o capitalismo. Não era a mesma contradição da classe trabalhadora, mas tampouco era um movimento que se usasse de forma oportunista, como trampolim de acesso à classe trabalhadora. Nos distanciamos da concepção de utilização dos estudantes em nome da revolução e começamos a criar entidades representativas. Reorganizamos a UME. Derrotamos a influência do PC no Rio e entramos em conflito com o Guedes. Ganhamos o Primeiro Congresso da UME pós-64. Depois de muita pressão, o Daniel aceitou ser o presidente. Ele deu uma atenção especial ao Calabouço, que era um restaurante popular, onde, em tese, comiam os estudantes pobres mas, na verdade, comiam muitos estudantes e muitos pobres, que nunca estudaram e falsificavam carteirinhas para comer lá.

Onde ficava?
No aterro, perto do aeroporto Santos Dumont. Depois de uma intensa luta reabrimos o Calabouço, fechado arbitrariamente. O Daniel foi o grande quadro desse período e, com uma diretoria mínima, fez um trabalho extraordinário. Conseguiu levar a UME para as escolas independentes, começou a penetrar na Universidade Estadual da Guanabara e no diretório da sociologia da PUC. Começamos a discutir o movimento estudantil nacional. Tinha um congresso marcado para Valinhos. Eu reuni a Frente de Esquerda e disse: “Meu negócio não é mais estudante. Já dei minha contribuição, fui presidente do Caco. Estou a fim de ir para a fábrica”, que era o sonho de todos nós.

Virar operário?
Não, trabalhar no movimento operário. Eu fiz um acordo com o pessoal. Se eu elegesse o Daniel presidente da UNE não precisaria ser presidente da UME. Do contrário, eu teria de assumir a presidência da UME. Fomos para o Congresso de Valinhos como uma grande força política. Ganhamos das posições reformistas defendidas pelo ex-deputado Marcelo Cordeiro, que era um líder estudantil da Bahia, e pelo Safira, que era um quadro ideológico brilhante. Eles ficaram inteiramente isolados. Fizemos um trabalho arretado. Havia um setor chamado Política Operária que fechava com as nossas propostas. Mas na hora da divisão de cargos queria três. Deu um problema com a Ala Vermelha, que queria um cargo no Rio Grande do Sul. Resultado: na discussão da presidência, o [Luís] Travassos, que era ligado ao Guedes, ganhou do Daniel, por três votos. Nunca fiz uma defesa tão ardente como fiz a do Daniel. Joguei minha alma porque não queria mais ficar no ME. Não adiantou. Saí amargurado. Na correlação de forças, pela primeira vez a turma do Guedes ficou em minoria na UNE. Ganharam a presidência mas ficaram em minoria.

 

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Você assumiu a presidência da UME?

Assumi e comecei a desenvolver o trabalho do Daniel. A diretoria acabou rapidamente porque a concepção dos grupos era a de que, não tendo maioria, saíam. Fiquei isolado. Tentei ganhar pessoas novas como o Cid Benjamin, Franklin Martins, Clênia e o Belvedere, que hoje é dirigente de uma corrente trotskista. Juntamos esses companheiros e começamos a montar o trabalho. A UME representava 27 escolas. Quando terminamos a nossa gestão tínhamos 62. Em nível nacional, a concepção do Travassos era a luta direta contra a ditadura militar. Ele queria mobilizar, ir para a rua, achava que o trabalho nas escolas era irrelevante, que servia, eventualmente, como ponto de apoio. Do outro lado, eu, o Zé Dirceu, com o pessoal de Porto Alegre e Niterói, considerávamos que sem luta nas escolas não teríamos base para erguer um movimento estudantil sólido. Numa reunião do Conselho da UNE em fevereiro de 1968, no Rio, a diretoria da UME propôs que abandonássemos a luta contra o pagamento das anuidades como ponto central. A luta prioritária deveria ser por mais verbas para a Universidade pública. Fomos chamados de reformistas, de direitistas contumazes. Pois bem, ganhamos o Conselho da UNE por 28 a 27. Você vê que eu ganho por um voto faz tempo...

O que mudou na sua gestão?
Começamos a estruturar o ME de forma diferente. Fizemos um movimento por sala de aula, discutindo professor, currículo etc. O pessoal começou a ver a UME como entidade dos estudantes. Ao mesmo tempo, com a expressão de revolta popular no episódio da morte do Edson Luís*, com as manifestações de protesto, o conflito da missa da Candelária, a passeata do 1º de abril, começamos a contar com novos aliados: os políticos do MDB, os sindicatos pelegos etc. O movimento de 1968 foi a combinação dessa luta interna nas escolas com manifestações políticas, de cunho oposicionista.

A participação dos estudantes já era expressiva?
Em 1968 já tínhamos 2.500 estudantes organizados em grupos de cinco, nas escolas. Mas eu estava cansado de debater dentro da Universidade e não ter resultado. Cansado de fazer passeata, incendiar automóvel da polícia. E, afinal, um dia, depois de uma passeata, O Globo fez um editorial esculhambando o movimento estudantil, dizendo que a gente falava que queria dialogar mas o que a gente queria era fazer passeata. Eu peguei o mote e sugeri uma grande manifestação, bem organizada, para mostrar que queríamos dialogar. Surpreendentemente, o Jean Marc, presidente do Diretório Acadêmico da Escola de Química e da turma do Travassos, topou. Fizemos acordo também para ocupar a reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pusemos 60 caras armados de cacetes e bombas porque não queríamos ser massacrados de novo. Fomos para a manifestação separados em três colunas. Quando a polícia chegou perto, a gente começou a jogar pedras, bombas. Aí foi uma porrada. Tem uma frase célebre do [Elinor] Brito, que alguns dizem que é do Hélio Pellegrino. Apareceu um brucutu jogando água e de repente a água diminuiu de intensidade e de volume. O pessoal tinha corrido e o Brito gritou: “Pessoal, pode vir que o brucutu brochou.” Voltamos e fomos mais uma vez rechaçados. Fomos para a barricada, agitar. A polícia veio, mas sem carro. Era um negócio terrível aquele passo de ganso. O Marquinhos, da Economia, me perguntou qual era a orientação. Eu disse: “Descer o pau neles.” Quando eles chegaram a 50 metros, saímos correndo em cima da polícia, e eles começaram a correr da gente por aquelas ruas estreitas; e a gente caçando, roubando capacete e batendo. Foi o dia de nossa libertação.

O dia da caça...
Tomamos a avenida Rio Branco, botamos mais barricadas, tocamos mais fogo, fizemos de tudo. Aí, começou a barra pesada. Saímos pelas ruas do Rio, até que, de volta à Cinelândia, no Largo da Carioca, alguém tocou fogo num caminhão do Exército. Não se sabe se foi provocação, o fato é que depois o Jean Marc foi preso como sendo o autor mas, na verdade, ele tava tirando o pessoal de lá. A coisa ficou pesada: cavalaria, foguete. Não sei se é desse dia aquela célebre foto do menino que roubou o cavalo da polícia e saiu cavalgando, com o capacete. Entrávamos naquelas ruelas do Rio, jogávamos bolas de gude, caía cavalo. Ao mesmo tempo, eles davam porrada na gente. Aquilo virou campo de guerra. Essa agitação se chamou “Quarta-feira sangrenta”.

Em que mês aconteceu isso?
Em junho. Em todo o Brasil se viu a porrada. Nós tomamos conta da cidade. Na manhã seguinte, ocupamos algumas faculdades ali na Praia Vermelha. Havia uma reunião do Conselho Universitário e o nosso representante era o Carlos Alberto Muniz, atual presidente do PMDB do Rio, que era presidente do DCE legal da UFRJ. Ele sempre foi prudente e demorou muito na reunião. Uma hora, eu subi com uma tropa e quebramos a porta da sala do Conselho na porrada. Entramos e eu disse: “Agora, todo mundo descendo quietinho!” Eles desceram por um corredor polonês de 2 mil estudantes. Foram tratados, diga-se passagem, com a maior delicadeza. Desceram, fomos para o Teatro de Arena e botamos os professores lá, para dialogar conosco. A assembléia votou todas as resoluções do ensino público: que a reitoria teria reuniões mensais com os estudantes, que eles fariam um plano para a Universidade e incorporariam os estudantes no Conselho Universitário. E os professores sempre votando com a gente.

Como terminou a assembléia?
A polícia estava lá fora. Queriam que esperássemos até dez horas da noite, para nos deixar sair. Não éramos bestas, né? Eu fiz um discurso e o silêncio foi tumular. Mandei o pessoal sair com cacete, quebrando as portas da reitoria e das faculdades. Resolvemos sair pela porta principal porque ali havia uma saída à direita, pela praia, e outra à esquerda, pelo Botafogo. Parecia uma procissão. Milhares de estudantes mas nenhum barulho. Então, fizemos barulho a leste, pelos fundos. E uma parte da polícia se deslocou para lá. Depois, com o pessoal do Carlos Vainer na frente, fomos para o portão. A turma do Vainer foi para a direita, para dar a entender que sairíamos pela praia. E foram 60 caras em cima da polícia. A surpresa deles foi muito grande. Eu me atrasei e saí no meio. A polícia já estava batendo na gente ali. Passei pelo campo do Botafogo correndo. E comecei a parar os ônibus no caminho do túnel, para denunciar o massacre. Mas logo vi que a barra estava pesando muito, nem isso a gente podia fazer. Uma parte do pessoal foi detida. A polícia cometeu violências inomináveis: mijaram em cima das meninas, bateram de cassetete, humilharam, pisotearam. A imprensa toda denunciou.

Qual foi a reação de vocês?
No dia seguinte, passeata às oito horas da manhã. Nunca tínhamos feito passeata a essa hora. Fui para a praça. Fiz um comício, alguns estudantes estavam saindo do prédio do Dops e foram direto para a manifestação. Saímos, passamos ao lado de uma construção civil, cheia de pedregulhos, cacetes, tal. Pegamos tudo e, pela primeira vez, íamos andando e a população abrindo passagem e aplaudindo. Enchemos o peito e fomos em direção ao MEC. Apedrejamos tudo e voltamos para a Cinelândia. Nessa altura chegou a polícia, já atirando. Eu estava em cima de um poste, perto da Escola Nacional de Belas-Artes. De repente vi que estava sozinho. Saltei daquele poste e fui embora. O pessoal da Universidade Rural chegou atrasado, entrou na Rio Branco e começou tudo de novo. A manifestação generalizou-se. À tarde eu estava num bar e ouvia pelo rádio que o centro da cidade estava em chamas. A briga continuou até dez horas da noite. Virou uma luta popular, mataram um soldado, jogando uma máquina de escrever em cima da tropa. Há cálculos que acusam a morte de 25 pessoas. Oficialmente disseram que só houve um morto. Nessa altura, caí na clandestinidade. Decidimos chamar manifestação na terça-feira, 26 de junho, para pedir a libertação dos presos.

Foi a famosa passeata dos 100 mil?
Foi. Nós tiramos um manifesto dizendo que íamos incendiar a cidade do Rio, no sentido figurado. O Negrão de Lima foi para a televisão, dizendo “por favor, não toquem fogo na cidade”. Ele terminou liberando a passeata, deu ponto facultativo. O centro do Rio fechou. Todos os setores da população estavam lá, o pessoal ligado à cultura, mães de família, os padres e as freiras. Foi uma manifestação altamente expressiva. Não tinha operários. O Nelson Rodrigues não deixava de ter razão quando dizia: “Não tinha uma bandeira do Brasil, não falaram uma vez em Nação.” Ele gozava muito, dizendo que não tinha um operário e um preto na manifestação.

Como foi a sua relação com o Nelson Rodrigues?
Eu me divertia muito com o Nelson mas o pessoal tinha muita raiva dele. A crônica que o Ruy Castro reproduziu na biografia do Nelson, elogiosa a mim, não li na época. Mas li a seguinte, onde o Nelson dizia que eu implorei que não me elogiasse. Como ele me elogiou, pedi que fosse minha testemunha de defesa, em 1969.

Ele topou?
Topou. Aliás, não só tenho de agradecer a ele como à Tônia Carrero. Na situação de 1969 não era uma coisa fácil. Eu diria até que para a Tônia Carrero foi mais difícil do que para o Nelson, que era considerado um cara reacionário, de confiança do regime.

Você foi preso em agosto, não é?
É, foi numa batida policial. Estava andando na rua, a polícia me parou, pediu documento. Eu corri porque estava sem carteira de identidade, saí jogando papel fora, eles foram atrás pensando que era maconha, me prenderam como maconheiro.

Eles não sabiam quem você era?
Não. Aí pegaram uns papéis da faculdade, não entenderam direito. Assim que cheguei na delegacia, o delegado me reconheceu. Fui transferido para a Polícia do Exército. Fiquei preso pouco mais de um mês. Depois vim para São Paulo, clandestino.

No Congresso da UNE em Ibiúna, você era candidato à presidência?
Havia duas grandes lideranças além de mim: o Zé Dirceu e o Jorge Batista, de Belo Horizonte. Antes de discutir com a minha turma, chamei a imprensa e declarei que não era candidato e apoiaria um dos dois, que eram da minha ala. O Jorge ficou quieto. O Zé Dirceu, sempre muito ágil, pegou o avião, foi ao Rio e disse: “O Jorge disse que não é candidato. Você me apóia?” Ele tinha um belo trabalho em São Paulo, muito mais de organizador do que de movimento de massa. Mas o PC, o PCBR e o Colina, de Minas, disseram que só apoiariam a mim. Foi uma situação muito delicada porque eles não queriam o Zé.

Como foi sua reação na manhã em que a polícia chegou a Ibiúna?
Me acordaram de madrugada e disseram que a polícia estava a 12 quilômetros. Eu disse para avisar o Travassos, e perguntei: “Em quanto tempo vocês calculam que eles chegarão?” E o cara disse: “Lá pelas cinco horas da tarde.” Eu disse: “Então, deixa o pessoal dormir, depois do café da manhã a gente faz uma reunião e decide a saída.” E dormi. Quando acordei a polícia já estava lá. Isso foi em outubro de 1969.

Vocês foram reconhecidos imediatamente?
O Travassos foi reconhecido no meio do caminho. Eu não fui reconhecido.

Como foi a sua tentativa de fuga em frente ao presídio Tiradentes?
Eu saí pela porta de emergência. Aquela rua era muito movimentada. Saí pensando em ir para a USP, organizar o movimento. Atravessei a rua e parei num sinal, não passava um carro, não tinha um táxi. Fiquei inteiramente exposto, com o casaco melado de lama, e a polícia me viu. Entrei num estacionamento, me escondi embaixo de um carro para ver se os caras passavam. Eles terminaram me achando e aí voltei preso. Uma tristeza profunda, uma desgraça. Fui para o Dops. Só aí descobriram que eu era o Vladimir, toda a imprensa veio em cima.

O que você achou de Anos Rebeldes [minissérie exibida pela TV Globo]?
Os primeiros capítulos foram muito esquemáticos, como se a gente falasse de política 24 horas por dia. Criaram um clima um pouco artificial. Melhorou porque a Cláudia Abreu teve um papel excepcional, típico da época, contracenando com o [José] Wilker, que é um grande ator. O enfrentamento com o pai era comum na época. E foi muito bem trabalhado. A cena da briga do Wilker com a Cláudia Abreu foi fantástica. Acho que os dois e a Beth Lago salvaram a série. Achei toda a parte do Gabus Mendes e da Malu Mader fraca. Mas gostei e acho que jogou um papel com os caras-pintadas, pelo estímulo à rebeldia.

Trace um paralelo entre 1968 e o movimento estudantil dos caras-pintadas.
Ambas foram lutas políticas. A gente lutava contra a ditadura militar e os caras-pintadas lutaram pela substituição de um presidente da República. As semelhanças acabam aí. Hoje não há organização, não tem nenhum acúmulo. Em 1968 nós tínhamos quatro anos de movimento. Com muitos erros, mas em ascenso. Nas passeatas do Rio, de agora, acabava a manifestação, não se sabia o que fazer no dia seguinte. Não havia desdobramento. Nunca houve preocupação dos caras-pintadas de construir o movimento estudantil.

Voltando a 1968, você ficou preso sozinho?
No início havia uma turma de lideranças aqui de São Paulo. Depois o pessoal saiu. Ficamos o Travassos, o Zé Dirceu, o [Antônio] Ribas (presidente da UPES) e eu. Os três estavam juntos. Eu fiquei só. Fui para o Rio antes do Natal, fiquei preso na Marinha, passei a maior parte do meu tempo de cadeia sozinho.

Como você saiu?
Saí no episódio do seqüestro do embaixador americano, em 7 de setembro de 1969.

Você sabia na cadeia o que estava sendo planejado?
Não. Uma vez, minha mulher me avisou que o [Carlos] Marighella ia tentar me tirar da cadeia. Pedi a ela, pelo amor de Deus, que ele não fizesse isso, que eu o achava um porra-louca. Mas, quando fizeram o seqüestro, eu não sabia que sairia. Um dia, eles me acordaram de madrugada e me mandaram fazer as malas. Eu pensei: “Pronto, seqüestraram o americano e agora nós vamos pagar o pato!” Me empurraram para dentro do camburão. Dois policiais murmuraram no meu ouvido que, em represália ao seqüestro, iam matar dez presos políticos. Me preparei para morrer. Nesse momento entraram o Zé Dirceu e o Travassos, que me contou que estávamos na lista para sair em troca do embaixador americano. Fomos transportados para o Dops, onde conheci outros prisioneiros que iam ser soltos. No dia seguinte botaram a gente no avião e mandaram para o Rio. Quando eu desci, um policial do Dops, o mais conhecido da gente, disse que meus amigos do movimento estavam no seqüestro.

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Eles já sabiam?
Já. Eles tinham a casa do seqüestro cercada, já tinham fotografado. Pois bem, ficamos ali brincando. Na hora de tirar fotografia a polícia disse: “Riam, seus filhos da puta.” Aí trancamos a cara. Mas dez segundos antes estávamos rindo às gargalhadas. Não sabíamos que os pára-quedistas estavam chegando para acabar com a nossa graça.

Como foi isso?
Os pára-quedistas do Rio se insubordinaram, tomaram a Rádio Nacional, denunciaram que o governo tinha aceitado as condições dos seqüestradores e marcharam para a Ilha do Governador para impedir a gente de sair. Chegaram cinco minutos depois de o avião ter decolado. Fizemos uma escala em Recife para pegar o Gregório Bezerra, grande líder revolucionário brasileiro. Depois paramos em Belém para pegar o Chuchu, que era um cara de Belo Horizonte. De Belém, fomos para o México, amarrados uns contra os outros, ouvindo a gravação do discurso do Costa e Silva sobre a pátria. Foi a maior xaropada que já ouvi.

Como foi a chegada no México?
Houve uma grande recepção. Os brasileiros foram fantásticos e nos sentimos em casa. Eu, o Travassos e o José Dirceu éramos os mais conhecidos, mas consideramos que o pessoal da ação armada tinha hegemonia no Brasil e fizemos um pacto para calar a boca. O Zé Dirceu era mais simpático à ação armada. O Travassos e eu éramos francamente antipáticos. Embora tivéssemos uma posição a favor da luta armada, por motivos diferentes, achávamos que aquilo de assalto a banco não levaria a canto nenhum. O grupo da ALN queria ir para Cuba. Eu não queria porque já tinha uma concepção um pouco crítica e sabia que Cuba era reduto do Marighella.

Que tipo de crítica você tinha aos países socialistas nessa época?
Que eram ditaduras, que não havia direitos para os trabalhadores, que faziam uma política de conciliação de classes. Sempre fui defensor de um socialismo das massas trabalhadoras. Nunca compreendi um socialismo de elite, de vanguarda. É claro que eu não tinha o acúmulo de hoje. Sabia que ir para Cuba era ir para o isolamento. Os cubanos fizeram um apelo para que fizéssemos um ato de apoio à Revolução Cubana, e garantiram que poderíamos sair de lá na hora que quiséssemos. Decidimos ir, menos o Flávio Tavares, que ficou no México, e o Ricardo Villas-Boas, músico, que tinha um convite para ir para Paris. Eu tive atrito com os cubanos desde o desembarque. Vi muito milico, já comecei a ter má vontade. A política de Cuba sempre foi apoiar um grupo em cada país da América Latina e intervir na vida interna desses países e dos grupos. Eles infiltravam gente entre os revolucionários brasileiros. Eu não admitia que ninguém dissesse o que ia ser a revolução brasileira.

Quanto tempo você ficou em Cuba?
Três anos. Não me deixavam sair, inventando que eu não tinha documentos, que não tinham para onde mandar. Ficamos, na verdade, prisioneiros dos cubanos. Saí porque chegou o pessoal do Brasil, meus amigos estavam dirigindo o processo de luta armada e portanto passaram a ter as benesses do governo cubano.

E o que você fazia em Cuba?
Estudava dez, quinze horas por dia. Eles deixavam alguns setores da ALN trabalhar, mas nós, considerados muito críticos ao regime cubano, não podíamos trabalhar. Agradeço aos cubanos o pouco de cultura marxista que adquiri. Não serviu para defender o regime deles mas, para mim, certamente foi uma contribuição. Eu sou marxista até hoje, e boa parte da cultura teórica adquiri em Cuba. E não posso deixar passar a oportunidade de não só denunciar a ditadura cubana mas também resgatar o apoio que o povo nos deu. É um povo revolucionário, simpático, com bom humor.

Que reflexão você aprofundou, nesses três anos, com relação ao regime cubano?
Era uma ditadura do Partido Comunista, da burocracia. O trabalhador não tinha direito de greve, não podia se organizar. A grande safra estava em marcha para o fracasso e houve uma tentativa dos cubanos mais à esquerda, ligados ao Che, de democratizar o processo político. Eu assisti ao famoso comício de Fidel. Começou como uma autocrítica dele e da burocracia e terminou como uma crítica profunda às massas trabalhadoras. Muita gente diz, ainda hoje, que reconhece que existem problemas no regime político. Mas que as conquistas sociais são inegáveis e só foram possíveis dentro dos marcos desse regime.

Você partilha dessa visão?
Em Cuba eu não vi mendigos. Mas hoje a realidade está mostrando que, sem a União Soviética, Cuba não existiria. É um país sem recursos, empobrecido, que conseguiu fazer um grande trabalho social às custas do dinheiro que a União Soviética jogava lá. Foram conquistas sociais importantes na educação e na saúde. O que Cuba conseguiu, os países capitalistas desenvolvidos também conseguiram. Cuba conseguiu num país subdesenvolvido, com dinheiro da União Soviética. Tanto é que agora a ilha está à beira da falência. Não tem mais condições de manter a estrutura que tinha.

E quanto à participação popular, ela existia?
Eu conversei com as lideranças do CDR e lideranças populares, que mostravam que se alguém se queixava do poder do CDR a uma autoridade superior ia para a cadeia. Não era poder democrático nenhum, era poder de espionagem. Dois milhões de pessoas organizadas compulsoriamente, sem direito de criticar. Era uma máquina monstruosa, uma ditadura. Tudo aquilo confirmou algumas das minhas suposições. Primeiro, que a democracia é essencial ao socialismo. Em segundo lugar, aprendi como funcionavam os mecanismos de dominação em Cuba. E como um regime, em tese altamente progressista, oprime a cidadania. Eu vi casos concretos de repressão ao homossexualismo na base de tratamento com choque elétrico. Vi o machismo como expressão da dominação política, e, sobretudo, a ausência de liberdade política.

Como você saiu de Cuba e foi para o Chile?
Eu fui para o Chile em 1972, porque nosso sonho era voltar para o Brasil.

Clandestino, para fazer a revolução?

Não era exatamente isso. No meu caso e do Daniel Aarão Reis, já sacávamos que as coisas aqui iam mal e tínhamos uma concepção distinta. Queríamos voltar para o Brasil para salvar a esquerda da extinção. Nunca conseguimos voltar. O processo de extinção nos atingiu no Chile. Lá, aprendi mais uma vez que a experiência do reformismo não dá certo. Não foi por falta de conselho que os chilenos caíram naquela fria. Quando houve a primeira tentativa de golpe, em julho de 1973, nós, os uruguaios, os bolivianos e os argentinos dizíamos: “Já vimos a película”, e eles insistiam que o Chile era diferente. Minha posição era a seguinte: “Vocês estão completamente equivocados em pensar que ganham sem violência.” O Partido Comunista chileno tinha como palavra de ordem “não à guerra civil”. É uma coisa que me fascina até hoje. Um partido que, em pleno confronto social, diz não à guerra civil está se preparando para ser derrotado! O Partido Socialista estava dividido. O MIR [Movimiento de Izquierda Revolucionária] chileno era uma organização inexpressiva, não tinha a menor condição de resistência. Acho que a concepção do reformismo chileno vinha da falta de confiança na massa dos trabalhadores. Eu tive a convicção de que não há nada mais nocivo ao movimento popular do que o reformismo. Se a resistência estivesse organizada, teria impedido o golpe. Faltou disposição.

Qual seria a alternativa política no caso do Chile?
O governo tinha que se preparar para o golpe. Eu assisti manifestações de 1 milhão de pessoas. Você podia, movimentando as massas, dissuadir uma grande parte da opinião golpista e atacar aqueles focos intratáveis. Era perfeitamente possível defender o governo Allende, sobretudo baseado no movimento de massas. E, claro, usando a experiência militar.

A sua tese é de que a única maneira de evitar um confronto é se preparar para ele?
Claro. O movimento popular na Europa imprimiu suas reformas democráticas preparando-se sempre para o confronto. Nestas circunstâncias a classe dominante pode ceder. Se você vai despreparado, a classe dominante massacra.

No dia do golpe, o que você estava fazendo?
Na véspera, tínhamos ido a uma tangueria, dancei a noite inteira, bebi e fui dormir às quatro horas da manhã. Às sete e meia me acordaram para uma reunião. O golpe estava na rua. Fiz cinco pontos de contato e ninguém apareceu. Fiquei esperando o contato por dois dias, o tiroteio comendo na rua. Depois resolvi me refugiar. O [Fernando] Gabeira, a Vera Sílvia [Magalhães], a Angela [Cunha Neves] e o Jader [Cunha Neves] me levaram para a embaixada do México. Eles decidiram esperar porque estavam legalizados e eu era clandestino, não tinha documentos.

Por que você não ficou no México e foi para a Europa?
Na primeira vez em que eu fui para o México tinha KGB, CIA. Não havia a menor condição de segurança. Na segunda, o México não me queria, eu já tinha abdicado do asilo e fui expulso. Eu adoro o México, acho um grande país.

Você foi para a Bélgica porque ela te aceitou?
Não me aceitou. O único país do mundo que me aceitou foi a Iugoslávia. Evidentemente, eu não queria ir para lá, porque tinha uma visão muito crítica desses países do Leste Europeu. Para ir para a Iugoslávia, era preciso fazer a escala e passar um dia na Bélgica. Fiquei na marra. Pedi asilo, fui expulso. O movimento popular belga protestou e conseguiu que eu ficasse.

Você chegou a ser mandado embora?
Saiu a ordem de expulsão do país, mas eu estava escondido. Eles não conseguiram me localizar a tempo. Fiquei na Bélgica seis anos, me formei em economia pela Universidade Livre de Bruxelas.

Como foram os seis anos de Europa?
Primeiro, sofri com o racismo, para comprovar o que é a discriminação. Segundo, estudei durante cinco anos e aprendi os rudimentos do que sei. Estudando, reforcei a minha visão de que o capitalismo não é solução para a humanidade, embora dê bens materiais. Eu trabalhei como operário sete meses na Bélgica. Ficava impressionado como os belgas ganhavam bem. E comecei a perceber a importância que os operários europeus dão para as questões materiais. Vi que o regime capitalista não sobrevive só da taxa de lucro dos banqueiros, nem dos empresários, mas da consciência dominada que os trabalhadores têm.

Qual a sensação que você tem hoje em relação ao exílio?
O exílio é uma perda porque violenta a sua vontade, violenta seu senso de liberdade. Na base do exílio está uma solução arbitrária. Teve gente que tratou o exílio de forma construtiva, tentou estudar, aproveitar. Quem tratou o exílio de forma negativa ficou para trás ou pirou, como alguns companheiros que, inclusive, se mataram. Havia quem dissesse que o exílio era pior que a cadeia, porque o inimigo não estava ali em frente. Eu, particularmente, sempre odiei cadeia. No exílio você pode sair, ter um dia de sol, tomar cerveja no botequim. Não pode ser pior que a cadeia, mas não conheço um refugiado que não tenha passado por crises existenciais profundas.

Como é que a Anistia pegou você na Bélgica?
Eu estava acabando meu curso de economia. Havia uma greve de fome dos prisioneiros políticos brasileiros e eu ainda participei de uma greve de fome na Bélgica em solidariedade aos grevistas dos cárceres brasileiros. Fui à ONU, pagaram minha passagem, me organizei e voltei para o Brasil.

O PT já estava se articulando. Como você via o partido nesse momento?
Fora do Brasil nós víamos o PT com certa desconfiança, ainda achando que pudesse ser um movimento do sindicalismo comprometido. Nossos amigos que estavam na vanguarda aqui, que vieram na frente, já estavam integrados ao PT. Chegando, nós imediatamente sacamos que o PT era uma expressão do movimento dos trabalhadores.

Como foi seu engajamento no partido?
Nós fomos às reuniões, que eram bastante abertas. Havia uma grande massa quase independente ao PT. O Vainer e eu fomos aos primeiros encontros e começamos a defender teses de esquerda. Nós participávamos do núcleo Zona Sul, que era considerado naquela época o núcleo das estrelas, porque todo mundo que tinha sido da esquerda armada e desarmada estava ali. O Vainer e eu saímos delegados pelo núcleo, disputamos a chapa contra a turma da AP. Parece uma tradição. Fomos escolhidos delegados ao encontro estadual e lá fui eleito delegado nacional. Assim, fiz parte do congresso de fundação do PT.

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No PT você sempre foi uma espécie de franco-atirador. Por que essa opção?

Não é verdade. No Rio eu tinha um grupo, com Cid Benjamin, César Benjamin, Daniel Aarão Reis, Luiz Carlos, Glorinha [Glória Ribeiro] e outros. Depois vim morar em São Paulo, e mais tarde fui obrigado a ir pra Brasília, onde minha companheira tinha um emprego e a sobrevivência falava mais alto. Mas eu apoiava um setor no Rio que se chamava PT de Luta, que tinha trabalho e posição política próprios no partido.

Antes da Articulação?
Antes. Nós tínhamos uma posição por um PT de luta, de massas e democrático. No Rio tivemos uma certa posição de prestígio até 1983. Lá em Brasília eu militava na base, era do grupo dos independentes, e fazia questão disso. Quando voltei ao Rio a pedido da Executiva do partido para ser candidato a senador, em 1982, estava ligado a essa turma, que se dissolveu no decorrer daquele ano. Quando o pessoal fez a Articulação dos 113, se deu preferência, no Rio, aos sindicalistas, que eram nossos principais adversários. Era uma turma de extrema esquerda e da Igreja, que defendia o governo dos trabalhadores, defendia aquelas teses dos sovietes. A formação dos 113 se deu sobretudo por meio das bases sindicais e não por acordo político. Nós ficamos um pouco marginalizados, e desenvolvemos uma prática independente. Do ponto de vista nacional, nunca nos sentimos representados. Nunca formamos uma corrente ou tendência, embora eu não me sinta propriamente um franco-atirador.

Durante o 1º Congresso, você foi o único orador que conseguiu ser aplaudido por todo mundo, só que em momentos diferentes, porque ora você dava pau em um setor e era aplaudido por outro, ora acontecia o contrário.
Eu sou da esquerda do partido, sou contra a conciliação da direção nacional, sou contra a ala social-democrata, sou pela revolução. No entanto, sempre tive uma posição que me distinguiu da extrema esquerda. É que a extrema esquerda acha que você luta na instituição e não paga preço nenhum. Eu sempre defendi que a instituição tem um preço. Se você acha que compensa o avanço do movimento popular usando a institucionalidade, você a usa. Se você acha que não compensa, não pode ser por aí.

Fale um pouco sobre a administração Erundina [na prefeitura São Paulo].
O meu problema com a linha do partido é que ele começou a ser dominado pela institucionalidade. Quando a [Luiza] Erundina tomou posse eu procurei o Zé Dirceu, o Eduardo Jorge e o [José] Genoíno e falei que tínhamos de democratizar a prefeitura. Eles me enrolaram e não saiu nada de democratização. Foi esse o fiasco da Erundina em São Paulo. Como administradora acho que ela foi razoável. Tirando a questão dos transportes, a Erundina não fez uma administração má, mas eu acho que nós tínhamos de democratizar a prefeitura, não podíamos fazer uma administração como a Erundina escolheu, de governar como os outros partidos. Nós tínhamos de democratizar uma prefeitura burguesa, começar a descentralizar, fazer política com a população. E as prefeituras do PT não fazem isso. Na prática, quando o PT pegou as prefeituras, largou a classe trabalhadora e começou a fazer política de aparelho.

E quanto à Articulação, qual a sua posição?
De 1983 para cá a Articulação virou um bando. Lá no Rio, por exemplo, havia cinco tendências dentro da Articulação. Quando me chamavam para entrar nela, eu me perguntava: para quê? Me chamaram diversas vezes para integrar o Diretório Nacional. Mas qual o sentido? Preferi ficar defendendo minhas posições, sem me vincular a nenhum grupo. Eu digo sempre que fui inocente útil da Articulação porque quando era para dar pau na Convergência, o pessoal da Articulação pedia que eu desse. Se era pra tirar alguma posição impopular o pessoal gostava que eu defendesse. Hoje, pela primeira vez, estou pensando em me articular, não como tendência, mas um pouco como expressão do descontentamento das bases da Articulação com sua cúpula. Eu me identifico muito com esse setor. No Encontro que vem eu vou estar mais nisso, na expressão das bases da Articulação.

Como você vê a situação do PT, hoje?
Algum tempo atrás o Vainer e eu observávamos que, na história, um partido como o nosso, se for de massa tem de virar reformista, se for de quadros vira seita. O PT, como virou um partido de massa, com o nosso apoio aliás, está tendendo a ser um grande partido reformista e repetir o processo de partidos social-democratas. O PT não é social-democrata ao estilo do que é a social-democracia hoje na Espanha, na França: a representação política da burguesia. Mas o partido é social-democrata no sentido do início do século, um partido politicamente operário, politicamente contra as classes dominantes, mas já nos marcos do regime.

Você acredita em um modelo clássico de revolução?
As revoluções nunca foram iguais. O que há, sempre, é uma mistura de revoluções e reformas. A revolução não escolhe um país, a reforma não escolhe um canto. Acho que não deve ser fechada nenhuma saída política. Mas a experiência do mundo mostra que em escala universal não existe possibilidade de mudança sem conflito, portanto sem revoluções. O que eu critico na extrema esquerda brasileira é que ela sempre acha que a revolução está à vista, está presente. E a revolução não se inventa, é um processo social, em que forças até espontâneas amadurecem uma certa situação, em que a revolução se torna necessária. Quando essas condições existem você tem de dar um rumo a elas. Critico a direita do partido e o reformismo porque eles querem e torcem para que não haja revolução. Boa parte da cúpula do PT não banca nem meia revolução, quanto mais uma inteira.

Você foi eleito líder da bancada. Para muita gente foi uma surpresa a sua eleição, por um voto, derrotando a Zé Dirceu.
Primeiro, eu respeito muito o Zé Dirceu. Ele tem posições diferentes das minhas, mas é um grande quadro. Eu sempre gosto de fazer elogios a ele porque é um cara que tem mantido uma postura partidária, perdeu a eleição e se comportou de uma forma extremamente digna. O que me fez ser líder da bancada foi um descontentamento geral com a situação do PT. O pessoal acha que há uma panelinha que manda no partido. A eleição não foi um movimento contra o Zé Dirceu, contra a cúpula da Articulação, mesmo porque a Articulação está quebrada, dividida. Minha eleição, reunindo pessoas de diferentes posições, tanto da corrente moderada como da corrente radical, foi um recado para o partido de que o pessoal está de saco cheio de ser pau-mandado. É uma luta contra o enquadramento do PT em moldes tradicionais, pela democratização do partido. Estamos nos transformando num partido de funcionários. Não há mais militância voluntária no PT. A estrutura do partido é completamente burocrática, não engloba mais aquilo que a gente dizia que era a alma do PT, que era uma certa luta social, uma certa participação voluntária. O partido está precisando passar por uma grande renovação. Se o PT seguir nesse caminho, vai tirar da sociedade brasileira a possibilidade de optar por uma militância política diferente. Enquanto cresce eleitoralmente, ele perde a autenticidade, a característica de mudança social. O PT se transformar num partido convencional é a pior derrota dos trabalhadores brasileiros. Tenho fé que o partido, em 1994, se conseguir dar um salto para a eleição de um governo de esquerda, ousará democratizar a sociedade. O Encontro desse ano é o momento para saber se o PT vai recuperar sua capacidade de inovação e intervenção. Se não fizer isso ele vai virar um PTB da época moderna, mas não vai marcar a vida brasileira como a gente queria, como é o meu sonho.

Paulo de Tarso Venceslau é membro do Conselho de Redação de T&D. Ricardo Azevedo é diretor de T&D.

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