Sociedade

O algoz das miseráveis crianças brasileiras são as relações mercantis, que transformam esses garotos em excedentes do jogo de cartas marcadas imposto pelo mercado. Mesmo nos governos petistas, pode-se constatar que o resgate dos meninos de rua não foi uma prioridade. O partido precisa saldar imediatamente sua dívida na questão do menor

Existe uma questão do menor1 na sociedade brasileira, como resultado do tipo de desenvolvimento capitalista levado a cabo nas últimas décadas. Ela se encontra no cruzamento de vários fenômenos:

- a imigração para as cidades, produto da ausência da reforma agrária;

- a desintegração das famílias dos estratos mais baixos das classes populares;

- a crise da escola pública que, incapaz de reter grandes contingentes de crianças e adolescentes pobres, os expulsa;

- as políticas de segurança pública originadas nas ditaduras militares e aperfeiçoadas posteriormente, com sua mentalidade punitiva e de extermínio, junto à falência das instituições fechadas propostas para trabalhar com crianças e adolescentes considerados carentes, abandonados e infratores;

- a falta de políticas públicas para resgate do destino desses garotos; um discurso da morte elaborado e difundido através dos grandes meios de comunicação, que prepara as condições para o extermínio de parte desses jovens;

- um modelo econômico excludente, que faz de grande parte da nossa juventude, contingente excedente no mercado de trabalho.

A esses fatores é preciso acrescentar um outro, que caracteriza especificamente as crianças e adolescentes das classes populares: objeto de uma ação múltipla de aniquilamento físico, social e cultural, eles têm dificuldades particulares para se constituírem como sujeitos de suas lutas, por problemas de desenvolvimento psicológico, social e cultural, e não têm encontrado, no movimento popular, propostas e espaço que favoreçam seu difícil combate de resistência.

Mesmo nos governos do PT - especialmente nas grandes cidades -, pode-se constatar com tristeza que o resgate das crianças de rua não foi um tema prioritário no conjunto de tarefas a que eles se propuseram. No livro O modo petista de governar tampouco se reserva lugar prioritário para a questão. O PT não propõe uma ação específica para enfrentar o problema. A CUT tende a considerar que, uma vez resolvida a questão do desemprego, esses setores se integrarão, sem perceber que essa massa se encontra, em geral, por debaixo da situação da classe operária, num estrato que podemos designar como subproletariado, para onde são expelidos os trabalhadores que perdem seus empregos e não conseguem recuperá-los em alguns meses. Seu destino não é o mercado formal, mas a subsistência no limite da miséria absoluta, com residência precária, família em desagregação, filhos trabalhando nas ruas, decomposição social e física.

Esse conjunto de problemas faz com que a questão do menor seja o tema social central a ser atacado na nossa sociedade. A maioria dos filhos das classes populares vive em situação de miséria: 53% das crianças brasileiras vivem com até meio salário mínimo, situação que afeta 32 milhões de garotos. Oito milhões deles estão fora das escolas e vários outros milhões no limite de abandoná-las. Pelo menos 25% do orçamento das famílias das classes populares é constituído pelo trabalho de crianças e jovens menores de 18 anos. Ao mesmo tempo, em cada quatro pessoas vítimas de mortes violentas na cidade de São Paulo, duas são crianças e jovens das classes populares.

Uma sociedade que trata suas crianças dessa forma está moralmente doente de morte e seu algoz é o capitalismo de mercado, com suas relações mercantis, que transforma esses garotos em excedentes do jogo de cartas marcadas imposto pelo mercado. Eles estão demais, assim como os idosos - que já deram o que tinham que dar ao capitalismo -, os doentes físicos - que não podem produzir como antes -, os doentes mentais - que cometem o grave dano de não se adaptar à disciplina de trabalho das cadeias de produção -, excluídos todos eles da reprodução capitalista.

Essa nova situação, gestada ao longo das décadas anteriores, explodiu com toda sua agudeza nos anos 80. Foi a maior transformação operada na sociedade brasileira. Sua marca estava presente de corpo inteiro num pequeno filme projetado na televisão, em que uma mulher, caminhando por uma rua deserta, ao vislumbrar a imagem de uma criança negra andando em direção contrária, imediatamente muda de calçada e acompanha a criança com os olhos, como a esperar um ataque por parte dela.

O Brasil, um país que sempre se refugiou no futuro, como antídoto para a falta de um passado histórico glorioso e que, por isso, teve na apologia da felicidade como destino das crianças um dos motes de sua forjada identidade, começava a acertar contas com seu passado, seu presente e seu futuro. Já não havia lugar para todos nesse futuro. E, pior, as crianças pobres, antes dignas de piedade, de proteção, de ajuda, agora se tornavam ameaça ao futuro dos outros, dos bem-postos, dos que têm e decidem sobre o futuro.

A situação assumiu um novo caráter quando um delegado de polícia de São Paulo, em 1986, chegou a afirmar que os que cometiam crimes de colarinho branco e os meninos que assaltavam nas ruas representavam os dois maiores perigos à segurança pública no Brasil. Ficou patente, desde os anos 80, que estava em desenvolvimento uma guerra de extermínio contra esses meninos. Não apenas o capitalismo brasileiro não lhes reservava lugar no futuro, como eles passavam a ser uma ameaça para o presente, afetando a tranquilidade, o patrimônio e a integridade física dos integrados ao sistema. As imagens das escaramuças entre os meninos fugidos da Febem no ano passado e a PM na praça da Sé, em São Paulo, as imagens da guerra dos meninos e as das meninas da noite de Gilberto Dimenstein, assim como o livro de Caco Barcelos, são reportagens de guerra dessa campanha de extermínio.

A estreita seletividade social exclui os contingentes majoritários do processo de reprodução das condições necessárias à perpetuação das relações capitalistas. Algumas gerações de setores marginalizados, inseridos numa cruel luta pela sobrevivência, projetam esse contingente num mundo imerso numa cultura da violência. Um mundo que, ao não ter respeitados seus direitos elementares de sobrevivência e tendo diante de si um outro mundo, que consome luxuosamente e exibe com requintes seu sofisticado nível de vida, mergulha na ilegalidade, na violência, reproduzindo em seu interior as mesmas relações de violência com que são tratados pelo Estado. Da mesma forma que seu vínculo essencial com o poder de Estado está dado pelos organismos policiais - por seu arbítrio, sua violência, sua corrupção -, essas normas são assumidas como as "leis da vida”. O que se possui é conquistado pela violência, o que se perde é tomado pela violência.

Isso dissemina um elemento de desagregação que, por sua vez, é instrumentalizado para estigmatizar o universo dos pobres como gerador ele mesmo da violência. A maior parte das crianças e jovens brasileiros está situada nesse meio.

Um dos temas a respeito dos quais a Assembléia Constituinte apresentou um claro avanço foi a questão do menor. A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em substituição ao antigo Código do Menor, representou a reivindicação de direitos para um ser que, considerado em sua minoridade, ficava absolutamente submetido ao arbítrio dos juízes de menores, sem falar na ação da polícia e das instituições fechadas.

O Estatuto proíbe a detenção de crianças e adolescentes menores de quatorze anos. Os mais velhos só podem ser detidos em flagrante. Termina assim o poder da polícia e das instituições para deter e internar garotos sob alegação de perambulação e situação irregular, que consistia na razão da maior parte das detenções, sem implicar infração.

Nos casos de infração, os jovens poderão dispor do contraditório, isto é, do direito a um advogado de defesa. Isto abre espaço para a especialidade de defesa dos jovens menores de idade e deixa de lado o poder antes inquestionável do juiz de menores.

Instrumentos de defesa

Depois de afirmar os direitos fundamentais da criança e do adolescente, o Estatuto cria órgãos destinados a defender esses direitos. Entre eles se situam os Fóruns da Criança e do Adolescente, a nível municipal, estadual e federal, com participação direta de entidades civis.

Ao lado deles, estão os Conselhos Tutelares, órgãos que receberão denúncias e reclamações e aplicarão as medidas de proteção à criança e ao adolescente, quando seus direitos forem ameaçados ou violados. Os conselhos poderão então atuar nas situações de crianças vivendo nas ruas, submetidas a maus tratos, nos casos de não-atendimento em escola ou hospital público por discriminação ou problemas de aprendizagem, entre outros. Poderão também ser objeto de atuação por parte do Conselho as situações de falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis, além da fiscalização sobre a atuação das entidades governamentais e outras entidades no trato das crianças e adolescentes.

Os conselhos têm seus representantes eleitos pelo voto direto da população. O conselho assim escolhido tem direito de exigir das prefeituras os recursos previstos no Estatuto: local, telefone, transporte, remuneração dos eleitos e recursos para seu funcionamento, incluindo a contratação de pessoal técnico jurídico, psicológico, pedagógico e outros.

Em poucas grandes cidades do Brasil esses conselhos foram regulamentados pelas câmaras municipais e colocados em funcionamento. Enquanto em Vitória foi realizado, no ano passado, um seminário de balanço dos conselhos instalados em todo o estado do Espírito Santo, no Rio de Janeiro sua existência está ainda dependendo de votação na Câmara.

Em São Paulo, no dia 7 de novembro foram eleitos os vinte conselhos que correspondem ao tamanho da cidade, com seus cem representantes - cinco por conselho - escolhidos pelo voto direto de mais de 30 mil eleitores. Apesar da não obrigatoriedade do voto, apesar da ausência total de cobertura por parte dos grandes meios de comunicação, apesar da data escolhida estar ofuscada pelo segundo turno das eleições municipais, tivemos pleitos exemplares de democracias diretas, com participação das comunidades, sem utilização de vantagens na propaganda por maior poder aquisitivo e com a eleição de candidatos efetivamente dedicados à defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Caráter democrático

Cerca de 2/3 dos eleitos eram mulheres, o que reforça o caráter democrático das eleições, dado que são elas as que demonstram maior sensibilidade para as lutas cotidianas de defesa dos garotos. Com isso, os Conselhos também se revelam um importante instrumento de promoção de lideranças femininas nas comunidades, possíveis canteiros de lideranças populares mais amplas, quando se revela tão difícil seu processo de promoção pelas estruturas partidárias e estatais vigentes.

Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, em que foram eleitos prefeitos sem maior sensibilidade para as questões sociais e com visões repressivas sobre a questão do menor, os Conselhos Tutelares podem ter um papel muito importante na resistência ao desmantelamento de conquistas do governo anterior, em São Paulo, e no início da construção de estruturas de resistência no Rio. Além disso, os conselhos são modelos de entidades da esfera pública, em que se articulam instituições estatais e entidades civis, para construir um espaço democrático que defenda os interesses das maiorias postergadas na luta por sua cidadania.

Num momento em que os neoliberais tentam fazer do processo de reformas constitucionais do segundo semestre de 1993 uma revanche contra as conquistas democráticas da Constituinte, o Estatuto da Criança e do Adolescente tem sido uma das vítimas dessa ofensiva antidemocrática. Setores do Judiciário, que perderam a tutela sobre as crianças e adolescentes das famílias pobres, argumentam que a falta de locais para internação teria levado ao aumento do extermínio por parte da polícia. Na realidade, eles não se conformam com a perda daqueles poderes, que quase sempre foram usados de maneira discricionária, defendendo a sociedade dos próprios garotos que ela gerou e não na defesa dos direitos destes contra aquela.

A correlação de forças na sociedade favorece essas contra-ofensivas. A estigmatização dessas crianças, as abordagens isoladas de seus atos, sem inserção no contexto econômico-social que os gera, as discussões econômico-financeiras - no próprio PT - que não vinculam as propostas à necessária prioridade das políticas sociais em qualquer projeto nacional fortalecem alternativas repressivas.

O PT tem uma dívida na questão do menor, que precisa começar imediatamente a ser saldada. Primeiro, na luta decidida para evitar os retrocessos sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente nas reformas constitucionais. Em segundo lugar, elaborando e colocando em prática políticas específicas a nível nacional e municipal, com iniciativas inovadoras e radicais. Em terceiro, formulando, junto com os movimentos sociais, alternativas de políticas atraentes e efetivas para a juventude das camadas populares. Finalmente, integrando definitiva e centralmente a temática das crianças e dos adolescentes das classes populares ao discurso do partido, de seus dirigentes, de sua imprensa. juntando sua voz à, ainda, minoritária indignação sobre o extermínio dos nossos guris pela roda do mercado capitalista e por seus agentes armados.

Emir Sader é sociólogo.