Internacional

Uma aventura de dois meses, através da Rússia e da China, desvenda a penúria da ex-URSS e a recente prosperidade chinesa.

 

Os peregrinos da transiberiana

O presente texto, que terá proximamente uma versão ampliada em forma de livro, conta as experiências de uma viagem à Polônia, Lituânia, Rússia e China entre julho e outubro de 1992. O percurso, sem prefeito de trem, em várias etapas, começou em Paris, em 17 de julho, e terminou em Hong Kong, em 3 de outubro. Foram observadas as ruínas do socialismo real em Berlim (ex-Oriental), Cracóvia e Varsóvia (Polônia), Vilna (Lituânia), S. Petersburgo - ex-Leningrado - e Moscou (Rússia), Pequim, Chian, Xangai, Guilin, Cantão e Hong Kong (China).

O trecho Moscou-Pequim foi feito pela Estrada de Ferro Transiberiana (7 dias e 6 noites), uma das mais mareantes experiências da viagem. Os peregrinos - Denise e Daniel - tinham o objetivo de observar e conhecer o cotidiano das sociedades que iriam visitar. Assim, dispensaram agências de viagem, excursões e toda a parafernália comumente associada a este tipo de empreendimento. Para este relato, foram selecionadas as observações relativas à ex-URSS (Lituânia, Rússia e a Transiberiana até a fronteira) e à China (incluindo Hong Kong).

Quando começamos, em Varsóvia, os preparativos para passar a fronteira da ex-URSS, já estávamos viajando há mais de duas semanas. Havíamos testemunhado o estranho contraste entre as duas metades de Berlim, não mais divididas pelo muro de cimento e pedra, mas ainda separadas pela incompreensão e pelo medo das diferenças, pela amargura dos "ex-orientais" que vivem penosamente o fim das ilusões em uma prosperidade imediata, pela crescente impaciência dos "ex-ocidentais" com seus "irmãos atrasados" e "improdutivos". Na Polônia, em relação à Alemanha, constatamos a degradação das condições de vida e dos serviços públicos, o início de um processo de escassez, ocultado ainda pela liberação dos preços, como em nosso país, mas visível no cotidiano das pessoas e, sobretudo, no interior das casas (e das geladeiras) das pessoas onde ficamos hospedados. Sabíamos, no entanto, que as condições iriam piorar muito: na escala descendente, ainda não tínhamos nem chegado à metade do caminho.

Na bilheteria da Estação Central de Varsóvia, quando compramos as passagens para Vilna, pudemos constatar uma certa surpresa, mesclada de ironia. Quando indagamos sobre a hora exata da partida, a resposta veio com rispidez e desdém: "Os trens soviéticos não têm hora certa".

A chegada do trem "soviético", com 40 minutos de atraso, foi um espetáculo chocante: envolto numa fumaça negra, que inundou toda a estação, parecia uma maria-fumaça dos velhos tempos. Poucos passageiros entraram nos vagões e, pelo caminho, ainda de noite, na penumbra da cabine muito mal-iluminada (economia de combustível?) pudemos constatar, sem evitar uma ponta de inquietação, um contraste brutal: os trens provenientes de nosso lugar de destino vinham supercheios, as pessoas acenavam das janelas, aparentemente alegres, enquanto o nosso ia estranhamente vazio. Estaríamos no contrafluxo dos horários ou na contramão da história? O que restava da URSS, decididamente, não parecia estar atraindo a curiosidade geral.

Como almas penadas andamos pelos corredores do trem procurando, em vão, um vagão restaurante. Quando reclamamos da escuridão, o cabineiro respondeu rápido: patom. Patom significa "depois" em russo. Palavrinha recorrente, rapidamente a decoraríamos. Quantas vezes, através da Rússia, escutaríamos: patom. Para qualquer reclamação, qualquer dúvida, qualquer carência: patom ou, então, de forma mais definitiva: niet (não).

Fomos acordados de noite pelos guardas alfandegários pois, para alcançar a Lituânia, atravessamos a Bielorrússia, país já independente mas que ainda conserva um sistema alfandegário unificado com a Rússia. Os guardas, vários, muito jovens, estavam mais curiosos do que inquiridores. Sentaram-se em nossos leitos, invadindo literalmente a cabine, menos por impertinência policialesca e mais por um aparente desconhecimento dos direitos à privacidade. Olhavam-nos atentamente, de modo levemente divertido, buscando entender as razões de nossa viagem. Não achacaram, nem molestaram. Mostrados os vistos, retiraram-se certamente com a idéia de que tínhamos alguns parafusos a menos por estarmos querendo "visitar" a Rússia.

A chegada em Vilna na manhã seguinte, um sábado, foi decepcionante. A estação estava lotada e imunda, um clima meio de pandemônio, não havia uma casa de câmbio, mas sobravam policiais achacadores que logo nos cercaram, walkie-talks em punho, oferecendo seus "serviços". Depois de muita barganha, o "chefe" aparente nos levou a um carro no pátio da estação onde, sobre os bancos, arrumadinhos, à mostra, estavam dispostos maços e maços de rublos. Deu-nos um câmbio infame, bateu uma continência irônica e nos mandou passear com um "sempre às ordens".

Vilna é uma cidade aprazível, sem dúvida, mas gravemente ferida pela crise que assola o país. A Lituânia era uma das repúblicas mais prósperas da ex-URSS e tem um povo altamente instruído. Entretanto, dado o elevado grau de interdependência econômica, a profunda crise na Rússia desorganizou a economia lituana. O país faz desesperados esforços para se aprumar e é possível que, num prazo razoável, a Lituânia encontre seu caminho; tem recursos humanos e materiais e posição geográfica para tanto. O momento atual, porém, e isto nos foi dado testemunhar, é dramático: escassez, pobreza, desespero, corrupção.

O hotel em que ficamos, razoável para os padrões da cidade, refletia o desabastecimento agudo de produtos essenciais. Era preciso pagar diariamente um "por fora" para ter o privilégio de alguns pedaços de papel higiênico. Os restaurantes, sempre, vazios, ofereciam refeições francamente medíocres a preços proibitivos para os habitantes locais. E ainda tínhamos de aturar o mau-humor tradicional dos funcionários encarregados de toda a sorte de serviços. Conto um episódio exemplar: quando tentamos fazer um passeio pelo belo rio que serpenteia a cidade tivemos de esperar horas pelo barco. Foi-se formando um grupo de pessoas, homens, mulheres, velhos e crianças, um passeio domingueiro. O funcionário alegou, porém, quando o barco chegou afinal, que só haveria passeio se houvesse um grupo de trinta pessoas. Éramos 28 (26 lituanos e russos e nós dois, brasileiros), portanto, nada feito. Conversamos, barganhamos, imploramos, niet, bradamos, denunciamos... niet. Nada feito. O funcionário negava olhando o infinito, impertubável. Ou trinta ou nada. O grupo se desfez, silenciosa e tristemente, mais triste porque silenciosamente. Niet, não fizemos o passeio de barco.

E, de noite, nas ruas ensombrecidas pela má iluminação, a caminho do hotel, cansados de andar pelas ruelas de Vilna, cruzávamos sempre com velhinhas bem velhinhas, que saíam da sombra com flores murchas nas mãos encanecidas. Davam tanta pena, que não sabíamos se tínhamos mais pena das velhinhas murchas com suas flores ou das velhas flores que elas vendiam. Na véspera da partida, na volta do jantar, já de madrugada, quando menos esperávamos, porque já eram altas as horas, lá estavam elas, na sombra, sempre em pé, as velhinhas, com suas tristes flores, as velhinhas de Vilna, pungentes, pacientes, pedintes, metafóricas, acusadoras.

Piter, dos sonhos rubros

Chegou, afinal, o dia de partir para a Rússia. A primeira escala seria S. Petersburgo, segundo a velha denominação que os russos reestabeleceram em plebiscito realizado em 1991. O antigo nome deve a forma estrangeira à influência da cultura francesa e à perspectiva de criar um centro de irradiação ocidental na Rússia. Posteriormente, durante a Grande Guerra, o nome russificou-se: Petrogrado, a cidade de Pedro, em homenagem ao czar que a idealizou. Com a morte de Lenin, depois da vitória da revolução, e em sua homenagem, Leningrado, a cidade de Lenin, e honrando este nome, a cidade defendeu-se com humano heroísmo às inumanas hordas nazistas que a cercaram, bombardearam, esfaimaram e massacraram durante novecentos dias, mas não a venceram. Por isso mesmo, após a 2º Guerra Mundial, Leningrado recebeu, com mais oito cidades russas, o título de "cidade heróica". Penso nestes vários nomes, em seus diferentes significados, que cidade encontraremos? S. Petersburgo, aristrocrática e ocidentalizada? Petrogrado, russa e guerreira? Leningrado, cidade heróica? Prefiro recordá-la como Piter, como era carinhosamente chamada pelos revolucionários do começo do século.

A viagem de Vilna a Piter tomaria 14 horas. Saímos às 10 horas e, ainda mal-acostumados à escassez, levamos apenas uns queijinhos alemães, tipo polenguinho, comprados no contrabando da praça da estação. O trem russo, largo, grande, confortável, estava num estado de imundície deplorável. E, mais uma vez, terrivelmente vazio. Quando a fome apertou, procuramos o vagão restaurante: niet, não havia. No vagão só tínhamos a companhia de um marinheiro, em nosso compartimento, e, mais adiante, de um ruidoso grupo de russos. O marinheiro aceitou, com muito custo, um dos nossos polenguinhos, mas, niet, não tinha nada para oferecer. Aproximei-me então do grupo ruidoso. Cantavam e riam muito alto e comiam pão preto, um excelente e gordo salame (que a fome tomou ainda mais apetecível), picles variados e bebiam vodca e cerveja quente. Eram jovens, caras largas e quadradas, fortes, imensos, eslavos. Entre curiosos e divertidos, ouviram minha barganha numa mistura de inglês, russo e muita mímica: trocar alguns de nossos polenguinhos por um pouco de pão preto. Responderam com uma gargalhada que estremeceu o trem. Claro, dariam a nós o pão, o salame, a vodca e a cerveja quente. Mas nem pensar em aceitar o polenguinho, aquilo não era comida para eles.

As conversas nesta viagem de chegada seriam uma introdução ao conhecimento das condições da Rússia atual. O grupo do salame e da vodca era muito loquaz, todos se diziam businessmen, tinham orgulho da profissão e entusiasmo em relação às perspectivas que estavam se abrindo. Mostravam grande curiosidade por países estrangeiros (conheciam apenas a Polônia e um deles, a Alemanha ex-Oriental), perguntavam sobre o Brasil, as condições de abrir comércio e ganhar dinheiro em nosso país. Estavam otimistas e satisfeitos, embora reconhecendo a grave crise em curso, mas o verdadeiro interesse, que eles não ocultavam, era ganhar dinheiro, quanto mais, no menor prazo possível, melhor.

Com o marinheiro a conversa teve outro rumo. Era da marinha de guerra, da base de Kronstadt. Contou-nos da degradação vertiginosa das condições de vida e de trabalho, de como sobravam cada vez mais dias do mês depois de gasto o último kopeck (centavo) do salário, da sua desorientação com o que ocorria. Nunca tinha sido filiado ao PC e criticou duramente Gorbachev, considerando-o desastrado, embora bem-intencionado. Tinha um ar triste, um sorriso cansado e nos deu a entender que a situação iria piorar ainda mais. Quando soube que estávamos chegando em Piter sem reserva de hotel deu um salto no banco. Iríamos chegar à uma hora da manhã, como faríamos? Respondi que pensávamos tomar um táxi e ir para um hotel compatível com nossas condições financeiras. Niet - o marinheiro disse nem pensarem táxi numa hora dessas, e não seria fácil encontrar um hotel. Lembrei-me de Lenin e lancei a velha questão: que fazer? O marinheiro franziu o cenho, olhou o infinito (como os russos olham o infinito...) e murmurou: big problem. Sem esconder a apreensão, falou que faria o possível para nos ajudar, recostou-se e começou a dormir pesadamente. Enquanto a noite se fechava sobre a bela paisagem rural russa, densos bosques, casas de troncos largos, o trem, sempre mal-iluminado, ensombrecia no mau-cheiro da imundície. Os businessmen, sob os efeitos do álcool, urravam alegremente. O marinheiro, parecendo não se dar conta, roncava com uma cara atormentada. Víamos Piter se aproximar e, de repente, nos demos conta de que, efetivamente, tínhamos um big problem pela frente.

A estação de Piter era mais ampla, mas o ambiente pesado era igual ao de Vilna. Muita gente sentada/deitada num hall tão sujo como o da Rodoviária Novo Rio, mas sem um botequim para vender uma cervejinha, ou uma água mineral, niet. Enquanto o marinheiro de Kronstadt embarafustava-se pelo interior da estação à procura de uma solução para nosso big problem, as imagens da Rússia entravam pelos nossos olhos. A primeira delas foi a dos velhos desamparados, chocante, como no Brasil. Por onde quer que você vá, os velhinhos estão sempre por perto, ora eretos, firmes e dignos, com medalhas nas camisas ou na lapela dos paletós, ora cansados, desmoralizados, carregados, às vezes dormindo, meio derreados. Quase sempre muito pobres e desamparados. Esta imagem nos perseguiu obsessivamente até a fronteira da Sibéria com a China. Ela denuncia com veemência a Rússia atual e sua tragédia.

Foi então que aconteceu o encontro com o anão. Eu tinha começado a fumar quando senti um puxão forte no braço e a mão de alguém passou pela minha cara, como que tentando apanhar o cigarro na minha boca. Virei- e deparei com um anão muito forte, musculoso, monstruoso. Num primeiro momento, imaginei que ele queria um cigarro, mas logo vi em seus olhos que estava indignado e possesso. Gesticulava furiosamente e custei algum tempo para perceber que estava exigindo que eu apagasse o cigarro, era proibido fumar no recinto. Não achei prudente contrariar o anão (apaguei rápido a guimba), mesmo porque se juntavam outras pessoas, e eu não precisava saber russo para perceber que os gestos e olhares não eram nada amigos. Ao longo da viagem, sempre no hall das estações, os russos me chamariam a atenção outras vezes. Por uma singular circunstância, que não cheguei a compreender muito bem, suportavam impassíveis a imundície, a miséria e até mesmo o desamparo dos velhos. Mas não toleravam a fumaça dos cigarros.

Depois de muitas gestões, o marinheiro de Kronstadt apareceu com uma boa (sic) notícia: dormiríamos na hospedaria da própria estação. Lá encontramos o grupo do salame que nos cumprimentou efusivamente. Os quartos eram infames, o banheiro muito sujo, mas estávamos tão cansados que subimos alegremente na barca de Morfeu e entregamos nossos corpos aos sonhos e aos pernilongos "soviéticos". Amanhã, já dizia o poeta, seria outro dia, e Piter estaria nos aguardando.