Política

As revoluções perderam-se em práticas que descartaram o reexame dos débitos com o passado. É preciso, agora, como na psicanálise, lidar com o que foi recalcado, para que ele não continue a manipular as mentes socialistas. Mas não é fácil se desfazer de uma tradição política que constituiu dispositivos de poder experientes e eficazes.

*Este artigo é parte do ensaio "O novo e o pathos (em torno do Dezoito Brumário)", incluído em A última razão dos reis, livro que o autor acaba de lançar pela Companhia das Letras.

 

Engels observa, na introdução de 1895 à Luta de classes, que, ao falir a revolução socialista em 1848, ocorreu por toda a Europa uma "revolução econômica", uma "revolução industrial" que, fortalecendo a burguesia às expensas das monarquias e nobrezas, deu igualmente um novo vigor ao proletariado. E, em Violência e economia no novo Império Alemão, afirma que Bismarck efetuou, com a Unificação da Alemanha, uma "revolução de cima para baixo". Diz, do chanceler, que "ele viu na guerra civil alemã de 1866 o que ela era de fato, quer dizer, uma revolução, e esteve disposto a levá-la a cabo com meios revolucionários" – o que fez: dissolveu a Dieta, organizou contra os austríacos um exército formado de revolucionários húngaros exilados, dirigiu ao povo da Boêmia uma proclamação vazada em termos antilegitimistas, anexou à Prússia territórios de outros príncipes alemães sem lhes respeitar o "direito divino": "Em outras palavras", julga Engels, "foi esta uma revolução completa, levada a termo com meios revolucionários. Obviamente, estamos longe de censurá-lo por isso. Ao contrário, o que lhe censuramos é não ter sido suficientemente revolucionário, é não haver sido mais que um revolucionário prussiano agindo de cima para baixo..." (pag. 420).

Revolução não é apenas o que faz o povo. O primeiro Napoleão, no Dezoito Brumário, era revolucionário, tal como Bismarck nos anos 1860 e 70. Mas a revolução assim pensada não está ligada à emancipação do proletariado. É verdade que ela o encaminha nessa direção; mas contribui, em alguma medida, para expandir sua consciência? Se a revolução proletária estava ligada, como dissemos, à razão, o que significa uma "revolução de cima para baixo"? A revolução de Bismarck se entende ante a incapacidade da burguesia alemã para conseguir seus próprios objetivos de classe: à maneira de Bonaparte, um ditador então "cumpre a vontade da burguesia alemã contra a vontade da burguesia alemã" (pag. 417). A debilidade política da burguesia explica esse processo de substituição. Mas tal processo de representação, pelo qual a classe é substituída por um líder ou mesmo por uma fração de outra classe, e que vale para a revolução burguesa, poderá servir no caso da revolução socialista? Esta, sendo sinônimo de emancipação, coincidia em seus termos com o processo da razão, melhor dizendo, de uma razão que não é apenas cálculo ou método, mas crítica, libertadora; exige, portanto, que se tome consciência das figuras do imaginário, para que este deixe de ser opressivo e repressivo. Ora, uma conscientização ou emancipação é impossível sem o empenho dos interessados.

"Os homens fazem sua história, mas não sabem que a fazem": essa passagem certamente serviu para justificar uma visão do partido que chamamos de stalinista - baseada na radical substituição do povo pela máquina -, mas que poderia com certa oportunidade também se dizer bismarckiana1. Acentua-se, nela, a inconsciência dos homens, e constitui-se, pela referência à astúcia da História e à sua dialética, a possibilidade de pensar-se a política como exercida por um certo tipo de representação. Esta se caracterizará, então, não por se dever a eleições ou a outro tipo de escolha-o modelo democrático, em última análise -, mas por decorrer de um vazio: a representação na História significa que, renunciando uma classe ou grupo a cumprir seu papel, este será assumido por outro, que realizará, por exemplo, como diz Engels, a vontade política da burguesia (seus interesses de classe) contra a vontade política da burguesia (sua pretensão à hegemonia no Estado), mas que poderá, também, da década de 20 em diante, realizar a vontade política do proletariado (a construção da sociedade sem classes) no lugar do proletariado (desorganizado, inconsciente, presa de antigas ideologias) e mesmo, eventualmente, contra ele.

Aqui temos, pois, o desenho de uma representação que não resulta de uma instauração positiva, pela qual do representado ao representante, do mandatário a seu significante, a via é boa, a causalidade direta - mas de uma instituição negativa, ocupando um lugar abandonado, preenchendo uma lacuna, nascendo de uma carência: é o vácuo, e não o encontro ou a comunidade dos homens, que neste caso designa quem vai exercer o poder. E basta esse formato de nascimento da representação para fazê-la insidiosa, ardilosa.

Ora, assim se evidencia, com essa frase e o contexto que para ela delineamos, um tipo de política que deve ter fim com o socialismo, aquela que se baseia no engano ou, se quisermos, na ideologia, entendida como meio para a dominação de classes; daí, ainda, que seja uma representação mais teatral que política, mais voltada às emoções que suscita do que aos interesses que defende (que representa), e portanto mais retórica que científica. Mas como libertar os homens sem que eles próprios o saibam, e o queiram?2 O partido se fará bismarckiano3, e com isso os traços democráticos e nacionalistas que apareciam na revolução proletária serão subordinados a uma análise que remonta, afinal, à ragione di stato da Renascença e - o que somente seria paradoxal se esquecêssemos o possível papel de Bismarck nessa história - à Realpolitik da Alemanha pós-1848.

Notamos aqui duas linhas teóricas de inegável influência no Ocidente, e às quais é preciso remeter o marxismo que historicamente se realizou. A razão de Estado, que geralmente se atribui a Maquiavel, é na verdade conceito mais difuso, de que podemos ter mostra já na Idade Média, e que desde meados do século XVI é utilizado contra o florentino, coincidindo mesmo, sob o nome de "verdadeira razão de Estado", com o respeito à lei divina que caracteriza a política cristã. Michel Sennelart distingue assim uma razão de Estado em Maquiavel, que se identifica com as razões da guerra, e que generaliza a aplicação do princípio da necessitas a toda a esfera do político (princípio este que na Idade Média era de alcance apenas excepcional) - e outra, que se lê por exemplo em Giovanni Botero, para quem a razão de Estado é a ciência, basicamente econômica, da governação, efetuando assim ele uma notável síntese entre o motivo medieval do rex justus e o mercantilismo moderno4.

Essas duas vertentes da ragione di stato certamente marcaram fundo os regimes que se proclamaram socialistas; os governos de inspiração marxista, dizendo-se científicos porque se sustentavam numa teoria basicamente econômica da história, insensivelmente se voltaram para o tema do rei bom e justo que fora modernizado por Botero - ao mesmo tempo que, entendendo como motor da história uma guerra permanente, entre as classes, tiveram na lógica de Maquiavel outro modelo, talvez menos inconsciente que o primeiro, de estratégia. Faltou, de sua parte, um ajuste de contas mais sério e radical com a tradição do pensamento político. Faltou em especial repensar a economia, que nos termos de Marx não se deve reduzir à produção de bens (embora haja textos que justifiquem esse enfoque), mas pode, e deve, abranger a própria produção, inclusive imaginária, da sociedade; e repensar a guerra, que Marx não queria conceber como uma série de batalhas, travadas portanto pela força, mas como um conflito permanente, no qual a razão, a expressão tinham o papel principal5.

Quanto à Realpolitik, ela resulta do malogro das revoluções européias do ano de 1848, a que sucede, na década seguinte, um certo desencanto entre os próprios opositores das ditaduras monárquicas. A figura romântica do herói, a paixão do Romantismo pelo entusiasmo revolucionário cedem lugar a uma análise mais fria das relações de força, justificando compromissos políticos - no caso da Prússia, é assim que os liberais depositam, no príncipe regente, depois rei com o nome de Guilherme, a esperança de que adote as medidas políticas que eles, contra a coroa, não conseguiram conquistar6. O pivô da Realpolitik está nessa política de resultados, que exclui os princípios. Ora, historicamente a aposta dos liberais prussianos falhou, porque o rei preferiu apoiar-se em Bismarck e nos Junkers, e é exatamente esta indigência política da burguesia que Engels põe a nu, na passagem que citamos. O problema da Realpolitik está, pois, em que renegando o que caracteriza a proposta revolucionária, a pretexto de garantir certos resultados, acreditando numa idéia mais ou menos linear de progresso, graças à qual concessões hoje obtidas se somarão a outras amanhã, pensando, finalmente, que o detentor do poder é bom, e sensível aos reclamos da justiça, ou prudente, e pode ceder um pouco para melhor assegurar sua dominação, ou tolo, e não notará que corrói seu próprio poder, ela erra enquanto política liberal ou democrática, e abre a via justamente para a reação conservadora, no caso, Bismarck. Mas o marxismo, rebaixado a progressismo gradualista, perde em qualquer caso: tanto quando cede à política conservadora da Realpolitik, como quando ele próprio se faz bismarckiano.

Enfim, aqui supomos que não é fácil descartar uma longa tradição política, a qual não se resume ao pensamento mas constitui dispositivos eficazes e experientes de trato do poder: estes, pela via torta, conseguem assumir o controle daquelas próprias doutrinas e práticas que nasceram, justamente, para contestá-la. O marxismo realmente existente, o dos partidos do século XX, ao se fazer prática de tomada e exercício do poder, adotou mais que algumas tecnologias testadas com sucesso no mundo capitalista: retomou, às vezes até agravando-os, uma série de princípios que na sociedade de classes executavam a dominação. E provavelmente o que de pior houve nos Estados comunistas, o caminho pelo qual perversamente se constituíram em tiranias, deve-se ao fato de que pensassem fazer um uso apenas instrumental desses dispositivos de poder que foram buscar na tradição, e entre os quais, para não ficarmos em considerações somente genéricas, podemos citar a estrutura piramidal de poder transposta no partido, a idéia da luta política como uma guerra implacável, trazendo como resultado a militarização e a policialização da sociedade. Mas o que permitiu esses efeitos, que de tão graves deixaram de ser perversos (ou deformações) para constituírem a própria forma essencial da tirania comunista, foi um pensamento que entendia o meio como mero instrumento a serviço de um fim, etapa transitória no rumo de um futuro, não compreendendo que o meio marca decisivamente o fim que pretende gerar, que o medium não é neutro, nem o é a eficácia. Seria difícil ter visão mais tosca do que pode ser o tempo, no qual meios e fins se escalonam sem a exterioridade assim fantasiada, e do que podem ser a prática social e mesmo a simples prática das ações humanas, na qual a "forma" não se dissocia do "conteúdo": não se pode desqualificar a aparência em favor de um sentido abstrato que estaria por trás ou acima dela, porque desse modo se retoma a velha idéia de um alhures sem responsabilidade com este mundo encarnado, ou seja, retoma-se a antiga transcendência, aquela que o marxismo fez questão de negar quando procurou, talvez mais que qualquer outra doutrina do social que o antecedesse, explicar os fenômenos deste mundo radicalmente neste mundo.

O problema está, assim, na falta de ajuste de contas com essa tradição, com esses dispositivos de poder. A revolução historicamente realizada perdeu-se, vezes demais, numa prática em que descartou o reexame dos débitos que ia, inconscientemente, assinando com o passado. Fez-se mental de menos - ao contrário do que exigiam as passagens referidas, de Marx e Engels. Não se trata de exigir dela que fosse mais intelectual, que tivesse scholars à sua testa para marcar sua originalidade diante das doutrinas políticas que se construíram na história do mundo. Porque o problema, na verdade, não é de teorias, mas de modos de pensar e construir o poder, de dispositivos de dominação7. O que seria preciso, e continua a sê-lo para toda proposta socialista que ainda pretenda realizar-se, é um ajuste de contas, prático e teórico, com um passado que se conserva presente. Assim, toda e qualquer semelhança deste necessário ajuste de contas com aquele que a psicanálise efetua, ao lidar com o recalcado para que deixe de manipular a mente, ao trabalhar o id num projeto de libertação do homem, não será mera coincidência. Algumas categorias, ou supostos, desenvolvidas pela psicologia - sujeitas, certamente, a uma profunda modificação - tornaram-se fundamentais para quem queira organizar a história futura como libertação.

Renato Janine Ribeiro é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.