Nacional

Nos marcos de um fim de século mais decadente que o de cem anos atrás e num quadro nacional de polarização entre forças antagônicas, o PT enfrenta hoje o maior desafio que a esquerda brasileira jamais pensou ter que enfrentar: a possível probabilidade concreta de governar um país ingovernável submetido a um regime tão inviável quanto inaceitável

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O Partido dos Trabalhadores é hoje um partido que se prepara aceleradamente para a eventualidade e o risco de ter que governar este país ingovernável que é o Brasil, no quadro de um regime tão inviável quão inaceitável, que é o regime capitalista na sua versão mais moderna, selvagem e predadora, que é a do neoliberalismo. O que significa, de pronto, que o PT terá que transformar profundamente o país, até para poder governá-lo e não o contrário: isto é, primeiro tentar ver se consegue governar para depois ver se consegue transformar, o que poderia parecer mais fácil e mais "lógico", mas, na verdade, seria enganoso e impossível.

E tudo isso nos marcos de um fim de século mais decadente que o de cem anos atrás, tendo como pano de fundo o ideal, ou a utopia, da construção de um novo socialismo, no momento histórico em que, por toda a parte, os socialistas deploram e lamentam as derrotas e os fracassos do socialismo "real", a crise das idéias e teorias socialistas, os enganos e as falácias do socialismo prático, as perplexidades e dúvidas diante das perspectivas de um socialismo futuro.

É um imenso desafio, portanto. E não é apenas o maior desafio da curta história de quinze anos do PT. É o maior desafio que a esquerda brasileira jamais pensou ter de enfrentar, desde os primeiros e lamuriosos vagidos dos movimentos libertários do último quartel do século passado, misturados com o anarquismo europeu importado e o anarco-sindicalismo caboclo, em que se mesclavam idéias estrangeiras generosas e poéticas com a brutal e sanguinária realidade de miséria, exploração e injustiça nativas.

Desafio que emerge tanto das incertezas e contradições dos que querem transformar quanto das dificuldades e obstáculos interpostos pelos que, a todo custo, não querem que se altere absolutamente nada, e que tudo farão, até os mais impensáveis extremos, para impedir que se mude qualquer coisa. É nesse contexto que os petistas têm de se acostumar, desde já, a enfrentar com serenidade, porém com firmeza, esses obstáculos e dificuldades.

Mas, dirão alguns, isto existe desde que o PT nasceu. É verdade. Ocorre que, durante muito tempo, as classes dominantes fingiram que o PT não existia, e quase chegaram a acreditar na própria mentira. Perceberam o engano no primeiro turno das eleições presidenciais de 89, e aí, correndo, apressada e improvisadamente, tentaram criar um antídoto; testaram um dois, três, vários anticandidatos e finalmente acharam que tinham acertado com Collor de Mello, produto artificial originado desse esdrúxulo laboratório constituído, em parte, pelos latifúndios mais reacionários do Nordeste agrário, e, em parte, pelas redações urbanas, modernosas e informatizadas dos grandes meios de comunicação de massa. Mas, rapidamente, o frankenstein escapou do controle dos seus criadores e estes tiveram que eliminá-lo para salvar a pele, antes que também fossem jogados à cloaca com o monstro e seus dejetos.

Agora é diferente. Consolida-se a possibilidade de Lula vir a ser eleito presidente da República em 94. Essa possibilidade não é dada apenas pelos índices obtidos por Lula nas pesquisas eleitorais. O PT já está tão calejado, tanto com pesquisas adversas quanto com manipulações adversas de pesquisas favoráveis, que já não se deixa emocionar demasiadamente com tais números. Há outro fator que indica o aumento da possibilidade de um Lula presidente: é a quase absoluta incapacidade de as classes dominantes encontrarem, até o momento, um concorrente à altura. Se a marcha continuar nesse ritmo - Lula crescendo nas pesquisas e os candidatos opostos aparecendo e desaparecendo, subindo e descendo, enredando-se nas armadilhas da própria ambição e voracidade - aí então a possibilidade tenderá a se transformar em probabilidade concreta.

A polarização crescente

Nos países capitalistas, como se sabe, há sempre uma "história oficial", que é escrita pelas classes dominantes. Mas, freqüentemente, pode haver também "histórias oficiais" dos setores oprimidos, que, por serem "oficiais", podem ser tão enganosas quanto as primeiras. A esquerda, de modo geral, e a brasileira, em particular, também tem sua história oficial, constituída de documentos e depoimentos, análises estruturais e conjunturais, confissões e resoluções, críticas e autocríticas.

Uma das mais deploráveis características comuns às várias "histórias oficiais" esquerdistas é que, nelas, a esquerda sempre se coloca como a estrela principal, procurando passar a idéia de que todo o resto gira em torno dela.

Tudo se passa, nessa visão paranoicamente etnocentrada, como se qualquer ação do partido dirigente - desde o assalto ao Palácio até a distribuição de um volante na fila de ônibus fosse o centro da história naquele momento, e tudo o mais (na verdade, "todo o resto") não fossem senão tímidas e desajeitadas (ou cruéis e injustas, conforme o caso) respostas àqueles atos.

É necessário, evidentemente, não cair na armadilha dessa dicotomia maniqueísta e mecanicista, não apenas porque ela exprime uma visão intoleravelmente autoritária e prepotente mas igualmente porque ela é absolutamente incorreta como regra geral. Mais freqüentemente do que se poderia imaginar ou querer, há movimento, e ações, tanto dos dominantes quanto dos dominados, que expressam o embate de forças subalternas e subordinadas, interesses secundários, setores populacionais de parca nitidez política e contornos sociais fluidos, e que não se alinham nem inteiramente entre os poderosos nem entre os despossuídos, e aos quais, portanto, não se aplicam rotulações inflexíveis, previsões inalteráveis, predições inabaláveis.

Feitas essas ressalvas e advertências, é preciso, também saber perceber os momentos da história em que as polarizações efetivamente existem. Há conjunturas específicas encruzilhadas fatais em que as polarizações, embora possam não exprimir inteira e completamente toda a realidade possível ou virtual, resumem, sintetizam e simbolizam a realidade que conta. Nesses momentos é nas polarizações que preponderantemente operam as forças sociais e políticas que disponham de um mínimo de organicidade capaz de dar vigência a seus "projetos", isto é, a suas reivindicações, aspirações, ideais, valores e programas de ação. Estamos falando das grandes classes sociais e de seus partidos, de seus sindicatos e de suas centrais, seus centros de elaboração ideológica, suas universidades e seus meios de comunicação.

A hipótese deste artigo é a de que, neste exato momento, estamos atravessando uma dessas históricas polarizações.

O período histórico que se iniciou em meados da década de 70, com o começo da degringolada do regime militar e o renascimento das forças sociais e políticas de oposição, tem três fases interconectadas porém distintas.

A primeira vai de 78/79 a 84 e é marcada pela irrupção do movimento neo-sindicalista, pelas lutas sociais e políticas, por Anistia e liberdades, pela criação do PT e da CUT, pelo renascimento e revigoramento de outras forças sociais, sindicais e políticas, pela eclosão e pela derrota do movimento das Diretas-Já.

A segunda fase - de 84 a 89 - foi caracterizada pelo tentativa frustrada de se criar um equilíbrio impossível entre a democracia formal e a crescente crise econômica e social, cuja expressão política é mais uma tentativa fracassada de um governo de centro conservador: Sarney na Presidência da República e o PMDB e o PFL em praticamente todo o resto do país, estados e municípios.

A terceira fase - a atual começou com a eleição de Collor. Em 89, a polarização crucial de que se falava linhas atrás demorou para colocar-se em evidência para numerosos setores sociais e políticos. Durante todo o primeiro turno, a candidatura Lula foi praticamente isolada; a passagem de Lula ao segundo rumo se deu com pequeníssima margem de votos em relação ao outro candidato do mesmo pólo, e se tivesse sido Brizola a ir para o segundo turno, a história do Brasil a partir daí poderia ter sido bastante diferente da que poderá ser a partir de 94. E, se a diferença percentual de votos entre Lula e Collor no final do segundo turno pode ser um consolo moral para os perdedores, tem um inegável significado político. O vencedor de 89 foi Collor e sua gangue, e todos viram no que deu.

A principal derrota do PT, nesse período, não ocorreu nas eleições de 89. Durante quase toda a campanha, pouca gente, entre os quadros dirigentes do PT, achava que Lula poderia ser eleito presidente. Somente nos últimos momentos exatamente quando isso não poderia ter ocorrido de maneira nenhuma - é que alguns se deixaram levar mais pela emoção do que pela razão e se consideraram "quase lá".

A verdadeira derrota política do partido foi se expressar nas eleições de 90 e de 92. Embora houvesse uma certa expansão geográfica do partido, havia, também, uma rarefação institucional: o partido não elegeu nenhum governador; as bancadas cresceram proporcionalmente muito pouco e, absolutamente, pouquíssimo; a ocupação das prefeituras não foi nem maior nem mais expressiva, politicamente, que a de 88, com a flagrante perda de dois centros importantíssimos, como São Paulo e Rio.

Não se pode dizer, portanto, que o PT tenha sido um partido "vitorioso", no período. O partido volta-se para seu próprio umbigo, na desgastante, porém talvez inevitável, tarefa de lamber as próprias feridas, acirrar as disputas internas, procurar os bodes expiatórios e eleger os novos heróis para substituir os antigos, já velhos e desgastados.

A queda do muro de Berlim, o desabamento do império soviético, a desmoralização dos governos comunistas e socialistas, a crise mundial do socialismo, a eufórica campanha internacional anti-socialista, tudo isso vem cobrar dentro do PT seus tributos e seus dízimos: a crise interna se acentua, antigas certezas dogmáticas cedem lugar a novas dúvidas políticas e ideológicas, às vezes existenciais. O PT se debate entre contradições que até então eram freqüentemente formuladas retoricamente mas raramente sentidas concretamente na pele: as contradições entre o discurso e a prática, entre a capacidade de fazer denúncias e a capacidade de formular propostas, entre o passado, o presente e o futuro.

Em 1988, a eleição de mais de trinta prefeitos petistas, alguns de cidades tão importantes quanto São Paulo, Porto Alegre, Vitória, Campinas e Santos colocou o PT diante da necessidade de fazer aquilo que jurara jamais fazer: administrar o caos capitalista.

Ocorre que o caos capitalista só é caótico na aparência: tem uma lógica férrea, que consiste em repassar para as mãos das empresas privadas a riqueza publicamente produzida pelos trabalhadores, lotear o espaço público para que os grandes grupos empresariais se apropriem desse espaço, privatizar todo o setor público que possa ser rentável e privadamente lucrativo.

O PT não pode governar com essa lógica. O PT não pode governar contra essa lógica. A tentação de ceder ao convencional e ao tradicional gera hostilidade das instâncias partidárias. A pressão dos órgãos partidários, para enfrentar radicalmente o assédio dos grupos empresariais capitalistas, provoca amargas dificuldades no interior dos governos petistas. Alguns setores partidários vêem no governante apenas um militante no governo". Alguns governantes vêem, nas instâncias partidárias, apenas um escudo contra inalcançáveis reivindicações sindicais e populares. A CUT, convicta de estar dando o melhor de si, incita sindicatos de servidores a tratarem as prefeituras petistas como "outro patrão qualquer".

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Diante de seus próprios servidores, as prefeituras petistas oscilam entre o paternal e o patronal. Diante de seus munícipes, as prefeituras hesitam entre o temor de parecerem demasiadamente burguesas para os revolucionários e excessivamente revolucionárias para os burgueses. A difícil arte de governar - que é a de administrar contradições - se complica ainda mais, quando se transforma na dificílima arte de administrar contradições antagônicas originadas de demandas adversas de setores rivais dentro do mesmo campo político e ideológico.

O PT ainda não conseguiu resolver esse dilema - em geral colocado de forma emocional na disputa interna às vésperas de reuniões e encontros. Quando o nível municipal se transformar em estadual e federal, crises dessa natureza, que hoje são angustiantes e desgastantes, podem se transformar em paralisantes, se o partido não conseguir enfrentar radicalmente os dilemas gerados pela sua posição ambivalente diante da institucionalidade.

Uma tentativa de enfrentar essas questões - da crise do socialismo à crise das prefeituras petistas - foi a realização do 1º Congresso do PT, em dezembro de 1991.

Inegavelmente mais e melhor preparado do que qualquer outro encontro normal, o 1º Congresso teve a pretensão de constituir não apenas um crucial ponto de inflexão na história partidária, mas, ainda, constituir um marco na história do país.

A pretensão foi maior do que os resultados. Não por responsabilidade desta ou daquela facção, deste ou daquele dirigente, mas por imposição das circunstâncias, que o permanentemente instável equilíbrio entre as forças partidárias internas não conseguiu manter sob controle.

O 1º Congresso acabou misturando problemas essenciais com secundários, questões verdadeiras com falsas, mesclou relevâncias, confundiu prioridades, superenfatizou quizílias menores, minimizou ou obscureceu temas importantes, consumiu-se na ritualística e perdeu-se no substancial e no substantivo. Não houve a grande revolução partidária anunciada.

A revisão da forma de partido - há tanto tempo tão reclamada por tantos! -, e que deveria expressar-se num novo Estatuto, acabou não se consumando no 1º Congresso, e, postergada para momentos e reuniões posteriores, ainda não aconteceu e corre o risco de perder-se no esquecimento.

As resoluções políticas não diferem muito das que foram adotadas nos encontros nacionais anteriores ou que já eram contempladas nas premissas ideológicas e doutrinárias do Plano de Governo de 89. O partido não se declarou nem mais nem menos socialista do que já havia se declarado em seu nascimento, no famoso discurso de Lula, pronunciado no encerramento da 1º Convenção Nacional, em 1981.

Mas o 1º Congresso do PT teve méritos. Um foi o de chamar a atenção dos petistas, e da esquerda brasileira, para a necessidade de um reexame das velhas idéias, dos antigos dogmas, das teorias que a prática demonstrou serem ultrapassadas, sem ceder, contudo, à tentação fácil de cair na abjeta abjuração do socialismo.

O outro mérito inegável foi o de elevar à tona da discussão partidária temas latentes que até então não haviam recebido tal explicitação, como a questão das mulheres, dos meninos de rua, dos índios, dos negros, bem como o repúdio à discriminação étnica, etária, de sexo e de gênero, a importância da formação política, a questão da cultura e do meio ambiente etc.

Mas seria totalmente incorreto supor que o 1º Congresso tenha sido uma perigosa inclinação para a direita, uma aventurosa incursão na institucionalidade, uma oportunística adesão ao neoliberalismo, e do qual, portanto, o 8º Encontro Nacional, realizado em junho deste ano, seria o natural e inevitável contraponto: uma arriscada inclinação para a esquerda e para a extrema-esquerda, com seu séquito de demoníacos corolários: o abandono da institucionalidade, a volta às bases e ao passado, a traição aos princípios democráticos ou o incitamento à sanguinolenta insurreição popular armada.

Mas, se não foi isso, o que foi, então, o 8º Encontro Nacional?

É cedo, ainda, para uma análise completa. Da mesma forma que as Resoluções do 1º Congresso não contradiziam a história pregressa do partido, as Resoluções do 8º Encontro não se contrapõem à essência das posições políticas acumuladas ao longo dos anos. Mais pela ênfase do que pela negação ou pelo acréscimo, o 8º Encontro acentuou a necessidade de oposição ao governo, de construção de um projeto de transformações estruturais, de mobilização popular e de repúdio ao capitalismo. O PT sempre foi isso e nunca deixou de ter essas posições. Somente uma leitura "perversa", tanto do 1º Congresso quanto do 8º Encontro, poderia ver uma contraposição essencial entre os dois eventos. Além de uma natural rearrumação das forças partidárias internas, com as conseqüentes alterações nos órgãos dirigentes, o 8º Encontro Nacional não trouxe nenhum ingrediente ideológico ou político que, de uma ou outra forma, já não estivesse contido nas resoluções dos encontros anteriores, ou do 1º Congresso, ou do Plano de Ação de Governo de 89.

A desconstrução de uma imagem

Se não se deve tomar como verdade a imagem que uma sociedade, uma classe ou uma instituição faz de si mesma, também não se pode tomar como verdadeira a imagem que é produzida pelos inimigos. Se o PT "verdadeiro" provavelmente não está transcrito com total e absoluta fidedignidade no texto dos documentos de suas direções, nas resoluções de seus congressos e encontros, e nem nos artigos de Teoria e Debate ou do Boletim Nacional, certamente não está nas páginas da Folha de S. Paulo ou de O Estado de S. Paulo, ou nas imagens e falas da Rede Globo ou do SBT.

É com esse cuidado que se deve entender o dossiê contra o PT recentemente publicado pela Folha de S. Paulo no caderno dominical "Mais!", de 29 de agosto de 1993. Trata-se de um documento que precisa ser analisado sob o crivo de três critérios: o momento, o público e o conteúdo.

Sobre o momento já falamos na primeira parte do artigo, mas é bom lembrar: hoje, a possibilidade de Lula vir a ser presidente pode tornar-se uma probabilidade. Para evitar que se consume a transformação da possibilidade em probabilidade concreta, as classes dominantes não têm muito mais do três caminhos: um é, finalmente, encontrar o seu candidato, que, pela força da competência, do carisma, do dinheiro ou das armas, consiga empalmar a Presidência num pleito direto e formalmente escorreito; outro, é desalojar o Lula e o de suas posições atuais; e terceiro, mais remoto, é o golpe. As classes dominantes, evidentemente, estão colocando fichas principalmente nos primeiros, por enquanto.

A conjuntura brasileira, , se constitui de dois movimentos opostos: em nosso campo, a tentativa de construir uma alternativa de governo e de poder para os próximos cinco anos e para as transformações do futuro. Tentativa que se fortalecerá grandemente se Lula for eleito presidente.

No campo inimigo, isto é, das classes dominantes, a tripla tentativa de procurar governar o Brasil, de manter-se no poder e de impedir que o PT chegue lá.

Trata-se, portanto, de destruir, enquanto é tempo, uma candidatura que, se vitoriosa em 94, provavelmente fará do país um Brasil diferente daquele a quem a Folha jura estar "a serviço", conforme o slogan publicitário que secunda o logotipo, na primeira página do jornal.

E, para dar vigência ao objetivo, o momento é este, nem antes, nem depois: antes, poderia significar gastar muita cera com mau defunto; depois, pode ser tarde demais. Catorze meses é uma boa medida: nem ancho nem fundo, como diria , João Cabral de Mello Neto. Catorze meses, pouco mais, pouco menos, dá tempo para ir subreptícia e progressivamente solapando a candidatura Lula, enquanto se vai procurando costurar outras: Maluf, Jatene, FHC, ACM, Fleury, Brizola, Quércia, Ivan Frota, quem sabe? A dificuldade é escolher um dê certo.

Mas também houve outra razão para a escolha do momento: a proximidade do 8º Encontro Nacional, que a Folha procurou o tempo todo contrapor ao 1º Congresso, não com o espírito sereno e analítico de quem usa o método comparativo para melhor entender e explicar dois momentos históricos distintos, mas com o espírito religioso e inquisitorial de quem opõe o Reino do Bem (o 1º Congresso) ao Reino do Mal (o 8º Encontro Nacional), ou, pior ainda, com o espírito debochado e leviano de quem se deixa dominar pela embriaguez das próprias palavras e faz piadas de gosto duvidoso.

O público da Folha é um público especial, mas há uma parte desse público que é especialíssima: são os petistas, os filiados e simpatizantes, os ativistas sindicais, os esquerdistas.

Foi pensando nesse público que o jornal fez seu caderno. Esse é o público que potencialmente pode entusiasmar-se ou desanimar com a candidatura Lula, que pode forçar as entidades de que participam a apoiar ou não essa candidatura, podem dedicar sua garra e sua militância para levar Lula ao segundo turno, ou, ao contrário, para lá levar outro candidato alternativo. O jornal sabe que o leitor petista médio freqüentemente se impressiona mais com as matérias aparentemente "isentas" e "apartidárias" da Folha do que com os xingamentos explícitos dos colaboradores do Estadão ou com os elogios em boca própria dos órgãos da imprensa partidária petista.

E, finalmente, o conteúdo: além de uma entrevista do Lula, as peças de resistência do dossiê são alguns artigos assinados e várias matérias daquilo que normalmente se chamaria de "jornalismo de serviço", não assinadas, e onde, sutilmente, o jornal mistura informações factuais com opiniões, juízos de valor, avaliações subjetivas, rotulações preconceituosas etc.

O artigo do professor Renato Janine Ribeiro saiu truncado. A análise do professor Leôncio Martins Rodrigues é um pouco frustrante. Pelas suas qualificações acadêmicas, pela insistência com que vem expondo a vida íntima do PT e da CUT, seria de se esperar algo mais substancioso, algo que pudesse responder, senão às preocupações dos que fazem do PT um projeto de vida, pelo menos à curiosidade dos que são capazes de fazer do PT um objeto de estudo.

Ninguém ignora que a composição social de uma instituição, seja um sindicato, uma universidade ou um partido, possa dizer algo sobre essa instituição. Mas nenhuma instituição esgota a sua realidade nos seus integrantes, nos seus agentes. Além dos sujeitos, também as ações, as normas escritas e não escritas, a história, as idéias, os valores, os propósitos, os documentos, ajudam a compor a análise da instituição. É óbvio que o professor Leôncio Martins Rodrigues não desconhece tal circunstância. Por isso mesmo, não fica fácil entender porque o professor reduziu sua possível análise do PT a uma sucessão de quadros estatísticos da composição ocupacional e profissional de seus dirigentes. Se não fosse por quem é, poder-se-ia até supor que o autor tivesse caído na armadilha que se conhece por "falsa objetividade": uns tantos números, umas porcentagens, de preferência gráficos e tabelas, citações e notas de rodapé e aquele jeitão de coisa acadêmica. Pronto! Era exatamente do que a Folha precisava para dar um ar de cientificidade e circunspecção ao seu dossiê contra o Partido dos Trabalhadores. Parafraseando o próprio professor, outras atividades, além da política, também podem ser essencialmente mistificadoras, como, por exemplo, a sociologia e o jornalismo.

Perseu Abramo é membro da Executiva Nacional do PT.

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