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Aziz Ab´Saber conta sua experiência na Caravana da Cidadania

O professor Aziz Ab'Saber, presidente da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência -, acompanhou a Caravana no seu primeiro trecho, até Rondônia. Para ele, a iniciativa de conhecer in situ as diversas realidades brasileiras, transforma o PT, e particularmente Lula, num caso quase único na política brasileira, na qual a regra é de figuras públicas interessadas apenas em promover eventos que reúnem grande número de pessoas dando sempre no máximo um minuto para perguntas.

Quias eram os objetivos na preparação da Caravana?

O conceito da Caravana da Cidadania está assentado no conhecimento de realidades regionais, na percepção e busca de informações sobre as realidades setoriais, saúde pública, saneamento básico, condições sócio-econômicas, problemas relacionados com segmentos diferentes da sociedade, os comandantes do processo e, ao mesmo tempo, os fatos que dizem respeito ao tipo de atividade que se projeta sobre o espaço geográfico de cada região. Tudo isso forma um conjunto de conhecimentos de interesse daqueles que têm uma vida política. Essas pessoas precisam conhecer in situ as realidades regionais. Eu não pertenço ao PT, mas estou ligado definitivamente ao PT, por história particular de relações, de admiração, amizade e estima. Minha posição é a seguinte: em tudo que eu pudesse colaborar ao longo de excursões da Caravana da Cidadania, no sentido de retirar conhecimentos e colocá-los nas mãos de pessoas que têm o meu respeito, estou fazendo. É como se o Governo Paralelo se transformasse num conjunto de pessoas que se sentissem na obrigação de colocar todo o conhecimento que têm sobre as regiões nas mãos daqueles que querem receber esse conhecimento. Mesmo porque não é qualquer político que tem condições de humildade para receber conhecimentos. Estou na SBPC e conheço bem o problema, posso fazer o melhor plano possível para o sertão do Nordeste, mas entre sua elaboração e sua execução existe um abismo. Essa possibilidade de ser útil aos políticos não é coisa fácil, pois o que eles gostam é de fazer eventos chamando muita gente, dando um minuto a cada um para fazer uma pergunta. Por isso eu tenho alegria em colaborar com as pessoas que sabem receber informação. Outra coisa que também gostei muito nessas duas excursões é que o Lula e as lideranças procuram entrevistar as pessoas comuns nas ruas, que estão aglutinadas para um ato público qualquer. Dessas entrevistas públicas existem duas conotações: uma é transparência - escolhe-se pessoas que querem falar e as pessoas falam o que querem -, e outra é a revelação das aspirações.

Professor, conte-nos sobre o imprevisto de sua viagem a Assis Brasil.
A Caravana iniciou percorrendo o setor do Acre Oriental, zona de fronteira com Peru e a Bolívia, em seguida entrou na pequena área que não é acreana nem rondoniana, onde a população está sofrendo essa instabilidade de relacionamento institucional-político-administrativo, depois veio Rondônia e, por fim, atingiu o estado de Mato Grosso, fechando seu itinerário na cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Começamos na fronteira. Assis Brasil está na fronteira com o Peru e Brasiléia, na fronteira com a Bolívia. Essa fronteira com o Acre foi rapidamente atingida pelos agropecuaristas, seguindo o eixo de uma estrada, que é a chamada BR-317, que vai até Rio Branco, passa perto de Xapuri e chega a Brasiléia. Depois houve uma extensão dela que chega até Assis Brasil, um vilarejo com problemas de ligação com o restante do país. O melhor acesso é por via aérea. Os problemas são sérios: tem dois campinhos de aviação de terra, um em Brasiléia e outro mais rudimentar em Assis Brasil. No aeroporto de Rio Branco, nos dividimos em quatro aviõezinhos, cada avião com quatro integrantes mais o aviador e talvez um colega do aviador, não exatamente um co-piloto. O piloto do avião em que embarquei convidou um colega e foram conversando. De repente ele nos diz: "estamos aqui com um pequeno problema: fazem 35 minutos que partimos, eu devo chegar em Assis Brasil aos 55, portanto faltam 20 minutos, mas eu não estou muito certo, porque aqui nós estamos nos guiando pelos minutos". Eu fiquei apavorado. Quer dizer que é assim; o avião sai de um lugar imbica na direção de Assis Brasil. Tinha havido um vento favorável e o avião chegou mais cedo a Assis Brasil sem que o piloto percebesse, e já estávamos em cima de uma base aérea, muito bem organizada, um vasto aeroporto asfaltado, uma diferença fantástica dos dois campos de aviação brasileiros. Bem, nós estávamos no Peru. Só não sabíamos em qual cidade. Estávamos rigorosamente perdidos na rota. Se descêssemos seríamos aprisionados porque não tínhamos documentação, e até explicar o que era a Caravana da Cidadania... Então, o piloto decidiu voltar para Brasiléia e tentar se comunicar. A essa altura, os colegas, que chegaram rapidamente a Assis Brasil, pensavam: "saiu primeiro e até agora não chegou. Caiu na mata." Foi a intuição do Lula que nos salvou. Ele mandou um avião subir para nos procurar. E aí um avião contatou o outro e resolvemos voltar para Brasiléia. Nosso piloto não tinha nem um mapinha do Brasil, numa escala um pouco melhor, nem carta aeronáutica ou topográfica.

E só depois foram para Assis Brasil?
É. Chegamos atrasados e perdemos até o ato público. Em Assis Brasil existe um pequena escarpa que dá acesso a uma zona bem definida, onde a cidade fica num nível mais baixo. Na rota da caravana, nós saímos da depressão periférica, subimos a escarpa, e passamos pelos terrenos mais acidentados do reverso da escarpa, onde começam minhas observações. As agropecuárias tiraram uma largura razoável da floresta e, à medida que eles tiraram a mata, contribuíram para eliminar a perenidade da drenagem. E isto é muito grave. Até para os agropecuaristas, pois, para terem água corrente precisam ir muito para dentro das suas fazendas, desmatando cada vez mais. Durante os dois ou três meses secos, eles precisam fazer açudes. E como não tem terra no Acre, que é todo sedimentado, eles constroem o açude de terra batida. Assisti casos em que os açudes se arrebentam quando as estações das águas chegam. Resultado: pouco gado e pouca produtividade. E pior ainda é um grande apossamento fundiário.

E essa situação se repete no restante do percurso..
Em Brasiléia, a situação urbana é a seguinte: é uma cidade de apoio a toda população de seringueiros e eventuais castanheiros, uma vez que a castanha na região já está perdendo força socioeconômica. Como essa região é a área onde os brasileiros chegaram até as fronteiras e gradualmente tornaram-se peões de fazendas de bolivianos, então existem esses chamados brasiguaios ou boliviano-brasileiros, que já estão hoje dentro do Peru como peões, uma vez que o peruano não tem técnica e tradição cultural de ser seringalista. O brasiguaio tem o apoio na fronteira que é a cidade de Brasiléia, com tudo o que precisa. A cidade já tem um hotelzinho razoável, tem duas ou três pensões, tem uma igreja muito bem relacionada com a população, e sobretudo, tem a organização popular dos seringueiros, o Conselho Nacional dos Seringueiros, que foi liderado por Chico Mendes, hoje sucedido por Osmarino Amâncio. A cidade tem uma vida pobre e o estado de saúde dos estudantes e adolescentes é muito ruim.

Brasiléia faz fronteira com Cobija na Bolívia...
Cobija está no platô, é uma cidade com construções mais antigas, tipo casarões, e tem maior atividade geral que Brasiléia. Tem seus bares, restaurantes e uma ou outra casa onde vende bugiganga. Seria muito bom, se o contato fosse mais amigável e menos como querem as alfândegas do lado brasileiro. A cidade funciona como uma mini zona franca, vende máquinas fotográficas, gravadores, um pouquinho de tudo.

Quais foram suas impressões sobre Xapuri?
O trecho entre Brasiléia e Xapuri é mais perenizado, é dessas regiões que têm os açudes muito próximos das cabeceiras dos rios. De vez em quando a estrada faz um aterro que corta uma dessas cabeceirinhas, formando os igarapés. Tem grandes problemas a relação entre a drenagem e as fazendas nessa região. Alguns tentam resolver o problema interiorizando a sede e os pastos, mas não adianta. Xapuri é uma cidade de uma importância histórica extraordinária. Primeiro, a história da conquista territorial da região para o Brasil. Aquela região era território de ninguém, pretendido pela Bolívia e pelo Peru. Os seringueiros brasileiros foram entrando pela cabeceira do rio Acre e, liderados por Plácido de Castro, expulsaram os bolivianos. Por uma questão de uso e apossamento, tomaram o território para o Brasil. Já recentemente, foi palco de outro grande acontecimento: um seringueiro de consciência cívica, ecológica, ambientalista, e de proteção de uma cultura e dos povos da floresta, deu-lhe expressão internacional: Chico Mendes. Então, a cidade começa com um fato histórico importante e prossegue com outro de interesse internacional. Foi em Xapuri, que tivemos um ato público muito melhor do que o da capital, com muito mais gente, extremamente organizado. E, curiosamente, os líderes - eu gosto de apreciá-los - em cada cidade, em função do élan da presença popular, foram aperfeiçoando seu discurso e usando o conhecimento que adquiriram ao longo do trecho. Percebi isto tanto em relação à Erundina quanto ao Lula.
Quais foram suas observações quanto aos seringais?
Xapuri é uma cidade à procura de suas novas funções, já que os seringais estão em recuo. Visitamos o Seringal de Cachoeira que é a grande obra de Chico Mendes e seus discípulos, fomos recebidos pelos trabalhadores de lá, andamos pela estrada da castanha. Ouvimos os seringueiros tradicionais da região contarem as histórias da seringueira. Por exemplo, falaram sobre uma erva do chão, que tem o poder talhar o sangue dos cortes e que o açaí macerado tem valor idêntico e assim por diante. Eles têm um conhecimento que vem desde o índio e que é aproveitado pelos laboratórios estrangeiros porque eles são muito ingênuos e contam tudo. E os grandes laboratórios levam para o exterior e patenteiam. Foi bom perceber como eles acabam ensinando os cientistas de fora, que depois fazem a síntese do material e acabam por obter um produto que tem um valor econômico, um valor agregado. O seringueiro é coletor, caçador e pescador, só que nessas áreas, os igarapés são muito estreitinhos e, devido à devastação que houve nas cabeceiras, quase não há água suficiente e eles fazem pequenas barragens. É zona de litígio entre os grupos do Chico Mendes e os compradores de fazenda. Foi lá que se deu o primeiro conflito entre Chico Mendes e seus assassinos. A estrada principal pra chegar ao seringal é uma vergonha, pertencia à Prefeitura de Xapuri que não cuidou dela. Agora, houve desmembramento de município e ficou a dúvida sobre qual município deveria ter o dever de consertar a estrada. O resultado é que nenhum dos dois arrumam, e o produto tem que ir para a Cooperativa Agroflorestal, que é a cooperativa que trabalha com a castanha, põe castanha em todo o seringal e depois leva para Xapuri para quebrar e empacotar. Esta é a principal indústria de Xapuri, principal fonte de ICM e não querem melhorá-la. Bom, outro problema sério em Xapuri são os herdeiros de Chico Mendes, de um lado sua viúva Izamar com o novo marido e um grupo de vereadores; e do outro lado os herdeiros diretos de Chico Mendes, na pessoa do Raimundão, Raimundo Lopes e, sobretudo, do líder Gumercindo, que além de ser animador cultural, desempenha papel importante entre o seringal, a cooperativa e a cidade.

Que outra atividade econômica existe nos campos do Acre?
Senador Guiomard é o lugar onde pela primeira vez a agricultura foi implantada no Acre: café, milho, cana, algumas plantações de héveas, por parte de terceiros, banana, em pequenas propriedades. É como se fosse uma reforma agrária empírica que apareceu lá. Tem um pouquinho de gado e pequenas criações. A população é formada por herdeiros de seringueiros vindos do Nordeste, e souberam construir uma propriedade auto-suficiente, com pequenos excedentes de produtividade. Bom, eu já conhecia o modelo agrário e a estrutura fundiária de Senador Guiomard, que hoje é uma cidadezinha de uns 15, 20 mil habitantes. Saindo de lá, passamos pelo projeto Reca. Um grupo de 257 famílias está reunido num certo espaço semicomunitário, plantando de tudo que eles puderam absorver do conhecimento regional e do modelo Senador Guiomard. Eles cultivam castanheiras enxertadas. Entre as castanheiras, eles plantam mandioca, arroz, abacaxi, cana.

E o contato com nações indígenas?
Até onde eu acompanhei, a Caravana esteve com pequenos grupos remanescentes, que estavam eufóricos de poder chegar até as lideranças políticas. O Lula chegou e falou a linguagem deles. São índios karetianos. O único lugar em que eu me atrevi a fazer um pequeno discurso foi para os índios. Pensei: eles não vão me entender mas eu vou falar. Expliquei para eles os riscos dos contatos entre grupos étnicos diferentes, com culturas totalmente diferentes, sobretudo quando um desses grupos é mais fraco no domínio tecnológico. Expliquei como a cultura indígena carrega valores sociológicos importantes, mas como o homem branco tem mais poder de agressividade.. Falei em seguida - conforme aprendi com Roger Bastide - que o principal atributo do homem é traçar a trajetória da espécie e que, portanto, a memória cultural do índio precisa ser preservada, do mesmo modo que tentamos preservar a memória dos homens e da civilização ocidental. Bem eles podem não ter entendido muita coisa, mas as lideranças que estavam lá, que auxiliam a eles, entenderam o recado.

Alípio Freire é editor de T&D. Rose Spina é jornalista.