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Desde que foi promulgada a Constituição, a situação da mulher brasileira nada avançou no que diz respeito às conquistas sociais. Os preconceitos continuam portanto vigindo, rondando e tentando deixar de lado temas como o planejamento familiar e o aborto

Depois de quase cinco anos da promulgação de nossa Carta Magna, a situação da mulher brasileira, no que se refere às suas conquistas sociais e à igualdade de direitos, continua a mesma. Apesar da necessidade de se votarem projetos de urgência e de grande relevância, nada justifica essa omissão do Congresso Nacional, que afeta e prejudica um contingente de milhões de mulheres, historicamente condenadas à subordinação social, embora sua participação em todos os setores da vida moderna seja inquestionável.

Por identificar no contexto do poder decisório e das categorias dominantes, uma quase generalizada indisposição para mudar esse status quo, uma resistência mesclada com desinteresse em relação às lutas das mulheres pela efetiva igualdade social e civil, assumi o compromisso de defender os seus direitos.

Esse compromisso, de qualquer forma, ultrapassa os estreitos limites de defesa e promoção de determinadas categorias. Assim como o projeto de lei dispondo sobre o planejamento familiar, conforme preceitua a Constituição, e outro projeto de lei, que complementa o anterior, ao disciplinar a prática do aborto.

Ambos são temas polêmicos, controversos e cercados de preconceitos. Um e outro propõem modificações substanciais nas políticas públicas. O Congresso Nacional não pode postergar eternamente esse confronto, muito menos aceitar a condição de tabu em que essas questões se transformaram.

Da mesma forma como o ministro da Justiça fala em "abandonar a política de avestruz" e incluir a regulamentação do aborto na pauta da reforma do Código Penal, o Senado não pode ignorar o tema, deve empenhar-se em acompanhar a dinâmica da evolução social.

O aborto, queiramos ou não, é um grave problema de saúde pública, que tem provocado a morte de milhares de cidadãs brasileiras todos os anos. Para dar uma idéia de sua gravidade, basta dizer que, durante o transcorrer de quatro ou cinco horas, quase uma centena de mulheres é internada nos hospitais da rede pública com seqüelas diversas, em conseqüência de aborto, pois, sendo quase sempre ilegal, sua prática clandestina não oferece atendimento terapêutico adequado.

É preciso esclarecer, desde já, que o projeto de lei, que tramita no Congresso, não recomenda a prática indiscriminada do aborto, nem faz sua apologia. O referido projeto, isto sim, quer evitar que milhares de mulheres comprometam sua saúde ou percam a vida por pretenderem livrar-se de uma gravidez indesejada. É preciso deixar claro, também, que, apesar das punições previstas no Código Penal, a legislação em vigor jamais se revelou capaz de impedir a crescente elevação do número de abortos clandestinos.

Cálculos da Organização Mundial de Saúde indicam que ocorrem 55 milhões de abortos, anualmente, em todo o mundo; 6 milhões na América Latina; e 3 milhões no Brasil. Esses números são controversos, porém alarmantes - estarrecedores, até, num país em que, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição, do IBGE, realizada em 1989, 36,1% das mulheres contatadas são de famílias abaixo do limite de pobreza (renda de meio salário mínimo mensal per capita). A pesquisa, citada pelo jornal O Estado de S. Paulo de 18 de janeiro deste ano, revela ainda que 13.862.944 mulheres declararam ter ficado grávidas nos cinco anos anteriores, e que 14,9% tiveram pelo menos uma gravidez interrompida.

Os dados sobre as gestações interrompidas são inexatos, até pelo fato das ocorrências serem clandestinas. Fiquemos, porém, com as estimativas mais otimistas, aceitas pelo Ministério da Saúde. Elas revelam a prática de 700 mil abortos clandestinos, anualmente, no Brasil. Além disso, o Ministério informou que o aborto é a décima causa de internação hospitalar no país. Só em 1991 o Inamps atendeu 391.911 casos dessa natureza.

A legislação em vigor, sobre não impedir ou reduzir a prática do aborto ilegal, acaba por levar mulheres a provocá-lo pessoalmente, ou a procurarem clínicas clandestinas. De uma ou de outra forma, trata-se de uma gravíssima questão de saúde pública, que afeta, principalmente, as mulheres de mais baixa condição sócio-econômica.

Quando, então, se aliam a falta de recursos e a ignorância, o resultado é ainda mais desastroso. O aborto, nessas condições, freqüentemente é provocado com banhos de soda cáustica, cristais de permanganato de potássio, injeções de hormônios, ou mesmo com a introdução de objetos pontiagudos, como tesouras e agulhas de crochê, no útero. As conseqüências são conhecidas: hemorragia, infecções generalizadas, câncer, esterilidade irreversível, traumatismos psíquicos e, não raramente, a morte da gestante.

As seqüelas do aborto clandestino não acontecem apenas no Brasil. Dos 55 milhões de abortos praticados anualmente em todo o mundo, metade é feita em condições precárias. A conclusão é de especialistas da Federação Internacional de Planejamento Familiar, que apontam as complicações decorrentes de abortos malfeitos como responsáveis por 40% das mortes relacionadas com a maternidade. Ao mesmo tempo, alertam os agentes das políticas e dos programas de planejamento familiar para a necessidade de estreitarem os contatos com os dirigentes dos países que, por motivos religiosos, impedem a prática dos direitos reprodutivos.

A questão do aborto envolve conotações de toda ordem e tem sido discutida desde a Antiguidade. Do ponto de vista médico, o assunto não comporta maiores questionamentos, pois os números que citamos eliminam qualquer dúvida sobre os efeitos extremamente nocivos do aborto ilegal e clandestino. Há resistências, contudo, de ordem moral, jurídica e religiosa, que devem ser consideradas dentro do contexto sociológico em que se situa a interrupção da gravidez.

Há que se destacar, inicialmente, o tratamento que a sociedade brasileira confere ao aborto, do ponto de vista jurídico. O Código Penal brasileiro, promulgado em 1940 há mais de meio século, portanto -, prevê a prática legal do aborto em duas condições: se não houver outro meio de salvar a vida da gestante; e se a gravidez resultar de estupro, havendo, entretanto, necessidade de consentimento da gestante, ou de seu representante, se ela for absolutamente incapaz, para interromper a gravidez.

As exceções previstas no Código Penal demonstram que o conceito de vida humana, cuja dignidade ninguém ousa questionar, não pode ser absoluto, havendo necessidade de considerá-lo dentro de um contexto sociológico mais amplo. A eliminação do feto tem o respaldo da lei, e mesmo da religião, se visa salvar uma outra vida humana.

No segundo caso, a lei mostra-se mais tolerante que os preceitos religiosos ao permitir que se interrompa a gestação resultante de estupro. Em outros termos, a lei entende que não se pode penalizar a vítima, obrigando-a a suportar o trauma de uma fecundação que não resultou de sua vontade. Efetivamente, não se pode conceber que, por uma fatalidade biológica, a mulher seja obrigada a manter no ventre o fruto da violência e da humilhação de que foi vítima, podendo até, com o passar do tempo, desenvolver por ele profunda aversão.

Em todo o mundo, a legislação pertinente ao aborto tem se modificado no transcorrer deste século, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Cerca de 40% da população mundial vive em países que permitem a realização do aborto nos primeiros meses de gestação. Entre os países que admitem legalmente o aborto encontram-se Grã-Bretanha, Suécia, Holanda, França, Canadá, Estados Unidos, Bélgica, Áustria e Austrália.

Diante desses dados, é forçoso concluir que a ação do Estado sobre a reprodução humana varia em função das circunstâncias, da cultura de cada povo e das coordenadas sociológicas, não se submetendo, portanto, a um corte longitudinal, a uma visão linear e ortodoxa.

As diferenças no tratamento da natalidade e do aborto não variam somente em função dos aspectos geográficos, mas sujeitam-se também à perspectiva histórica. Grandes filósofos e teólogos que se ocuparam com o tema adotaram as mais diferentes posições.

Devo dizer, por exemplo, que Licurgo não admitia o aborto. Platão o admitia para as mulheres acima dos quarenta anos. Para Aristóteles, o aborto se justificava enquanto o feto não tivesse adquirido alma, uma questão controversa ainda hoje. São Tomás de Aquino acreditava que o feto somente seria dotado de alma quando pudesse ser reconhecido como ser humano. Ou seja: após o parto. No entanto, teorizava a respeito de uma "alma vegetativa", que evoluiria à medida que o feto se desenvolvesse, num processo chamado de hilomorfismo. Isto porque o feto não poderia ter alma desde sua concepção, já que o homem seria "a imagem de Deus", e um feto é um ser em formação.

Por outro lado, Santo Agostinho chegou a determinar o momento exato em que o feto passaria a ter alma e, portanto, ser resultado de uma combinação entre matéria e espírito. De acordo com Santo Agostinho, a hominização (o momento em que a alma entra no corpo) aconteceria no 40º dia gestacional para os fetos masculinos, e no 80º dia gestacional para o feto feminino. Antes destes prazos a gravidez poderia ser interrompida.

Houve, também, teólogos que admitiram a interrupção da gravidez quando "resultante de relação adúltera" nos primeiros seiscentos anos da cristandade. Parece-nos que, neste caso, a existência ou não da alma foi considerada irrelevante para os teólogos.

A Igreja Católica somente se pronunciou oficialmente sobre a questão em 1869, sob o papado de Pio IX, quando condenou, em qualquer hipótese, a interrupção voluntária da gestação.

A posição dogmática do Vaticano, porém, encontra resistência entre renomados teólogos. Entre esses, pode-se citar o redentorista Bernahard Haering, para quem o aborto se justifica para preservar o útero para futuras gestações, ou diante da impossibilidade da mulher aceitar a gravidez, como conseqüência dos danos psicológicos causados pelo estupro.

Também quero mencionar o jesuíta espanhol González Faus, para quem a descriminalização do aborto pode ser um mal menor, "enquanto não tivermos uma sociedade em que o aborto já não seja necessário", e é o que espero que aconteça brevemente no Brasil.

O aborto é sempre a última opção para qualquer mulher, pelos traumas e sofrimentos que acarreta. Não pode, portanto, ser considerado fora do contexto sociológico. Temos que levar em conta, para sua admissão, que milhões de mulheres o fazem por ignorância, por falta de condições financeiras para criar o filho, por falta de amparo da família e dos homens, que transferem toda a responsabilidade para a gestante.

Há que se considerar as mulheres que morrem ou ficam com seqüelas irreversíveis em conseqüência de abortos clandestinos. Há que se conscientizar, ainda, de que a legislação brasileira, retrógrada, não tem impedido a proliferação do aborto, enquanto sua legalização, com atendimento médico e psicológico adequado, pode até contribuir para que a gestante se decida a levar a gravidez a termos.

A descriminalização do aborto não tem por objetivo fazer a sua apologia, mas resguardar a saúde física e psíquica da mulher. É um direito seu enquanto cidadã. O país não pode fechar os olhos e cruzar os braços diante desse gravíssimo caso de saúde pública em que o aborto, feito clandestinamente, se transformou.

Eva Blay é senadora da República pelo PSDB/SP.

Propostas de modificação do Código Penal

Código Penal (1940)
Artigo 124: Classifica como crime a prática dó aborto. A mulher que fizer aborto e o médico, ou parteira, que o realizarem, podem ser  condenados a até três anos de prisão.

Artigo 125: Diz que é crime provocar aborto sem o consentimento da mulher. Para este caso, a pena varia de três a dez anos de prisão.

Artigo 126: Considera crime o aborto realizado a pedido da mulher. A punição prevista oscila de um a quatro anos.

Artigo 127: Aumenta em um terço as penas estabelecidas nos artigos 125 e 126 se a mulher sofrer lesão grave durante o aborto. A pena é duplicada se a mulher morrer em conseqüência do aborto.

Artigo 128: Não pune o médico que realizar aborto para salvar a vida da mulher e se a gravidez for resultado de estupro.

Projeto de Lei nº278 (1993)
Artigo 124: revogado

Artigo 125: A punição é aumentada em um terço se a gestante sofrer algum tipo de lesão em conseqüência do aborto que não autorizou. Caso a gestante morra, em conseqüência deste aborto não autorizado, a pena é duplicada.

Artigo 126: revogado

Artigo 127: revogado

Artigo 128: O médico pode realizar o aborto em qualquer período da gravidez; se a gravidez for resultado de estupro e se não houver outro meio para salvar a gestante. Também permite que o médico realize o aborto até a 12º semana da gestação e da 12º semana à 25º se existir, alguma doença (patologia) que punha em risco a saúde física ou mental da gestante. O aborto pode ser realizado em hospital público, sem despesas para a mulher.