Nacional

No teatro da revisão, atores, autores, diretores, cenógrafos, crítica especializada e até mesmo os profissionais de bastidores não chegaram a um mínimo de consenso sobre a realização do espetáculo ou sobre seu conteúdo

Crise econômica, miséria, massacres de índios, presos e favelados, corrupção, sucessão presidencial e desgoverno. É o cenário que temos no momento em que se engendra mais um novo ato da história constitucional brasileira.

Partindo da Constituição de 1824, e passando por outras seis (1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e considerando-se a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 como um novo texto constitucional), chegamos à Carta de 1988 e, agora, após uma acirrada disputa no Congresso Nacional, ao processo de revisão constitucional deste último texto. Dependendo da dimensão substantiva das alterações que poderão ser introduzidas na nossa vigente "lei maior", por meio desta revisão, chegaremos, em alguns meses, ao impressionante número de nove textos constitucionais diferentes produzidos no espaço de apenas 170 anos. Uma boa média, sem dúvida, para o rallye constitucional dos povos latino-americanos.

Apesar do nosso know-how em mudanças constitucionais, devemos reconhecer que hoje, diante deste novo processo de alteração da Constituição, estamos mais cercados de dúvidas do que de certezas. É tão confuso e alarmante o cenário político, econômico e social em que vemos mergulhado o nosso teatral país-continente, que até agora a sua população espectadora não tem qualquer previsão acerca do que está para ser efetivamente encenado. Atores, autores, diretores, cenógrafos, crítica especializada e, até mesmo, os profissionais de bastidores não chegaram a um mínimo de consenso sobre a realização do espetáculo, ou sobre o seu conteúdo. A ninguém, pois, é dado saber se assistiremos a um drama, a uma comédia, ou a uma superprodução cênica que será premiada, ao seu final, apenas por seus efeitos especiais.
Em um esforço de síntese, podemos afirmar que três blocos de questões encerram o mundo de dúvidas e de disputas que marcarão em definitivo a história desta revisão constitucional. Passemos a apontá-los.

A primeira discussão

A primeira discussão que envolveu a revisão do texto da nossa Constituição, e que em nova perspectiva ainda continua a envolvê-la, é a pertinente a conveniência da sua própria realização. Determinada pelo artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, assumiu a revisão um aspecto extremamente polêmico quanto a ser iniciada ou não em outubro de 1993, no momento imediatamente posterior ao que a Carta de 1988 completava seu quinto ano de vida. Teses e posições diversificadas surgiram, para todos os gostos, matizes e colorações ideológicas, por vezes temperadas nas suas respectivas defesas por ameaças, fanfarronices e, em alguns casos, até por sopapos e pescoções.

Mas, se alguma surpresa houve neste embate, isto se deve mais ao confuso alinhamento dos que integravam os grupos de sustentação de cada uma das teses ou propostas, do que propriamente ao conteúdo de cada uma delas. Realmente, em todo o processo que marcou esta discussão, por mais que se queira, não se poderá dizer com tranqüilidade que tenha ocorrido uma nítida polarização política entre os grupos ou personalidades que habitualmente denominamos de "conservadores" e "progressistas", como em certa medida ocorreu no processo constituinte de 1988.

Para demonstração do que se acabou de dizer, basta verificarmos que tanto dentre os representantes da direita, da esquerda e do centro, indistintamente, houve os que defenderam a realização "já" da revisão, em absoluto descompasso com seus aliados, ou mesmo com companheiros de partido e de posições políticas, e os que propuseram, em iguais condições, a sua não realização imediata.

No campo normalmente rotulado de "conservador", por exemplo, tem sido comum se afirmar que boa parte dos males por que passamos viriam da nossa "mal posta" Constituição de 1988. "Demagógica", "estatizante", "corporativista", deveria a nossa atual Carta ser "enxugada", de forma que permitisse o nascimento de um "novo Estado" onde existam menos tributos, menos "direitos" e impedisse o crescimento econômico e o combate de criminalidade, menos intervencionismo, e mais liberdade para o desenvolvimento capital.

Todavia, o que propõem os que assim pensam? De um lado, sem dúvida, houve os que acreditam que a revisão "já" seria o único caminho a seguir. Aproveitando a crise, a desagregação da "sociedade civil", e o caráter apatetado, inodoro e insípido do governo Itamar Franco, para com a maior rapidez possível completar as mudanças necessárias, sem grandes dramas ou seqüelas. Não se deveria dar tempo para que o discurso "demagógico" e "socializante" pudesse se recuperar, nem para que o futuro presidente da República, legitimado pelas urnas de 1994, viesse a ter a pretensão de navegar por "outros mares".

Houve, porém, inegavelmente, dentro deste mesmo campo político-ideológico quem tenha manifestado frontalmente sua discordância com esta proposição tática. Querer modificar uma Constituição para libertá-la de seus aspectos "demagógicos" e "estatizantes", às vésperas de uma eleição, contando com o apoio de parlamentares que precisam "agradar às suas bases eleitorais", será de uma burrice primária, disseram os adeptos desta outra posição tática. "Que se espere as novas eleições", propunham. Saciada a fome eleitoral, os deputados e senadores "agirão mais livremente". E poderemos até - arrematavam seu raciocínio - por via do novo texto constitucional revisto, se for o caso, criar novos grilhões para o presidente eleito, na hipótese evidentemente de ele não ser da "inteira confiança" das classes dirigentes.

No terreno dos chamados "progressistas", maior harmonia tática também não existiu. Há, por um lado, os que também desejaram ver concretizada "já" a revisão. Primeiro, porque acreditam que em um período pré-eleitoral, dificilmente os atuais deputados e senadores aprovariam mudanças constitucionais impopulares e antidemocráticas. Segundo, porque entendem que se é grande a chance de termos um futuro governo no país de perfil "progressista", seria melhor a este receber já uma Constituição "revista", do que se ver mergulhado em uma profunda paralisação durante o período em que sob sua regência pudesse se dar a revisão constitucional. Afinal, costumam lembrar, uma revisão constitucional poderá ser vista, como um momento tático interessante para a supressão golpista de poderes dos novos mandatários, ou para a desestabilização definitiva de qualquer plano de governo "progressista".

Mas, ao revés, há também aqui em grande número os que desejam que não se realizasse "já" a revisão. Cientes da desarticulação da sociedade civil, temem ainda hoje o avanço incontrolável e rápido das teses conservadoras, com a supressão das conquistas conseguidas no texto da nossa atual "Constituição-cidadã". Gritam assim pela ilegitimidade deste processo de revisão constitucional realizado por pessoas que não foram eleitas para tais funções, e acusam a "revisão" de ser um verdadeiro golpe de Estado retoricamente apoiado na própria Constituição.

Seja qual for a posição que tenha mais nos animado ao longo deste período, a verdade é que juridicamente todas tiveram, ao menos na sua admissibilidade jurídica, pleno respaldo constitucional. De fato, o artigo 3º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição, que disciplina a matéria, se limita a dizer que "a revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição". Ao Congresso Nacional, desta forma, ao decidir pela realização imediata da revisão, coube a opção pelo caminho que, naquele momento, pareceu mais apropriado a maioria dos seus membros.

Não imaginemos, porém, que esta decisão encerra sem mais conseqüências o embate em questão. Os que perderam, legitimidade não se julgam derrotados. Dizem que até agora, da guerra, só se viu a primeira batalha. Buscarão todas as formas regimentais, e de pressão social possíveis, para evitar o "desastre", que, a seu ver, esta revisão poderá introduzir no cenário institucional brasileiro.

Somente a história nos dirá, pois, e talvez em futuro muito próximo, quais os verdadeiros vitoriosos, e quais os reais perdedores deste embate acirrado e confuso, onde o aspecto mais fascinante e desafiador está em se saber quem dentre os que polemizam no seu próprio campo, sejam "progressistas" ou "conservadores", acabará finalmente por dizer que estava com a razão.

As três teses

Outro ponto que tem suscitado aguda polêmica é o de se saber a real extensão da revisão constitucional. Tudo pode ser modificado na Constituição? Ou haverá dispositivos do atual texto que deverão ser vistos como juridicamente "intocáveis" pela revisão?

Uma das teses, denominada por alguns juristas de maximalista, sustenta a possibilidade da revisão ilimitada da Constituição. O processo de revisão tudo poderia alterar, suprimir ou acrescentar. Inclusive, diga-se, as denominadas "cláusulas pétreas", ou seja, aquelas regras que, nos termos do artigo 60, parágrafo 4º, da nossa atual Carta, seriam impossíveis de serem modificadas por emendas à Constituição (forma federativa do Estado; voto direto, secreto universal e periódico; separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais).

Sustenta-se este ponto de vista na tese de que estas "cláusulas pétreas" seriam apenas imodificáveis para fins de aprovação de emendas à Constituição, e não de uma "revisão constitucional" propriamente dita. Afinal, afirma-se, tratar-se-iam de dois processos de alteração da Constituição completamente distintos e inconfundíveis.

Em reação a esta opinião, de imediato, surge a tese normalmente chamada de intermediária. Por ela, se admite a reforma de toda a Constituição, ressalvadas apenas as já aludidas cláusulas pétreas. Afinal, se pondera, se estas cláusulas nos termos do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição, não podem ser alteradas por via de emendas à Constituição, que exigem para sua aprovação o voto de três quintos dos membros do Congresso Nacional, na Câmara e no Senado, com muito mais razão se deve entendê-las como não passíveis de serem modificadas pelo processo de revisão. Com efeito, neste, a aprovação das modificações se dará pelo voto apenas da maioria absoluta do Congresso Nacional, colhido em sessão unicameral.

E por fim, temos ainda a tese minimalista. Para os defensores desta, a revisão deveria se limitar a fazer as adaptações necessárias do texto constitucional ao resultado do plebiscito que decidiu, de acordo com o artigo 2º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988, a forma (república ou monarquia) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) do nosso país. Nada mais poderia ser alterado nesta revisão, sob pena de inconstitucionalidade.

Desta forma, ao ver dos adeptos desta última posição, muito pouco, ou praticamente nada, restaria ser submetido à revisão constitucional. Aprovada no plebiscito a república e o presidencialismo, já acolhidos pelo atual texto, a revisão teria perdido totalmente a importância que possuiria se outro tivesse sido o resultado das urnas.

Evidentemente, também aqui caberá ao Congresso Nacional assumir a tese que constitucionalmente lhe parecer mais apropriada. Só que agora com uma diferença. Os descontentes poderão invocar a correção da sua tese junto ao Poder Judiciário, que será o responsável pela última palavra a ser dada a respeito.

Tudo leva a crer, pois, que dependendo do caminho trilhado pelo Congresso Nacional, poderemos ter ao longo dos próximos anos um texto constitucional revisto que muitos negarão validade sob a possível acusação de ser esse, na sua quase totalidade, ou em alguns de seus dispositivos, inconstitucional. Era, aliás, o que faltava aos brasileiros que sobreviveram à ditadura, a Sarney, a Collor e a Itamar: uma discussão sobre se a sua "Constituição" é ou não "inconstitucional".

Os pontos polêmicos

Excluída a hipótese de ser acolhida a tese minimalista, se colocará diante de nós o último conjunto de problemas desta revisão, e talvez o mais grave: os dispositivos da atual Constituição que substantivamente estarão sujeitos ao fogo cruzado dos que pretendem eliminá-los, mantê-los, ou modificá-los.

As disputas prometem ser acaloradas. Deverá ser suprimida ou não a estabilidade dos servidores públicos? Quais poderes deverá ter o Congresso Nacional diante da aprovação no plebiscito do presidencialismo? Se conseguirá, finalmente, incluir a possibilidade de expropriação de terras produtivas na desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária? Empresas públicas e sociedades de economia mista serão atingidas por dispositivos que recomendam a sua privatização, ou estarão mantidas na forma em que se encontram? O texto revisto determinará a extinção, modificação, ou manutenção dos atuais Tribunais de Contas? Devem ser redistribuídas as competências entre União, estados, Distrito Federal e municípios, ou manter-se tudo como está? E o Judiciário e o Ministério Público estarão sujeitos a algum tipo de controle pela sociedade ou permanecerão "intocáveis"? E o sistema tributário, será alterado? Teremos mais ou menos impostos? Quem os pagará?

Somente o tempo também aqui nos dará as respostas. Nada, de antemão se pode, em sã consciência, prever. Apenas, quando muito, supor.

São estas, pois, em síntese, as disputas em que, neste cenário conturbado, estarão envolvidos nossos principais protagonistas ao longo dos próximos meses.

Aos brasileiros, portanto, caberá ou se mobilizarem para defenderem o que acreditam ser o mais justo, ou humildemente aguardar que todo este conjunto de problemas e questionamentos não se eternize enrolado na crise, no tempo e nas togas dos membros do poder, a quem possivelmente caberá dizer, do alto de sua majestade vitalícia não eletiva, qual a Constituição que deverá finalmente reger no futuro os direitos, os deveres e a vida dos cidadãos que vivem neste país.

José Eduardo Martins Cardoso é professor da Faculdade de Direito da PUC/SP, ex-secretário de Governo da Prefeitura de São Paulo, ex-chefe de gabinete da Secretaria da Administração Federal e procurador do Município de São Paulo.