Internacional

Olhar para a experiência chilena é um exercício de compreensão do projeto que mobilizou durante décadas a esquerda mais organizada da América Latina

São apenas os vinte anos do golpe chileno que respondem pelo interesse reacendido da esquerda brasileira pela experiência do governo de Salvador Allende. Uma vez que as pesquisas confirmam a possibilidade de uma vitória do PT nas eleições presidenciais de 1994, é inevitável que os olhos se voltem para a mais importante experiência de governo de esquerda dentro do capitalismo, apontando as semelhanças e diferenças, pesquisando razões dos avanços e causas da derrota.

Olhar para uma experiência política não deve ser um ato nem de busca mecânica de lições, nem de exorcismo horrorizado sobre os erros cometidos. No Chile também se olhava de maneira horrorizada para o que estava acontecendo no Brasil no início dos anos 70, com a consciência - implícita ou explícita - de que "aqui somos mais civilizados, não ocorrerão essas coisas terríveis". Voltar-se agora para a experiência da Unidade Popular (UP) deve ser um exercício de compreensão do projeto original que mobilizou durante várias décadas a esquerda mais organizada da América Latina, de como ele foi levado à prática, e das causas que levaram à sua derrota, para depois entender as semelhanças e diferenças com um eventual governo de esquerda no Brasil, na década de 90.

A lógica da Unidade Popular

O programa de governo da UP foi sendo afinado ao longo de quase vinte anos de tentativas de eleição de Salvador Allende à Presidência do Chile. Nesse processo foi se consolidando a unidade entre os partidos socialista e comunista, como eixo da frente política que finalmente levou à vitória em 1970. O Partido Socialista sempre tinha se situado à esquerda da social-democracia internacional, considerava-se marxista e anticapitalista, incorporando inclusive tendências trotskistas e outras favoráveis à luta armada. Não era, portanto, um partido socialista como os da Europa Ocidental - França, Itália ou Espanha -, nem era como se apresenta hoje - aliado subordinado da Democracia Cristã, colocando em prática um programa neoliberal iniciado por Pinochet, enfrentando o Partido Comunista e as outras forças de esquerda. O PS tinha mais força eleitoral do que o PC, mas este tinha predominância nos setores operários, detendo a hegemonia na Central Única dos Trabalhadores. A representação do PS era maior em meios de classe média radicalizada.

O Partido Comunista era o mais forte da América Latina - à exceção do caso particular de Cuba -, sendo o de maior representação operária, ao lado do PC uruguaio. Sua linha era a oficial dos PCs, adaptado às condições particulares do Chile, o que levava a uma autonomia da esquerda diante das frações burguesas e a uma luta independente pelo governo, para transformar o país na direção do socialismo.

Além desses partidos, havia grupos cristãos de esquerda saídos da Democracia Cristã, e um setor do centrista Partido Radical do Chile, anteriormente o principal representante das classes médias, mas já em decadência, ultrapassado pela DC.

A plataforma da UP foi organizada a partir de um levantamento feito por economistas, que listaram as principais empresas do país - as de caráter monopólico, no essencial - que deveriam ser estatizadas, para a criação de uma área de propriedade social que, com participação dos trabalhadores, iria se tornar o eixo central da economia chilena. O objetivo era o da transformação da economia chilena de capitalista em socialista, partindo do suposto que os problemas principais do país - desigualdade social, concentração de renda, dependência, atraso econômico se deviam à estrutura capitalista da economia. Essa área de propriedade social seria acompanhada de áreas de propriedade mista e de propriedade privada, complementares em relação àquela.

Essa área incluiria toda a grande indústria de mineração, com as grandes minas de cobre, de ferro, de salitre, de carvão, assim como o sistema financeiro, o comércio exterior, as grandes empresas de distribuição e as de atividades consideradas estratégicas, como as de energia elétrica, de transporte, de comunicações etc.

O Estado chileno, por sua vez, deveria ir sendo transformado desde seu interior, mudando sua natureza de classe a partir da conquista do Executivo pelas forças de esquerda. Deveria se constituir uma Assembléia do Povo, como câmara única de representação legislativa, criando-se várias instâncias de base para a participação popular direta dos trabalhadores. Seria criada assim uma dualidade de poderes dentro do próprio aparelho de Estado, que evoluiria gradualmente para a hegemonia dos trabalhadores e do socialismo.

Como estratégia de poder, a UP havia optado por uma estratégia institucional, considerando que a grande acumulação de forças da esquerda e do movimento popular havia sido dada por essa via e que a democracia política chilena - de larga tradição - jogaria favoravelmente no sentido da transformação institucional. Uma vez conquistada a maioria da população, expressa na vitória eleitoral, a preservação da institucionalidade era essencial ao projeto da UP. Sua ruptura favoreceria a quem dispunha de maior força militar - a burguesia, com suas Forças Armadas, o apoio dos EUA e o entorno das ditaduras latino-americanas - Brasil, Argentina, Bolívia.

A lógica realmente existente

As condições concretas começaram a se distanciar do que a UP previa já a partir do próprio resultado eleitoral. O triunfo de Allende se deu por pequena diferença, contabilizando apenas 36% dos votos, contra o candidato direitista - em segundo lugar - e o da DC, em terceiro, contando estes, somados, com ampla maioria. Além disso, o Congresso só seria renovado quase três anos mais tarde e nele a direita, aliada ao centro, contava com maioria. Para conseguir a confirmação de seu triunfo, a UP assinou um acordo com a DC, em que se estabeleciam "garantias constitucionais", entre as quais estava a não remoção da alta oficialidade das Forças Armadas, apesar do envolvimento de alguns desses oficiais numa tentativa frustrada de seqüestro do então comandante-em-chefe do Exército - o mais alto posto militar do Chile, hoje ocupado por Pinochet, por existir um Ministério da Defesa, a cargo de um civil - que terminou no seu assassinato. Posteriormente, em suas memórias, Pinochet afirmaria que, para surpresa deles, que esperavam represálias com sua remoção maciça, foram mantidos por Allende.

Assim, Allende teve que governar com minoria no Parlamento pois, na medida em que não conseguiu obter apoios na DC para sua política, se consolidou a aliança do centro com a direita, de oposição férrea à UP. A colocação em prática de medidas concretas de transformação econômica e social produziu a polarização entre revolução e contra-revolução - como tem acontecido sempre em processos históricos similares -, com o centro se dividindo: uma parte saiu da DC e se somou à UP, enquanto a outra, com Eduardo Frei e Patricio Aylwin à cabeça, se aliava estreitamente à direita na reivindicação de um golpe por parte das Forças Armadas.

O governo da Unidade Popular se viu assim no dilema de permanecer no marco da legalidade institucional e ver-se cercado dentro dela pelo Congresso, pela Justiça e pelas Forças Armadas preparando abertamente com estas um golpe -, ou de reconstruir o Estado chileno a partir dos nascentes órgãos de poder popular, descentralizando as funções e até mesmo armando-os para resistir e generalizar os enfrentamentos, impedindo uma vitória rápida da contra-revolução. Neste caso, a defesa da legitimidade jogaria a favor da resistência, por contar com o poder legalmente constituído e com as denúncias concretas das tentativas e articulações golpistas.

Os ideólogos da via institucional consideram que, uma vez escolhida uma via de,ação política, é impossível mudá-la. Que a lógica da via institucional impede qualquer tipo de ação que se choque com a institucionalidade vigente, o que tampouco seria conveniente, pela superioridade do adversário no plano da força.

Ocorre que, a partir de um certo momento, a institucionalidade passou a ser um elemento de freio à ação do governo, cercado por todos os lados dentro dela. O que, por sua vez, foi levando-o ao imobilismo, a perder iniciativa política e a cair na desintegração econômica. Retomar a iniciativa e recuperar a capacidade de governar implicava romper com a inércia a que a institucionalidade o condenava. Por exemplo, a intervenção nas empresas que sabotavam a economia é uma medida obrigatória para tomar medidas que possibilitem superar a crise e atender às reivindicações dos trabalhadores, sob pena de ir perdendo o apoio destes ou de receber apenas um consenso passivo, diante da mobilização das bases sociais da direita golpista, mobilizadas pela crise econômica e social do país.

E nós com isso?

O PT não se propõe à substituição do capitalismo pelo socialismo no plano imediato, embora somente o horizonte do anticapitalismo permita encarar as soluções para a crise atual. Isto é, não é possível atuar tendo como limite absoluto as fronteiras do capitalismo, se não quisermos cair nas armadilhas que têm levado distintos governos e forças políticas no Brasil e na América Latina a repetir receitas do FMI - dos sandinistas aos peronistas, do social-democrata Carlos André Perez aos socialistas chilenos.

O PT pretende estender ao máximo a democracia no Brasil, imprimindo-lhe um cunho eminentemente social, ao mesmo tempo, ampliando os marcos da democracia política e gerando as condições para um desenvolvimento econômico compatível com a justiça social. Nesse sentido, há uma diferença de ambição frente ao programa da Unidade Popular chilena. O alcance que se pretende não é o de superar a economia de mercado através de uma economia centrada num planejamento coletivo, democraticamente estabelecido. De qualquer maneira, num caso e no outro, duas questões se colocam como essenciais: a recuperação de um papel central para o Estado no direcionamento da economia do país e a democratização das estruturas estatais.

No plano político, as situações vividas pela UP podem se assemelhar mais às que pode vir a enfrentar um governo do PT: triunfo para o Executivo sem maioria no Parlamento; tendência do centro a se polarizar mais à direita veja-se PSDB diante da prefeitura do PT em São Paulo - do que à esquerda; cerco do Judiciário; forte resistência das Forças Armadas e dos órgãos de segurança; cerco da grande imprensa.

O governo da UP pôde contar com um processo de mobilizações populares em ascenso, durante o governo anterior de Eduardo Frei, e com sua intensificação durante a campanha e o triunfo eleitoral de Allende. Esse fenômeno precisa ainda ocorrer no Brasil, para compensar aqueles fatores negativos já mencionados. Somente com uma mobilização popular sem precedentes, será possível enfrentar as represálias em relação às medidas sobre as dívidas externa e interna, as sabotagens do abastecimento diante dos controles de preço, as campanhas de imprensa contra o novo governo, apoiadas por medidas do Judiciário que tentarão bloquear o poder de mobilização do novo governo utilizando seus meios de expressão institucional etc.

No plano internacional, o governo de Allende viveu uma época de bipolarização mundial, onde o poderio norte-americano encontrava limitações na existência da URSS, mesmo na América Latina. No entanto, o entorno imediato do Chile era o da contra-revolução triunfante, a partir da pujante consolidação da ditadura militar brasileira justamente em 1970, e a sua disseminação pelo resto da região. As guerrilhas estavam derrotadas e mesmo o apoio de Moscou terminou sendo negado a Allende, por medidas de precaução da URSS, que se sobrepuseram à solidariedade. Nesse sentido, apesar do mundo unipolar em que vivemos, o marco geral é mais desfavorável à ingerência aberta dos EUA, como foi realizada por Nixon/Kissinger contra,o Chile. O Brasil, por sua vez, dispõe de recursos econômicos e diversificação de suas relações internacionais superiores ao Chile de Allende, para resistir às pressões internacionais.

Para concluir este breve resumo sobre semelhanças e diferenças entre o governo da Unidade Popular chilena e a plataforma de governo do PT, é necessário dizer que o caminho das reformas profundas não descarta o dos enfrentamentos. Ao contrário. Quem não quiser ouvir falar de duros enfrentamentos de classe, deve renunciar às reformas que, uma vez levadas a cabo, provocam a inevitável polarização entre revolução e contra-revolução. É um caminho sem volta, que Rosa Luxemburgo comparou a uma locomotiva numa subida, onde a inércia puxa para baixo e só avançando se pode garantir o trecho andado e o futuro que se quer construir.

Emir Sader é membro do Conselho de Redação de T&D.