Internacional

Ofensivo programa de reformas e uma atitude inercial perante o Estado foi o fator da derrota de uma das experiências mais profundas da luta pelo socialismo no século 20

Após vinte anos, o desfecho do processo da Unidade Popular chilena continua sendo uma tragédia aberta na história. Aberta à memória: ali foi brutalmente interrompida uma das experiências mais generosas e profundas da luta pelo socialismo no século XX. Aberta à reflexão: em torno daquela derrota travou-se um debate riquíssimo, de implicações programáticas e estratégicas duradouras para a esquerda. Aberta, enfim, ao futuro: o desafio está não em negar, com sectarismo e unilateralidade, a experiência da UP, mas em transcendê-la, ir além dela, de seus limites.

Por isso, nada do que se diz sobre esta experiência, encarnada na personagem dramaticamente utópica de Salvador Allende, é acadêmico. É contemporâneo no melhor sentido da palavra história. Para nós do PT, que estamos no limiar da possibilidade de viver uma experiência de conseqüências até mais importantes para a América Latina e para o futuro do socialismo, isto é ainda mais verdadeiro.

O Chile de Allende, por sua tradição civil e de partidos, com seus 10 milhões de habitantes inseridos ainda em uma economia que não tinha atingido um grau elevado de modernização e centralização, é um cenário em tudo diverso do Brasil. Outra é a situação internacional vivida pelo governo Allende, imediatamente marcada pelo conflito do Vietnã e pelas experiências guerrilheiras na América Latina. Irrepetível também a composição da Unidade Popular - formada principalmente por este partido de natureza extremamente peculiar que era o Partido Socialista e por um Partido Comunista de fortíssima tradição nacional e operária e, ao mesmo tempo, articuladíssimo ao campo internacional do PCUS. Mas, de um certo ponto de vista, não aquele da baixa analogia ou de uma concepção linear da história, mas no plano das esperanças em tomo da construção de um socialismo com democracia, Lula continua Allende. 1994 não é o ano zero da esquerda latino-americana. A derrota da Unidade Popular está exatamente postada ali, entre nós e o futuro.

Este retorno, enriquecido pelo futuro, à experiência da UP só ganha em cor e movimento se soubermos evitar as visões simplificadoras e unilaterais do processo.

À direita

Os PCs investiram na crítica ao "radicalismo artificial" do processo, à ausência de uma prioridade de alianças com a Democracia Cristã e os setores médios que compunham a sua base do apoio. Estávamos, então, em meados dos anos 70, no auge da proposta eurocomunista e esta crítica era instrumentalizada para justificar a necessidade de um compromisso estratégico do PCI de Berlinger com a DC italiana.

Por mais que esta crítica apreenda elementos da realidade, ela é insuficiente e problemática por três razões. Em primeiro lugar, a radicalização era orgânica ao processo e não uma invenção de suas vanguardas. Tinha raízes sociais profundas, vinha desde a década de 60 com uma grande animação das lutas operárias e atingiu o clímax com a ocupação ativa de centenas de fábricas e tomadas de terra durante os anos de governo Allende.

Esta radicalização vale também e, talvez de modo até mais profundo, para a estratégia das classes dominantes. O centro da conspiração contra o governo Allende era um corpo unificado que abarcava a CIA, setores da hierarquia militar e do Partido Nacional. O livro de Joan Garcez, Allende et la experience chilienne, assessor influente do presidente, demonstra que a DC foi instrumentalizada pelos golpistas que chegaram a investir dinheiro para que prevalecessem no seu interior os setores mais reacionários, opostos a Radomiro Tomic.

E, sobretudo, esta crítica esquece que a linha política predominante na Unidade Popular e nas iniciativas do governo Allende, desde meados de 1972, ia exatamente nesta direção. A nova política econômica adotada com a saída de Pedro Vuskovic, voltada para restabelecer a confiança da burguesia chilena, o estrito apego de Allende à legalidade em um momento em que se conspirava aberta e publicamente, a intenção deliberada de compor com os setores conservadores da Forças Armadas, os esforços vãos no sentido de estabelecer um canal de diálogo com a DC quando ela, sob a direção de Patrick Aylwin, já aderia ao golpe, demonstram que a opção era a de esfriar os veios quentes de radicalização da luta de classes.

O grau de alienação do curso real da história, que esta visão implicava, está registrado no fato de que em plena crise de meados de 1973, o PC chegou a propor a adoção de um Estado de Sítio provisório com reforço das Forças Armadas, e Allende delegou a uma estratégia assemelhada àquela da Pinochet a tarefa de elaborar um plano de respostas operacionais a uma eventual tentativa de golpe militar.

Uma alienação - em uma qualidade diferente mas também problemática - do processo real está expressa em algumas visões à esquerda que buscam explicar as razões da derrota. Se estas visões tiveram o grande mérito de prever a inevitabilidade de um momento agudo de confrontação com as classes dominantes, falharam em encontrar respostas estratégicas adequadas a esta expectativa.

O Movimento de Izquierda Revolucionário (MIR), nascido sob a polarização política da experiência cubana e com uma estratégia assemelhada àquela da guerra popular prolongada, foi incapaz de se vincular aos veios mais quentes de radicalização da experiência. Com cerca de 3 mil militantes, fora da frente que formava a Unidade Popular, e nascido tardiamente em relação aos partidos hegemônicos no campo popular, não chegou a se constituir de fato como uma alternativa. Sua opção militarista levou-o a ter uma presença fortemente minoritária no movimento operário (teve menos de 2% dos votos nas eleições diretas para a direção da CUT realizada em 1972) e a uma subestimação profunda do trabalho na institucionalidade.

Uma outra vertente crítica de esquerda é aquela que formulava uma visão da construção da dualidade de poderes tomando como modelo a experiência da Revolução Russa. A ênfase era posta unilateralmente nas expectativas de um poder popular nascido diretamente da expansão das formas de auto-organização dos setores mais avançados sem construir uma visão ampliada da construção da hegemonia no processo.

A contradição

O círculo vicioso da polêmica intermináveis sobre se a origem da derrota da Unidade Popular está na sua radicalização artificial ou no centro da construção que marcou toda a experiência.

Eder Sader, em um ensaio instigante publicado um ano após a derrota (Chili: la transition a manquée) anotava como o programa da Unidade Popular chilena estava muito além da tradição do nacionalismo burguês latino-americano e era inassimilável pela burguesia chilena e pelo imperialismo. De fato, este programa implicava choque frontal com os monopólios (nacionalização de todas as empresas com patrimônio superior a 14 milhões de escudos), com os latifúndios (7% dos proprietários detinham 80% das terras), com o imperialismo (nacionalização das minas de cobre, política externa agressivamente independente), com o sistema financeiro privado (era proposta a nacionalização dos bancos).

Esta projeção radical de transformações estruturais da economia chilena contraditava frontalmente com a moderação inercial do programa no que diz respeito às transformações propostas para o Estado chileno. Esta limitação básica do programa e da postura da Unidade Popular levou a que ela se tornasse refém de sua própria conquista, a ficar sitiada no interior da institucionalidade. Na imagem de um estrategista da DC, assim como Napoleão ao adentrar demasiado em território russo teria ficado cercado pelo "general inverno", a UP teria congelado sua capacidade de iniciativas pelo "inverno da institucionalidade".

O Chile, país latino-americano de continuidade constitucional de 1938 a 1973, dotado de uma Constituição liberal, tendo suas Forças Armadas precocemente profissionalizadas e afastadas do cenário político, parecia ser efetivamente o cenário ideal para uma "transição pacífica" ao socialismo, como queria o PC, ou para o exercício generoso de uma transformação não traumática como queria Allende. Mas, inversamente à consciência predominante na Unidade Popular, as classes dominantes chilenas souberam combinar o uso de todas as possibilidades legais para desestabilizar o governo com a conspiração aberta contra esta mesma legalidade.

Vejamos como esta contradição central da Unidade Popular manifestou-se no plano da governabilidade, da economia, das comunicações e das Forças Armadas.

Poder em disputa

O governo Allende foi literalmente cercado pelas iniciativas da direita tomadas a partir do Congresso e do Poder Judiciário. Allende havia sido eleito por uma estreita margem de votos: 36,6% contra 34,8 dados a Jorge Alessandri do Partido Nacional e 27,8% conferidos a Radomiro Tomic da Democracia Cristã. Na Câmara dos Deputados, a Unidade Popular contava com 57 parlamentares em 150; no Senado, 23 membros em 50.

Já a posse de Allende havia sido fruto de uma negociação com a maioria parlamentar que impôs a ele o "Estatuto das Garantias" (princípio da inamovibilidade de funcionários da DC contratados na gestão de Frei, respeito à hierarquia das Forças Armadas, não-intervenção nos meios de comunicação). A maioria oposicionista no Congresso bloqueou o processo legal de nacionalizações e impediu a adoção de uma reforma tributária. Através de uma interpretação abusiva do texto constitucional, o Congresso destituiu ministros e prefeitos da Unidade Popular, apesar do regime não ser parlamentarista. No período que antecedeu o golpe, o Congresso aprovou a "lei do controle de armas", que permitiu às Forças Armadas invadir domicílios e sedes de entidades populares e chegou a votar uma "moção de ilegalidade" do governo. As iniciativas do governo Allende foram incessantemente bombardeadas por decisões do Judiciário.

O único modo de fugir deste cerco seria o de promover, através da disputa aberta na sociedade, reformas que levassem à democratização radical do Estado chileno, seja reformando o sistema de representação, a distribuição constitucional de poderes, deselitizando o Poder Judiciário, instituindo mecanismos de controle civil sobre as Forças Armadas. A idéia da convocação de um plebiscito para tal fim - a proposta da adoção de uma Assembléia Nacional, eleita por voto direto e proporcional, unicameral e com poderes amplos chegou a ser discutida na direção da Unidade Popular no auge de sua força eleitoral, no primeiro semestre de 1971, quando a oposição conservadora ainda estava dividida e com uma capacidade limitada de iniciativas, mas acabou prevalecendo a inércia legalista.

A opção por operar no espaço estrito e minado da institucionalidade repercutiu diretamente na capacidade da Unidade Popular de fazer frente à potência desestabilizadora das classes dominantes chilenas no campo da economia.

As iniciativas de desestabilização cruzaram-se em quatro frentes. No plano do investimento, com a fuga de capitais, a especulação e o impedimento, por via institucional, da recuperação da capacidade financeira do Estado através de vetos à reforma tributária e à criação de um banco nacional (em 1971, o Estado controlava 96% dos depósitos bancários mas não a sua alocação). No plano da distribuição, organizando "mercados negros" e desabastecimento, fechando os canais de circulação (como, por exemplo, através da greve dos caminhoneiros). Externamente, vetando o espaço para empréstimos de instituições internacionais e bloqueando a exportações: a economia chilena era muito vulnerável, com uma dívida externa equivalente ao valor de três anos de exportação e com 80% da receita do comércio exterior proveniente da exportação de cobre. Por fim, afrontando diretamente o governo através de um lock-out nacional, que não obteve o sucesso projetado de derrubar Allende, apenas por causa da mais profunda e heróica greve ativa de ocupação das fábricas experimentada pelos trabalhadores da América Latina.

Faltou ao governo da Unidade Popular a determinação de estimular, pela via dos canais institucionais e pela participação direta dos trabalhadores, o controle social dos setores estratégicos da economia. Pelo contrário, a opção predominante no governo, a partir de meados de 1972, foi de restringir o setor de nacionalizações, limitar o controle sobre os preços, desestimular a institucionalização das "juntas de abastecimento" e do "controle da vigilância da produção" da CUT, organismos embrionários de controle popular.

O impacto do legalismo da Unidade Popular foi decisivo para a derrota na guerra da comunicação, bem como demonstrou A. Y. M. Mattelart no livro Frentes Culturais e ações de massa. Sem uma iniciativa global de quebra dos monopólios de comunicação, a direita chilena pode exercer aí o seu predomínio: a oposição dominava 82 cadeias de radiodifusão contra 36 da esquerda, a maior parte dos canais de televisão, e possuía 64 jornais contra 10 da esquerda (10 diários contra 2). Esta foi uma área onde a CIA aplicou estrategicamente recursos financeiros e operacionais.

Foi, no entanto, na relação com as Forças Armadas que o viés institucionalista da Unidade Popular demonstrou-se mais trágico. O rígido apego à hierarquia, as concessões seguidas aos golpistas, a ausência de uma estrutura mínima de inteligência, a exposição dos setores mais legalistas à repressão, a não-utilização de mecanismos previstos inclusive na Constituição para armar uma rede de defesa civil eram conseqüências de uma opção voltada para preservar a unidade e a hierarquia das Forças Armadas, na esperança vã de neutralizá-la. Se a correlação de forças vinha se degradando em desfavor da Unidade Popular, no plano militar ela se definia abruptamente em prol das classes dominantes. É discutível inclusive que se possa caracterizar a criação durante a crise nacional chilena de uma situação de dualidade de poderes, já que todo o acúmulo político da Unidade Popular não se traduziu minimamente em capacidade militar.

O sentido da derrota

Apesar de todo o desgaste e fustigamento, a Unidade Popular chegou às vésperas do golpe militar de setembro de 1973 com uma capacidade de mobilização e com uma base eleitoral ampliada em relação à votação obtida em 1970 (na eleição parlamentar de 1973, a Unidade Popular obteve 44% dos votos).

Estas indicações não davam conta, entretanto, da situação real da disputa. Em 1970, um fosso separava o Partido Nacional da Democracia Cristã. Agora, eles já agiam de forma coordenada e estrategicamente direcionada. A Democracia Cristã havia migrado de uma postura levemente reformista e civil para da defesa do golpe, sem perder a sua base de apoio nos setores médios e inclusive entre os trabalhadores (a DC participava como força minoritária mas importante da CUT). Este foi seguramente o indício maior da derrota da Unidade Popular: um novo bloco histórico, dotado de força militar e unificado economicamente, como apoio externo e base social interna, havia sido formado. É ele que daria a base de sustentação histórica ao regime de Pinochet.

Enquanto isto, no campo popular, estavam abalados os laços de confiança entre governo e sua base popular, esgarçados os laços de unidade e coordenação da Unidade Popular. A contra-revolução havia formado o seu "partido"; os trabalhadores e setores populares haviam dispersado suas energias revolucionárias. O golpe de Augusto Pinochet foi o coroamento de toda uma,vitória estratégica.

Juarez Guimarães é membro do Diretório Municipal do PT de Belo Horizonte e do Conselho Editorial do jornal Brasil Agora.

Cronologia

1953 - Funda-se a Central Única dos Trabalhadores chilenos.

1956 - Forma-se a Frente de Ação Popular, aliança entre PC e o PS que consolida a dinâmica unitária no movimento operário.

1969 - Forma-se a Unidade Popular, composta por PC e PS.

1970

04 de setembro - Vitória da UP, com a candidatura de Allende, nas eleições presidenciais: UP, 36,2% dos votos; Partido Nacional, 34,8%; Democracia Cristã, 27,8%.
setembro/outubro - O imperialismo e setores das Forças Armadas desencadeiam uma operação visando impedir a posse de Allende.

15 de outubro - Para confirmar Allende no Congresso, os partidos burgueses majoritários no Parlamento (UP, 57 deputados e 23 senadores; DC, 55 deputados e 20 senadores; PN, 34 deputados e 5 senadores) exigem o reconhecimento do "Estatuto de Garantias".

05 de novembro - No discurso de posse no Estádio Nacional, Allende exalta a especificidade da vila chilena para o socialismo "sem a trágica experiência da guerra fratricida".

1971
É o "ano de ouro" da Unidade Popular: o crescimento de 8,3% do PIB coincide com ofensiva eleitoral e de mobilização do movimento operário.

04 de abril - Nas eleições municipais, a UP obtém 50,2% dos votos, contra 27% conferidos à DC e 20% ao PN.

21 de maio - Allende em mensagem ao Congresso Nacional declara que o Chile "era a primeira nação da terra que iria dar forma ao segundo modelo de transição para a sociedade socialista". O primeiro modelo seria o da Revolução Russa de 1917.

08 de junho - O assassinato do ex-ministro da DC, Perez Zujovic, fornece o pretexto para aproximação entre a DC e o PN. Allende decreta estado de sítio em Santiago.

novembro - Fidel Castro visita o Chile.

1º de dezembro - Manifestação de massa da direita em Santiago, convocada por uma entidade de mulheres burguesas, marca o início da ofensiva da mobilização da contra-revolução.

1972
É um ano de "empate": o PIB cresce ainda em 5% mas a turbulência econômica já domina o cenário; a direita começa a se unificar e toma iniciativas globais, mas o movimento operário resiste e se radicaliza.

janeiro - Primeira aliança eleitoral entre a DC e o PN em dois distritos. No Parlamento, DC e PN destituem o ministro do Interior, da UP.

19 de fevereiro - Falha nova tentativa de desestabilização organizada pela ITT. O plenário de Algarrobo do PS discute a inevitabilidade de um confronto.

maio - Eleições para o Conselho Geral da CUT: UP, 66% dos votos (PC, 30,89%; PS, 26,44%; Mapu, 4,63% P.Radical, 3,91%); DC, 26,33%; MIR, 1,81%.

Junho - Forma-se a Confederação Democrática, organização de frente única da burguesia.

Agosto - Nova destituição pelo Parlamento, controlado pela DC e PN, do ministro do Interior. Greve dos caminhoneiros, organizada e financiada pela direita.

04 de setembro - Greve geral de um dia um apoio ao governo da UP.

outubro - Lock-out generalizado, visando criar condições para um golpe militar. Durante 26 dias, os trabalhadores chilenos ocupam as fábricas, organizam a distribuição. Formam-se os "cordões industriais" em Santiago, Concepción e Valparaíso. A crise se conclui com um acordo entre Allende e a DC, absorvendo a participação de comandantes militares no governo.

dezembro - Tem início a conspiração de cinco generais, cinco almirantes e cinco brigadeiros que iria culminar no golpe militar de 1973.