Internacional

O mundo em que vivemos passa por mudanças profundas, das quais ainda só temos visões imprecisas e fragmentadas, contraditórias e desconexas, como cenas de um filme ainda sem roteiro. Mas a história não acabou. A derrocada do sistema soviético e a profunda crise do capitalismo colocam em cena novos conflitos, e novas estratégias são elaboradas pelos países centrais. Onde estão, nessa crise, o lugar da luta de classes?

Como entender o mundo em que vivemos? Como ver o presente, sem antever o futuro? O marxismo quis atribuir uma direção à história. Pensávamos que entendíamos o presente porque confiávamos num futuro, mas a história seguiu imprevisível, produzindo ironias e paradoxos. Não parece ter lógica, muito menos direção. O marxismo é também uma teoria crítica do capitalismo e uma proposta de ação política. Como teoria crítica continua firme. Suas teses da inevitabilidade das crises capitalistas e do desemprego estrutural foram mais uma vez corroboradas. Mas vem sendo abandonado como ideologia de um projeto de ação política. Onde está, nessa crise capitalista, o lugar da luta de classes? Onde está a classe operária, como portadora das mudanças do capitalismo para um socialismo? E mais: o que determina hoje o valor das coisas? Ainda a quantidade de trabalho socialmente necessária? E o valor da,mercadoria simbólica? Onde está a mais valia, num mundo em que emprego, desemprego e subemprego se confundem? Em que a produção se robotiza, a informática destrói profissões e empresas se tornam "virtuais", mandando seus empregados trabalharem em casa? Em que trabalhadores se dividem em organizados e descamisados? Em que imigrantes temporários já somam milhões em toda a parte? Em que o Terceiro Mundo já está dentro do Primeiro Mundo? Onde está a alternativa ao capitalismo? Onde está a nova teoria da história?

Com Francis Fukuyama, o neoliberalismo pretendeu-se nova teoria da história. Uma teoria igualmente teleológica, como o marxismo, atribuindo à história uma direção, mas social-darwinista. Fukuyama diz que as sociedades humanas evoluem e, por seleção natural, eliminam os sistemas incompetentes convergindo para o sistema mais eficaz, o liberalismo econômico, A universalização do liberalismo econômico levaria à universalização da democracia liberal e, portanto, ao "fim da história", ao fim de todas as guerras, pois democracias não fazem guerras. Mas a história recusa-se a terminar, Mata-se cada vez mais, em Angola, na Iugoslávia, nas favelas cariocas e nas ruas democráticas e neoliberais de Los Angeles e da Irlanda do Norte. As guerras estouram dentro e fora das democracias. E já surgem novas teorias econômicas negando o paradigma neoliberal, negando que o homem só trabalha por dinheiro e que o lucro otimiza o funcionamento da economia e da democracia.

Nosso mundo passa por mudanças profundas, das quais só temos visões ainda imprecisas e fragmentadas, contraditórias e desconexas, como cenas de um filme ainda sem roteiro.

O desmanche do império

O fim da URSS encerra o ciclo dos grandes impérios oriundos da expansão mercantil do século XVI. Suas quinze repúblicas compreendiam mais de uma centena de etnias de antigos principados e reinos, numa estrutura similar à do Império Britânico, mas contida num único continente, com mais de um sexto da superfície do planeta.

Um império centralizador e autoritário, que os bolcheviques, com zelo religioso, transformaram em totalitário, erigindo o terror como instrumento principal de controle político e social. Os bolcheviques - como todo o movimento comunista - formavam uma irmandade suprenacional, só comparável em seu internacionalismo às irmandades da Igreja. Tinham em comum o ideal revolucionário e um método totalitário. Baniram todas as outras facções políticas a partir de 1921. O medo cimentou o sistema soviético. Removido o medo, o sistema se desintegrou. Todas as quatorze repúblicas declaram-se independentes da Rússia a partir de dezembro de 1991, numa sucessão de referendos. Onze delas se reagrupariam na convenção de Alma Ata de dezembro de 1991, formando a Confederação dos Estados Independentes, dirigida por um conselho de chefes de Estado e por um comando único para suas Forças Armadas estratégicas1, mas mantendo a independência e o controle de forças militares táticas.

Onde o terror já não existia, como na Tchecoslováquia, na Iugoslávia, duas décadas de repúdio intelectual e artístico ao comunismo assumiram a forma de retorno aos valores étnicos e, quando a irmandade comunista se dissolveu, deu-se a explosão xenófoba, a negação da cultura "do outro".

A Rússia, ainda imensa, renomeada Federação Russa, com 147 milhões de habitantes, tornou-se fiduciária das armas nucleares e dos tratados internacionais assinados pela URSS, mas reduziu-se ao porte de potência militar intermediária, pouco superior a Alemanha e França. Apesar dos enormes recursos naturais e intelectuais, sua economia, debilitada, produz menos que o Japão e apenas um quinto do PIB americano. Perdeu seu celeiro agrícola, a Ucrânia, que emergiu como nova nação com 47 milhões de habitantes e status seminuclear2, e ainda pode perder alguma de suas vinte repúblicas ou de suas 58 regiões autônomas. Entre elas, almejam a independência o Tatartsan, no alto Volga, com 4 milhões de habitantes, dos quais a metade é de muçulmanos, e a Chechenia, no Mar Cáspio.

Os 3 milhões de soldados do antigo poder soviético mantiveram-se relativamente disciplinados, mesmo desmoralizados e tendo que intervir em oito conflitos étnicos diferentes, derivados das discontinuidades éticas residuais no momento da fragmentação. Os conflitos têm sido circunscritos, com exceção dos combates na Geórgia e a luta entre a Armênia e o Azerbaidjão em torno do enclave de Nagorno-Karabakh. A URSS desintegrou-se politicamente numa etapa da história em que se formam os grandes mercados comuns. É em torno do econômico que estão se reagrupando as ex-repúblicas: dez delas assinaram um acordo visando um mercado comum e cinco já aceitaram o rublo da Federação Russa como sua moeda.

Oito repúblicas independentes do Mar Negro, cinco delas de fala turca, assinaram um tratado regional de cooperação econômica com a Turquia. Outras de fala turca da Ásia Central também poderão seguir o mesmo caminho, com apoio do Ocidente, que prefere o expansionismo laico da Turquia ao fundamentalismo iraniano. O Leste Europeu e as três repúblicas do Báltico devem progressivamente se associar à Comunidade Econômica Européia, sob a esfera de influência econômica alemã. É a recriação, parcial e sob forma econômica, da configuração dos antigos impérios austro-húngaro e otomano.

A política norte-americana para a Federação Russa tem sido dosada cuidadosamente para provocar o máximo de danos, perdas territoriais e destruição do sistema produtivo estatal. No diagnóstico americano, a espinha dorsal do comunismo ainda não foi quebrada. O comunismo poderia retomar até referendado pelo voto popular. Por isso, a prometida ajuda americana não vem - exceto nos momentos cruciais em que Ieltsin é ameaçado de perder controle. Apesar do "choque de capitalismo", o emprego nos setores estatal e cooperativo na Federação Russa caiu em apenas 3,4 milhões de vagas, para uma força de trabalho total de 73,1 milhões. O setor privado detém apenas 4,8% do PIB. Tudo o que aconteceu foi a erupção para o espaço público e a legitimação das máfias que já dominavam parte do aparelho produtivo estatal.

As propostas neoliberais oferecidas a Ieltsin são especialmente agressivas.

O objetivo é reproduzir o experimento polonês, no qual, após o tremendo choque de 1990, que destruiu todo o aparato econômico num só dia, reergueu uma economia privada que hoje detém cerca de 55% do PIB. Colocam a destruição do aparelho produtivo atual e a dissolução de sua elite dirigente como pré-condição para o saneamento econômico e financeiro, para a derrubada da inflação e instauração de uma nova ordem capitalista, justificada como essencial a um regime democrático.

Legalmente banidos, envelhecidos e desmoralizados, os quadros do antigo PC russo começam a recriar uma linguagem comum, tentam se reagrupar. Todos os dirigentes russos, por definição, eram quadros do PC, a começar por Boris Ieltsin. Algumas repúblicas continuam sendo dirigidas pelo partido, só que com outro nome. O reagrupamento formal dos comunistas poderia em tese se dar em torno de uma proposta autoritária, incluindo a recuperação da grandeza russa. Um projeto ao estilo da "grande Sérvia", levado a cabo justamente pelos altos quadros sérvios da Liga Comunista, criada por Tito, e comandada hoje na Sérvia pelo maquiavélico e sanguinário Slobodan Milosevic.

Como os alemães, após o humilhante Tratado de Versalhes, os russos sentem-se perplexos, desorientados, agredidos não apenas com a desintegração, como também com os efeitos nefastos do choque neoliberal. Mas a tragédia russa deve ser vista com olhos russos, que vêm testemunhando quase um século de traumas, dos quais este último nem é o pior. Traumas como a grande fome e a guerra civil dos anos 20, a chacina do campesinato, os grandes expurgos e novamente a grande fome dos anos 30, a invasão alemã e o extermínio de 20 milhões nos anos 40.

A queima do manifesto

Ainda vivem sob regimes comunistas cerca de 1,3 bilhões de pessoas, um quarto da população do planeta. Na China, no Vietnã, em Cuba, na Coréia, partidos comunistas continuam a governar como castas auto-reguladas pelo "centralismo democrático", o sistema político instituído por Lenin, e segundo o qual o partido é o locus do poder. Mas a proposta comunista original morreu há muito tempo. Concebida no Ocidente para derrubar o capitalismo industrial no apogeu de suas contradições, a ideologia do Manifesto Comunista foi queimada pelos bolcheviques na construção totalitária de uma forma peculiar de economia industrializada, numa sociedade de linhagem mais asiática do que Ocidental, e na qual o capitalismo sequer havia brotado, muito menos amadurecido. Um protocapitalismo, sem burguesia, sem propriedade privada e sem trabalhadores livres. "Socialismo é sovietes mais eletricidade", dizia o slogan bolchevique. Ficou a eletricidade e desapareceram os sovietes.

O discurso do PC Chinês ainda é comunista, mas a ordem que ele vem implantando não é. Foi definida, após a Revolução Cultural, como "economia socialista de mercado", e redefinida por Deng Xiao-Ping em 1984 como "economia mercantil planificada". Deng Xiao-Ping fez então o elogio supremo do mercantilismo chamando-o "uma conquista da civilização humana", e como mecanismo de gestão, "fruto do desenvolvimento econômico do mundo moderno". A mesma concepção de Francis Fukuyama e de Jeffrey Sachs, expressa em outras palavras.

O PC Chinês não perdeu o comando porque soube se antecipar às limitações do planejamento, manteve amplos espaços de iniciativa individual e mecanismos de mercado no pequeno comércio, em parte da agricultura e pequena indústria. Os comunistas chineses não jogaram fora sua experiência de mercadores, lastreada na vasta diáspora mercantil chinesa. Ao contrário dos bolcheviques, que fecharam sua economia e supervalorizaram o rublo, sempre mantiveram o estímulo à exportação. Ao contrário da coletivização forçada das terras, que levou os camponeses russos à morte e o resto da população à fome, o PC Chinês promoveu a distribuição de terras aos camponeses em 1948 e em poucos anos eliminou uma fome secular. Ao contrário do banimento de todas as facções políticas, permitiu a existência de cerca de dez pequenos partidos políticos no Congresso Nacional do Povo - controlando-os indiretamente. Apesar do período de radicalização da Revolução Cultural, de 1967 a 1977, e de episódios de aguda intolerância política, como o massacre dos estudantes na Praça da Paz Celestial em 1989, não se pode qualificar o sistema político chinês como totalitário, e sim como autoritário. Mantém amplas esferas de liberdades e iniciativas individuais - mas reprimindo com energia nos momentos cruciais.

O neocapitalismo chinês está sendo legitimado por um "milagre econômico" parecido como o do Brasil dos anos 70 - tanto pelas suas taxas de crescimento do PIB, de 10%, como pelos seus efeitos adversos: inflação, prostituição, corrupção e êxodo rural. O PIB chinês já se iguala ao brasileiro, mas com uma taxa altíssima de poupança, da ordem de 38% do PIB, capaz de financiar qualquer alavancagem econômica3. Com 1,1 bilhão de habitantes, se posiciona como rival potencial da economia americana a partir do ano 2000. Está comprando fábricas abandonadas pelo Ocidente, vai absorver Hong Kong, um dos grandes centros financeiros do mundo, e vem enviando meio milhão de estudantes por ano para Estados Unidos e Europa, em sua maioria com bolsas de pós-graduação oferecidas por magnatas de Hong Kong.

A Guerra Fria

A Guerra Fria não começou e nem acabou no muro de Berlim. Começou já em 1917, com a vitória bolchevique e a proposta de promover a revolução em escala mundial. Tornou-se fator dominante na cena mundial, com a chegada das tropas russas a Berlim em 1945. Entre 1945 e 1980, quando o poder soviético atingiu o seu apogeu, toda a política no mundo era condicionada pela Guerra Fria. Desde uma greve reivindicatória em Osasco, atribuída a "agitadores a soldo de Moscou", até um programa econômico nacionalista em Moçambique, tudo era julgado pela sua incidência na Guerra Fria. A Guerra Fria instituiu a história, provocou as guerras reais, na Coréia e no Vietnã, moldou mentalidades e atitudes, criou o macartismo, a doutrina de Segurança Nacional e o conceito de inimigo interno. Justificou o esmagamento de governos democraticamente eleitos e movimentos de libertação popular, fossem na Guatemala e no Irã em 1954, ou no Chile em 1974. Tudo era válido para combater o "império do mal", inclusive o assassinato e a associação com a máfia. Assim se corrompeu a política na Europa Ocidental e no Japão, as duas muralhas de contenção à expansão do comunismo.

O capitalismo norte-americano manteve-se durante todo esse tempo como maior economia mundial e o sistema capitalista continuou a penetrar nas capilaridades do mundo. Mas as guerras de libertação das colônias na África e na Ásia e várias tentativas de libertação dos povos árabes e latino-americanos receberam apoio político e militar soviético. Entre 1974 e 1980, movimentos revolucionários - a maioria afinados com a União Soviética - chegaram ao poder em quatorze países, especialmente na África e no Oriente4. Dez outros países seguiam orientação econômica e política em algum grau alinhada com a URSS, entre eles Argélia, Iêmen do Sul, Congo-Brazzavile, Iraque, Líbia e Síria. O modelo econômico soviético, baseado na indústria pesada, no Estado como produtor e no planejamento, colocou-se como modelo alternativo ao do capitalismo americano e surgiu o embrião de uma "divisão internacional do trabalho do mundo socialista".

Mas os soviéticos já haviam abandonado a política expansionista desde a crise dos mísseis em Cuba em 1962. O PC soviético foi sentindo o peso da corrida armamentista e desenvolveu a percepção de que, naquele ritmo, os EUA efetivamente atacariam a URSS, possivelmente com armas nucleares. Passaram à defensiva, tentando desmontar a corrida armamentista, afastar o espírito instituído pela Guerra Fria, desarmar até mesmo os movimentos revolucionários, sobre os quais nem sempre tinham controle. Opuseram-se ao projeto guevarista de exportar a revolução para a América Latina. Já não agüentavam os encargos do apoio aos movimentos comunistas ou revolucionários no mundo, quando foram forçados pela cúpula militar a apoiar o levante comunista no Afeganistão. Esse acabou sendo o Vietnã da URSS, precipitando o colapso do regime.

No plano econômico, nunca existiu uma ameaça soviética. Na economia conviviam um setor militar moderno e privilegiado com um setor de abastecimento civil atrasado e ineficaz. A produtividade de sua agricultura mal chegava a um décimo da produtividade agrícola norte-americana. O modelo soviético deixou de ser uma alternativa para o Terceiro Mundo, nem tanto pela sua debilidade, como pelo sucesso do modelo dos "tigres asiáticos", baseado na capitalismo licencioso, na exportação agressiva e uso intensivo de mão-de-obra barata. Enquanto isso, os modelos de desenvolvimento autárquico apoiados pelas forças de esquerda ou pelos soviéticos patinaram e afundaram, primeiro na Indonésia, depois no Egito, Peru, índia e Gana - inclusive sob o peso da dívida externa. Finalmente veio o fim dos regimes diretamente ligados à economia soviética, como Iêmen do Sul e Etiópia. Cuba está nessa trajetória.

Desaparecida a ameaça política do comunismo, real ou instituída, abriu-se o caminho para a solução de vários conflitos regionais importantes, como os da África do Sul e os do Oriente Médio. E ao desmonte da corrupção política no Japão e Europa. Toda luta social pode reclamar legitimidade e ser julgada no seu mérito. Mas novos conflitos foram gerados pela desintegração do sistema soviético e pela profunda crise do capitalismo, inclusive os conflitos racistas na Europa e os levantes negros nos Estados Unidos. O fim da Guerra Fria não significa o fim da história, e sim de um dos tempos da história.

O novo condomínio

Na Guerra do Golfo, pela primeira vez, todas as potências, inclusive a URSS, uniram-se contra um país periférico sentado em cima de uma montanha de petróleo. Inaugurou-se um novo alinhamento mundial, no qual os países de economia desenvolvida, que poderíamos chamar de potências centrais, e que usam 80% dos recursos naturais do planeta, uniram-se para impor sua ordem sobre a periferia. Três fatores principais levaram a esse realinhamento: o desaparecimento da polaridade capitalismo/comunismo tirou o poder de barganha de países periféricos tornando-os indefesos; na política externa norte-americana, os interesses econômicos passaram a prevalecer sobre os ideológicos e políticos e, finalmente, a ocupação cada vez mais densa num planeta cuja população se aproxima dos 6 bilhões (dos quais 213 na periferia) pressionando recursos naturais, especialmente o petróleo.

O petróleo barato - mais barato do que água mineral - tem sido o motor do capitalismo nos últimos cinqüenta anos. O embargo de 1973, ensinou as potências capitalistas a priorizar seu controle. Hoje, as reservas mundiais são três vezes maiores do que em 1973, mas 87% delas se situam no Terceiro Mundo e 67% no Oriente Médio. Os Estados Unidos importam 65% do petróleo que consomem, a Europa 95% e o Japão 98%. São esses números que os unem num grande bloco com interesses comuns.

O expansionismo de Saddam Hussein, útil ao Ocidente enquanto barrou o fundamentalismo iraniano, tornou-se inaceitável quando lhe deu o poder de decisão no mercado de petróleo. Isso tinha que ser quebrado, e será quebrado pelas potências centrais sempre que julgarem necessário, jogando povos árabes uns contra os outros, ou atacando-os diretamente. Os dados compilados pela ONU recentemente mostram como já fizeram isso na guerra Irã-Iraque. Entre 1985 e 1989, o Iraque gastou US$ 11,9 bilhões em armas importadas das potências centrais, tornando-se o segundo maior importador mundial de armas, logo após a índia. O Irã gastou outros US$ 2,9 bilhões. Os países periféricos foram destinatários de armas no valor de US$ 105,9 bilhões. Os maiores fornecedores foram obviamente a potências centrais, incluindo a antiga União Soviética. O armamentismo da periferia desempenhou papel importante tanto na ativação da indústria bélica como no retorno de parte da renda do petróleo auferida pelos países periféricos. Alcançou o total de US$ 172,8 bilhões o valor do comércio de armas nesse período5.Um dos problemas interessantes desta fase pós-Guerra Fria é o destino da capacidade instalada dessa indústria bélica.

Escolados pela revolução islâmica e pelo projeto de poder de Saddam Hussein, as potências centrais, já com a inclusão da Federação Russa, vêm apertando nos últimos anos o controle sobre todas as tecnologias de valor militar estratégico, especialmente aquelas que poderiam dar status nuclear aos países periféricos. Todos os países periféricos com programas de poder nuclear estão sendo fortemente pressionados a abandoná-los. As potências centrais esperam que a Resolução 687 da ONU, que permitiu a inspeção "não convidada" de instalações nucleares do Iraque, possa ser paulatinamente transformada em princípio geral, um "princípio de intervenção em países periféricos", substituindo o consagrando "princípio de não-intervenção". O objetivo é manter o monopólio nuclear das potências centrais. Com o mesmo objetivo, o governo de minoria branca da África do Sul foi instruído a destruir suas armas nucelares - para que não caíssem nas mãos de um governo de maioria negra. Dois comitês de controle dos anos 70 foram reativados: o Zangger Comittee, formado em Viena em 1971 para definir as categorias de equipamentos nucleares estratégicos atualizou suas listas em 1990. O Clube de Londres, formado após a explosão da bomba da índia em 1974, para efetivamente banir as exportações desses equipamentos, reforçou seus acordos em 1991, ampliando o número de membros de 17 para 27 países e incluindo na lista proibida equipamentos de duplo uso, militar e pacífico. Mais uma promessa negada pelas potências nucleares: fornecer tecnologia nuclear de uso pacífico aos países signatários do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). Agora negam até mesmo equipamentos básicos para o desenvolvimento tecnológico, como fornos de feixes de elétrons, amplificadores de laser, espectrômetros de massa6. É o sancionamento da marginalização tecnológica dos países periféricos.

Também foi atualizado o Comitê de Controle de Mísseis, que havia sido criado em 1987, incluindo novos membros e novas listagens, com o objetivo de impedir que um país periférico desenvolva mísseis com mais de 300 quilômetros de alcance e 500 quilos de carga útil. A Argentina já se curvou, desativando seu programa de mísseis. Para impedir a proliferação de armas biológicas, foi criado, em 1985, o chamado Grupo da Austrália, com 21 países centrais, sob o mesmo princípio do TNP: manter as potências centrais como únicas detentoras de armas biológicas e não, propriamente, banir as armas biológicas já proibidas por convenções internacionais, ainda produzidas e estocadas por todas as grandes potências. Finalmente, o comitê formado pelas potências ocidentais em 1950, para monitorar e impedir a transferência de armas e tecnologia sensível a países comunistas (Cocom), poderá ser redirecionado para países da periferia. "Os debates prosseguem sobre se o Cocom deve ser gradualmente extinto ou redirecionado para países do Terceiro Mundo"7.

Todas essas ações convergem para a formulação de uma nova doutrina militar dos países centrais, que substituíram o antigo inimigo comunista por um inimigo hipotético em um país qualquer do Terceiro Mundo. O Pentágono, ao mesmo tempo em que reduz suas forças quase à metade, recomenda a reorientação de ogivas nucleares em direção a certos países do Terceiro Mundo, e já promove intensos treinamentos para ações nas florestas tropicais da América Central e da Amazônia. Sua nova doutrina é adequar as forças para agir simultaneamente e com rapidez em vários lugares. Uma doutrina para quem se propõe ser a Polícia Militar do planeta Terra. As intervenções no Panamá, Granada e agora na Somália, assim como os repetidos ataques ao Iraque, têm a finalidade de legitimar a "doutrina de intervenção". Na Europa, o artigo VIII do Tratado de Bruxelas modificado "prevê um sistema detalhado de consultas para a ação coletiva fora da Europa, caso um ou mais estados membros sintam sua prosperidade ou segurança ameaçadas". A Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) criou sua Força de Ação Rápida, com 70 mil homens, exatamente com essa finalidade.

Fundamentalismo

No imaginário ocidental, o fundamentalismo árabe passa a ocupar o lugar do comunismo como "o outro" que precisa ser contido. O fundamentalismo nasceu com Muhamar Gaddafi como alternativa antiimperialista ao comunismo e foi demonizado pelo Ocidente a partir da revolução iraniana e na progressão direta do fim da Guerra Fria. O fundamentalismo árabe é uma revolução, um projeto radical de poder, e não um movimento de catequese religiosa. Importa muito mais pelo seu conteúdo político e social - revolucionário, comunitário, estatizante e antiimperialista - do que pelo seu conteúdo religioso-arcaico, conservador e machista pela ótica ocidental. Não é o "xiismo" que identifica o fundamentalismo árabe, mas a moralidade e a ética do islamismo. Ataca os aspectos visíveis essenciais do capitalismo pós-moderno: a corrupção, a droga, o álcool e o fumo, a amoralidade, a primazia absoluta do lucro, a ganância, a falta de caridade, a ditadura do mercado, a destruição das culturas e hábitos comunitários e nacionais.

Com o fim da alternativa comunista, o fundamentalismo ficou sozinho com os corações e mentes das massas árabes. Venceu em todas as partes onde chegou, na Argélia, no Egito, nos territórios ocupados da Palestina, em algumas ex-repúblicas soviéticas de população muçulmana. Onde chega, instala ao lado das mesquitas, os serviços sociais comunitários, a escola, o hospital. Assim recria - numa época em que o Ocidente apregoa o fim do Estado solidário e o salve-se quem puder do neoliberalismo - uma proposta de ajuda mútua e de condução dos assuntos públicos seguindo um espírito comunitário. É o único movimento político de escala mundial dotado de uma ideologia que se contrapõe eficazmente ao neoliberalismo. Para frear o avanço do fundamentalismo, o Ocidente e os governantes árabes, acomodados numa exploração de classes à la capitalismo selvagem ocidental, apoiaram veladamente o golpe militar da Argélia e promovem agora, apressadamente, um acordo entre Israel e a OLP.

Neoliberalismo terminal

O neoliberalismo surgiu como resposta das elites dominantes à queda contínua das taxas de lucro das grandes empresas capitalistas nos anos 70. Com ele derrotaram o movimento operário, tomando de volta dos trabalhadores os ganhos sociais acumulados nos anos 50 e 60, e acirrados pelo intenso conflito distributivo do início dos anos 70. Durante os anos 60 aumentou muito o poder de barganha do movimento sindical, especialmente na Europa. Na Grã-Bretanha, o número de sindicalizados atingiu o seu apogeu em 1979, com 13,3 milhões de filiados diretos e mais de 20 milhões de beneficiados indiretos; 50% mais do que em 1960. O número de dias parados por greves - medida direta do conflito distributivo - também atingiu o apogeu entre 1974-79. Não por acaso, ali nasceu o thatcherismo, ponta de lança da proposta neoliberal de desmantelamento do Estado solidário e destruição do poder sindical.

Foi esmagadora a vitória neoliberal. Não apenas no plano material, destruindo efetivamente sindicatos poderosos, como o dos ferroviários na Grã-Bretanha e dos controladores de vôo nos Estados Unidos, como também no plano ideológico, cativando as novas gerações, para as quais subir na vida passou a ser o objetivo pessoal e supremo. Na raiz dessa vitória ideológica do neoliberalismo está a falência das políticas da social-democracia, e a generalizada deterioração dos serviços que o Estado solidário deveria em tese oferecer. Essa deterioração, por sua vez, foi acelerada pela crise geral do capitalismo, que começou no final dos anos 60 e não acabou até hoje.

A atual crise do capitalismo ocidental já se tornou uma das mais longas e profundas de sua história. Se uma teoria da história foi convalidada por essa crise, foi exatamente a teoria das ondas longas de Kondratieff, inspirada na análise marxista do capitalismo, e em geral menosprezada, inclusive por marxistas. Kondratieff verificou empiricamente que profundas recessões vêm afetando o capitalismo regularmente a cada 50 anos. Iniciada nos Estados Unidos, centro e maior mercado do capitalismo neste século, a crise foi se generalizando e hoje atinge seus dois outros centros dinâmicos, Alemanha e Japão. Pela primeira vez, desde os milagres econômicos dos pós-guerra, as três economias entram simultaneamente em recessão. No Japão a euforia acabou em 1990. 0 país ainda se beneficia do dinamismo das economias asiáticas, mas não consegue repetir os enormes ganhos de produtividade que lhe permitiram absorver o choque da supervalorização do yen entre 1985 e 1990, chamado "endaka". Acumula hoje grande capacidade ociosa. A Alemanha, por sua vez, sofre de uma indigestão com a absorção da Alemanha Oriental, e terá déficit em sua conta corrente com o resto do mundo.

O neoliberalismo não conseguiu devolver às grandes empresas as gordas taxas de lucro, apesar da profunda reestruturação econômica promovida por elas e no setor público. O capitalismo pós-industrial simplesmente não consegue criar emprego suficiente e convive hoje com 34 milhões de desempregados nas economias centrais. O desemprego tornou-se permanente e estrutural, atingindo em média 7,5% de toda a força de trabalho dos países centrais, e mais de 10% na França, Espanha, Itália, Grã-Bretanha e Canadá. As grandes empresas cortam drasticamente a força de trabalho, os níveis de chefia, os serviços subsidiários, mandam seus funcionários trabalhar em casa; gerações inteiras hoje saem das universidades para um futuro de desemprego permanente.

Nem por isso o capitalismo está politicamente em crise. A rigor, o conceito de crise no capitalismo só tem sentido a partir de uma ótica de classe. No capitalismo, os trabalhadores vivem sempre em estado de crise, exceto nos fugazes momentos de pleno emprego. Para a burguesia, se a crise não resulta num desafio ao seu monopólio do poder, não é uma crise. E isso só pode acontecer a partir de movimentos políticos concretos.

Assim foi a revolta de Los Angeles, provocada pelas conseqüências nefastas do neoliberalismo americano na comunidade negra norte-americana. Nos Estados Unidos, após quase vinte anos de neoliberalismo, a expectativa de vida entre os negros diminuiu, sua renda encolheu 56% em média e um em cada três negros passou a viver abaixo da linha de pobreza. Por isso os negros se rebelaram contra o "poder branco". Na Europa, o mesmo neoliberalismo levou a uma resposta oposta. A eclosão do racismo dos brancos mais afluentes, contra os imigrantes miseráveis, turcos, negros ou argelinos.

Sem trazer a prosperidade que prometia, o neoliberalismo perdeu força. Nos Estados Unidos, na Irlanda, em Israel, na Espanha e na Polônia foi derrotado nas urnas. Na Grã-Bretanha, onde atingiu sua forma mais completa e agressiva, perdeu terreno com as eleições municipais deste ano, e só não cai porque o campo popular não consegue oferecer uma alternativa consistente. No Peru e na Federação Russa, teve que se valer do golpe da fujimorização. Do fracasso do neoliberalismo estão nascendo novas doutrinas econômicas que tentam rebater a ideologia neoliberal em seus próprios termos.

O economista norte-americano Robert Lane lançou um ataque devastador a um dos dogmas do pensamento econômico clássico, e como tal um dos pilares do neoliberalismo: o de que o homem só trabalha por dinheiro e aceita pelo seu trabalho o preço que julga compensador pela perda do prazer de não trabalhar. Lane, após pesquisas do mundo realmente existente, conclui que o oposto é mais provável. As pessoas querem trabalhar, precisam trabalhar e gostam de trabalhar. Não o trabalho escravo do capitalismo selvagem, obviamente, mas o trabalho normal dos países civilizados. Segundo ele, é o trabalho que nos faz mais inteligentes, sociáveis, humanos. O processo de produção nos satisfaz profundamente. E vai além em seu ataque ao neoliberalismo e às teorias de Friedrich Hayek e Milton Friedman8. Diz Lane que o dinheiro, em vez de dar racionalidade ao sistema econômico, retira sua racionalidade porque é também um poderoso símbolo, e como tal desencadeia paixões, comportamentos irracionais, sentimentos de culpa ou de ambição. Tudo isso ofusca a capacidade de pensar racionalmente, base das teorias existentes que tentam explicar o sucesso das economias de mercado com base nas "expectativas racionais".

Outro dogma fundamental do pensamento econômico está sendo desafiado pelo economista Brian Arthur. O de que a produção tende sempre a se estabilizar, porque a partir de certo ponto seus custos são crescentes. A origem desse princípio estava na produtividade das lavouras, que tende a cair à medida que são ocupadas as terras menos férteis antes relegadas, até que não vale mais a pena se expandir. O mesmo se daria, por exemplo, na extração do carvão, cada vez mais cara à medida que se buscam veios mais profundos. Mas, argumenta Brian Arthur, as novas tecnologias permitem a extração cada vez mais barata, de veios cada vez mais profundos. Uma vez estabelecida uma vantagem comparativa de natureza tecnológica, ela pode ser mantida quase que indefinidamente. Assim os grandes monopólios, as grandes multinacionais, cada uma especializada num campo da produção, investindo pesadamente em tecnologia, mantêm indefinidamente suas vantagens comparativas.

Parecem tão óbvias as críticas de Brian Arthur e Robert Lane aos dogmas da doutrina monetarista e neoliberal, que chegamos à conclusão de que os economistas neoliberais vivem duas linguagens, dois sistemas de saber, como viviam os sábios na Idade Média, às vésperas do Iluminismo: um pragmático, baseado na observação e relativamente sensato; outro dogmático, que não existe para explicar o mundo e sim para justificar a dominação do mundo. Pois, não é óbvio que o homem existe e se faz no trabalho?

A dolarização da periferia

Um dos traços centrais da crise corrente do capitalismo é a violenta desordem monetária. O sistema internacional de pagamentos, os pagamentos entre países, funciona como uma mesa de jogo honesta, na qual os participantes compram fichas de um deles que passa a ser o banqueiro do jogo. Todos passam a jogar com fichas. Desde o fim da segunda guerra, essas fichas são os dólares americanos, em troca dos quais todos os participantes do acordo de Breton Woods entregaram seu ouro aos Estados Unidos, que ficou sendo o banqueiro do jogo. Ocorre que os EUA trapacearam, usando mais fichas do que tinham direito. Só eles poderiam fazer isso porque eram os únicos que imprimiam os dólares. Passaram a inundar o mundo com a moeda que não tinham lastro em ouro e, assim, a inflacionar o próprio dólar.

Em 1972, frente à exigência do governo francês de ter seu ouro de volta, o presidente Nixon decretou o calote unilateral. Os Estados Unidos desvalorizaram as fichas - o valor dos dólares em ouro - e ainda se desobrigaram de devolver ouro aos participantes do sistema, que assim eram obrigados a continuar usando e aceitando dólares. Assim acabou o acordo de Bretton Woods, e o mundo vive às voltas com repetidas convulsões monetárias, cada vez que se teme uma nova desvalorização do dólar e com uma constante inflação de fundo. Essas convulsões soterraram a tentativa da Comunidade Européia de ter uma moeda única, que se contraponha ao dólar.

O que começou como pequenas extravagâncias norte-americanas para pagar a guerra do Vietnã, tornou-se um novo sistema. Todos os anos os Estados Unidos gastam cerca de US$ 80 bilhões a mais do que recebem, e o mundo é obrigado a aceitar esses dólares. Uma parte fica com os japoneses que os aplicam nos Estados Unidos, comprando propriedades, empresas, ações ou títulos do tesouro norte-americano. Assim, o Japão financia tanto o gigantesco déficit público norte-americano, como o do balanço de pagamentos com o exterior. Essa é também uma das grandes assimetrias do mundo em que vivemos. A maior potência militar e detentora da moeda dominante nas transações internacionais, na verdade, é devedora e tem seu patrimônio empenhado ao país que derrotou na Segunda Guerra Mundial.

Os dólares que não voltam aos Estados Unidos ficam nos bolsos e nos cofres de particulares, em agências bancárias em todo o mundo, alimentando um processo de crescente dolarização mundial, ou seja de uso da moeda americana como se fosse moeda local e como reserva de valor, e não apenas como meio de pagamentos internacionais9. Somente no Brasil devem haver cerca de US$ 10 bilhões circulando. Na Federação Russa há cerca de US$ 20 bilhões. Há grandes quantidades na Argentina, México, Vietnã, e até na China Comunista. A dolarização confere aos americanos uma grande sobrevida econômica. Cada dólar, que imobilizamos em transações locais ou guardamos como reserva de valor, representa mercadorias ou serviços no valor de um dólar que fornecemos aos americanos. Assim se mantém a hegemonia norte-americana, metamorfoseada de domínio econômico em monetário. Outro paradoxo: o declínio econômico, fazendo com que eles gastassem mais do que recebiam, levou ao domínio pela moeda. O dólar tornou-se a moeda do mundo. O mundo tornou-se refém do dólar.

Terceiro e quarto mundos

A crise inventou uma nova expressão: Quarto Mundo é, basicamente, o mundo que deve mais de US$ 1,2 trilhão aos bancos dos países centrais.

De onde surgiu essa expressão Quarto Mundo?

Primeiro, da perda de significado da expressão Terceiro Mundo, já que seus problemas estruturais típicos, como falta de moradia, desemprego estrutural, criminalidade e mendicância, também são hoje problemas do Primeiro Mundo. Em segundo lugar, da necessidade de expressar a nova destruição das sociedades e do Estados na África negra e em boa parte da América Latina.

A primeira devastação deu-se no âmbito da expansão mercantil do século XVI, a conquista do novo mundo pelos europeus e a implantação do escravismo. Hoje se dá uma segunda devastação: mais de 300 mil negros morreram de fome e nas guerras civis na Somália, Etiópia, Zaire e Angola. Dezenas de milhares negros morreram de Aids, num crescendo que deverá matar outros 10 milhões até o ano 2000. Na América Latina, a estagnação econômica prolongada jogou populações inteiras nos braços do narcotráfico, que hoje movimenta cerca de US$ 100 bilhões e substituiu o poder do Estado na Colômbia, em partes do Peru, Bolívia, e dá emprego a 150 mil moradores de morros cariocas.

Ao contrário do discurso neoliberal, a dívida externa ainda está no centro dos problemas dos países periféricos, arruinou o setor público, obrigado a assumir seus encargos através do fornecimento por mais de 15 anos de insumos, energia e serviços subsidiados às multinacionais instaladas no setor manufatureiro. O Estado entrou em profunda crise, cortando todos os investimentos e serviços - menos o serviço da dívida. Assim se criaram as condições políticas para a transferência do patrimônio dos países periféricos aos bancos dos países centrais. O discurso do neoliberalismo foi também o legitimador dessa transferência, ao atacar o setor público e a nuclear o seu projeto na privatização, sob o pretexto de que o Estado gerencia mal e deve ser retirado dos setores produtivos para viabilizar a retomada do crescimento econômico e a queda da inflação. No marco da dívida externa dos países periféricos, a privatização é o momento puro e simples da entrega do patrimônio aos banqueiros. Em escala mundial foram privatizadas desde 1985 empresas valendo US$ 328 bilhões, pertencentes às coletividades de países centrais periféricos. No caso do Brasil, os grandes patrimônios ainda não foram entregues aos banqueiros: Petrobrás, Telebrás e Vale do Rio Doce. Essa é a grande briga patrimonial hoje no país. Essa é a cartada de Fernando Henrique Cardoso: entregar o grande patrimônio popular para aplacar a voracidade capitalista.

Mas a entrega do patrimônio não fecha o grande arco histórico da dívida externa dos países periféricos. A dívida ganhou tal escala que se tornou impagável, mesmo com entrega de patrimônio. Uma dívida sem precedentes na história do capitalismo.

Entre 1981 e 1991, os países do Terceiro Mundo pagaram US$ 605 bilhões de juros de dívida e, no entanto, ela cresceu no mesmo período de US$ 573 bilhões para US$ 1.281 bilhões, sem que tivesse entrado dinheiro novo. Crescimento vegetativo, devido ao excesso de juros e encargos sobre a capacidade de pagar. Por mais que paguem juros e reestruturem a dívida conforme o Plano Brady, continuam presos a encargos excessivos, de forma que as dívidas freqüentemente aumentam, como é o caso do México que devia -cerca de US$ 70 bilhões e hoje, após o plano, deve US$ 117 bilhões. É o sistema da dívida no barracão, característico das fazendas brasileiras do começo do século, nas quais o trabalhador estava sempre devendo10.

Devido aos encargos financeiros do capital estrangeiro, as economias latino-americanas, após meio século de um modelo substitutivo das importações, deformaram-se a tal ponto que não conseguem competir na cena mundial. O modelo substitutivo das importações sempre foi apresentado como fomentador do desenvolvimento, protetor da indústria nacional. Em tese deveria ter levado à industrialização auto-sustentada. Porém, não passou de mais uma forma encontrada de economizar os dólares necessários para remunerar os lucros de sempre, excessivos, do capital estrangeiro e pagar os juros da dívida.

Criamos uma economia paradoxal, movida por sucessivos e poderosos ciclos de exportação e que no entanto nunca tem dólares suficientes para investimentos de capital, e precisa tomar esse dinheiro emprestado a juros de usura. Criamos uma cultura proibitiva de importações, sob o nome pomposo de "auto-suficiência", que nos impediu de usar os fatores de produção mais baratos disponíveis no mundo. Pagamos muito mais pelos dois combustíveis fundamentais da economia: o petróleo - combustível das máquinas - e o trigo - combustível dos homens porque insistimos em produzi-los aqui a um custo muito superior ao preço dos mercados internacionais. Não para manter aqui a renda dessa produção, mas para economizar os dólares, para pagar a dívida externa.

Faliu esse modelo falsamente autárquico, inspirado num marxismo estruturalista da Cepal dos anos 60, até hoje parcialmente apoiado pelo campo popular, mas sempre conduzido por uma burguesia sem projeto de desenvolvimento nacional.

O Mercosul foi uma resposta necessária mas defensiva da América Latina à sua falência mercantil. Pouco pode contra o poderoso bloco do Mercado Comum, a Nafta e o Japão, que através de acordos bilaterais fizeram com que 75% do comércio mundial seja hoje "administrado". Inclusive o comércio de produtos agrícolas, nos quais a América Latina deveria ter uma vantagem natural. Para combater essa vantagem, os países centrais gastam todos os anos US$ 353 bilhões em subsídios à sua agricultura. Com tudo isso, a participação da América Latina no comércio mundial caiu de 12,4% das exportações em 1950 para apenas 3,9% em 1990. Da mesma forma suas importações caíram de 10,1% das importações mundiais em 1950 para apenas 3,2% em 1990. Os números para a África são similares.

Não se deve confundir o fluxo de capital especulativo, que hoje invade os países latino-americanos, com investimento produtivo. Hoje, a maior parte do investimento estrangeiro produtivo é japonês e se concentra nos países asiáticos e nos mercados desenvolvidos. Dos US$ 450 bilhões investidos pelo Japão nos últimos quinze anos, um terço foi para os Estados Unidos e outro terço para o Extremo Oriente. Apenas um décimo veio para a América Latina. De certa forma, há um modo de produção asiático, com base na industriosidade e domesticação de seus trabalhadores, na produção de objetos miniaturizados, que hoje domina a cena mundial. Desde o domínio tecnológico e à produção de ponta no Japão, Coréia, até a produção têxtil e de pequenos objetos pela China e Taiwan, que rapidamente ocupam os mercados antes do Brasil. O próximo século poderá ser o século asiático após cinco séculos de supremacia branca.

Bernardo Kucinski é jornalista.