Cultura

Ter a cabeça feita por um livro já é algo pouco provável. Ter a cabeça feita por um poema é coisa de delirantes...

Imaginei uma tarefa de fácil resolução. Escrever algumas linhas para esta revista sobre o livro que fez a cabeça. As dificuldades começaram quinze minutos depois. Quando avaliei melhor o pedido. A primeira: cabeças temos muitas. Quando li, por exemplo, A história me absolverá, o discurso de Fidel ante os tribunais de Batista, o impacto foi avassalador. Pensei em tornar-me advogado, em aprender espanhol, estudar História da América conhecer a obra de Marti, que tinha feito a cabeça dele... De prático mesmo deixei crescer umas penugens na cara aspirando um dia converter-se em barba, calcei um par de botinas cara-de-vaca, era o que tinha à mão. Marchei uns dias com passo marcial pelas ruas desoladas do Porto e conferi que nas planuras daqueles chapadões não encontraria nenhuma Sierra Maestra disponível. Olhei-me no espelho, assim mirrado pouco tinha a ver com Fidel, Armando Hart, Camilo. Botei a viola no saco. E andei muitos anos com aquele livrinho aceso na cabeça.

Outras dificuldades se apresentaram. Filosofia? Política? Economia? Romance? Poesia? Como o espaço é curto, poupo o leitor de outras divagações.

1971. Não é possível precisar o mês. Clandestino, eu saíra para cobrir um ponto nas proximidades da avenida Nove de Julho, São Gabriel, por ali, com o companheiro Antonio Carlos Nogueira, o Chico.

Saltei do ônibus. Percorri alguns metros de calçada. Parei diante da banca, mecanicamente. Em frente aos jornais do dia. Lá estava a foto do Chico. Estampada ao lado da nota, seguramente produzida nas redações do DOI-Codi do 2º Exército: terrorista morto em tiroteio com os órgãos de segurança.

Andei a esmo, atordoado. Rigorosamente vazio. Invadido por uma solidão irreparável. Duas ou três quadras adiante, não sei se na rua Tabapuã ou na Joaquim Floriano, ouvi a voz de Chico Buarque brotando de uma loja de discos:

"Amou daquela vez como se fosse a última, / beijou sua mulher como se fosse a última / e cada filho seu como se fosse o único / e atravessou a rua com seu passo tímido. / Subiu na construção como se fosse máquina..."

Há circunstâncias que nos desarmam. Nos deixam inermes. Nos perdem. Não quero separar as circunstâncias, do conhecimento de Construção. Mesmo porque, passado quase um quarto de século, continuo a crer que poucos poemas terão sido escritos em língua portuguesa que a si mesmos se desvendam como este.

Construção é o edifício e o andaime do edifício expostos e simultaneamente. E o poema e a reflexão sobre ele: o poema e seu avesso. E o espelho ante o espelho dos nossos infortúnios capturado pela sensibilidade do moço de olhos verdes que amadureceu um laço de encantamento entre sua geração e este país.

Comovedor na sua transparência, Construção que lida com os sinais, os gestos diários da vida, o sonho dos excluídos, seu trabalho árduo, seus equívocos:

"morreu na contramão atrapalhando o tráfego",

ao mesmo tempo e a impiedosa demonstração do que Mallarmé dizia no século passado: poesia não se escreve com sentimentos, se escreve com palavras. Mas Construção vai além. Demonstra que a poesia é o escândalo da palavra, como o desenho de Escher é o escândalo da lógica geométrica. É a desorganização do idioma para produzir luz. Veja:

"E tropeçou no céu como se fosse um bêbado"

na primeira forma vira:

"E tropeçou no céu como se ouvisse música"
ou
"E flutuou no ar como se fosse um príncipe..."

Construção, de algum modo, é o estuário da busca de duas gerações de poetas: aquela que imaginou ultrapassar os modernistas radicalizando a procura da poesia ao tomar as palavras isoladamente e assim dispondo-as sobre o papel e a que conduziu a migração fecunda da poesia brasileira para a música: Chico, Caetano, Gil, Torquato Neto, Sergio Ricardo, Sidney Miller, Fernando Brant, tantos...

Naquela manhã paulistana envergando casaco cinza, e nos obrigando a fazer o mesmo, a voz pequena de Chico Buarque - voz de compositor que canta... me acalenta, constrói e desconstrói aos meus ouvidos um poema permanente, naquele instante soando como um réquiem para outro Chico Antonio Carlos Nogueira Cabral - "Morreu na contramão atrapalhando o tráfego...". E me dou conta do labirinto de solidão que palmilhávamos...

Ter a cabeça feita por um livro já é algo pouco provável.

Ter a cabeça feita por um poema é coisa de delirantes...

Pedro Tierra é Hamilton Pereira, poeta e secretário Agrário Nacional do PT