Nacional

Seis teses sobre o melhor ano do resto de nossas vidas (ou de como os meses à nossa frente serão lembrados como a época em que os trabalhadores tiveram a chance de escrever sua própria história)

1.. Como estratégia de preservação e reorganização da ordem mundial, o neoliberalismo gerou as condições para um novo ciclo expansivo das forças reformadoras
As últimas eleições presidenciais, em 1989, foram contemporâneas da queda do muro de Berlim e da falência do sistema socialista até então existente. Desde aquele ano, por diversas vezes os plutocratas de todos os continentes comemoraram a vitória definitiva sobre o mundo do trabalho e as idéias de igualdade e fraternidade. O sucesso norte-americano na Guerra do Golfo, em janeiro de 1991, parecia sacramentar um combate de décadas: doravante, os axiomas da economia de mercado devidamente salvaguardados pela supremacia militar dos Estados Unidos - haveriam de orientar os caminhos da humanidade.

A sensação de fim da história alastrou-se inclusive entre as hostes de esquerda. Com a rapidez dos ventos, super-revolucionários de outros tempos transformaram-se em teóricos da adesão. Muito antes das mais otimistas das previsões, porém, a contenda reabriu-se: a ordem dos mil anos revela suas podridões e é enfrentada, nas metrópoles e nos grotões, pelos filhos da melhor tradição democrática e socialista. Os mortos permanecem jovens.

Nos próximos meses, as forças progressistas poderão sair-se vitoriosas em eleições gerais ou presidenciais na Itália, no México, no Brasil e no Uruguai. O processo de restauração capitalista na antiga União Soviética e em outros países de história socialista é freado pelo ressurgimento dos partidos comunistas e de correntes nacionalistas como agrupamentos de expressão. Para quem prometia a consistência de um monólito e perenidade geológica, a alternativa neoliberal já apresenta sintomas que prenunciam turbulência.

A característica particular do novo dinamismo das forças reformadoras ao contrário, por exemplo, dos movimentos dos anos 30 e 70 - reside na convivência com uma quebra de racionalidade estratégica ainda não superada. Os partidos e grupos que expressam o dissabor popular são carregados pelos efeitos sociais e culturais da década neoliberal: o empobrecimento dos países em desenvolvimento, a formação de bolsões de miséria nos centros capitalistas e a apropriação privada do Estado e dos recursos públicos.

A inversão do fluxo de capitais tomando, nos anos oitenta, as nações endividadas da periferia capitalista exportadoras líquidas de dinheiro -, a adoção de um padrão social de desenvolvimento tecnológico marcado pela exclusão estrutural de uma parcela crescente de trabalhadores e a concentração monopolista da renda (inclusive na sua forma indireta, através da drástica redução de verbas para as políticas públicas) aproximaram o mundo da barbárie. Um cenário no qual ilhas de excelência e prosperidade são cercadas pela putrefação social, pelos choques raciais, pelo tráfico de drogas, pela criminalidade, por multidões de desesperançados.

O modelo neoliberal, com gorduras para fazer frente ao seu declínio na Europa e nos Estados Unidos, fez dos países de capitalismo tardio o elo mais fraco da corrente. Particularmente na América Latina, sangrada por mais de dez anos pelo serviço da dívida externa e pelas imposições recessivas-exportadoras da comunidade financeira internacional, viveremos as grandes batalhas desse final de século. Aqui, jovens idéias de igualdade e fraternidade tirarão o sono e a graça dos endinheirados.

2. A esquerda brasileira é a principal protagonista no embate contra o conservadorismo e a restauração
O principal fato político de 1994 serão as eleições presidenciais no Brasil. A conjugação de uma eventual vitória do companheiro Lula com resultados favoráveis também no México e no Uruguai mudará o mapa do poder da América Latina, e o neoliberalismo terá sofrido um abalo de proporções ainda incalculáveis. A hegemonia norte-americana, mais de vinte anos depois da derrubada do presidente Allende, estará novamente em choque.

O papel que a esquerda brasileira está chamada a desempenhar guarda proporções com a história recente do continente. Ao contrário dos processos nos demais países latino-americanos, as tentativas de implantação de um modelo neoliberal no Brasil não foram precedidas pela derrota do movimento operário. Na Argentina e no Chile, a pré-história do neoliberalismo foi escrita, pelas mãos de ditaduras, com o sangue dos trabalhadores e dos militantes revolucionários. No México, o férreo controle do sindicalismo pela oligarquia é o pressuposto do programa econômico aplicado.

No Brasil, o neoliberalismo é uma criatura tardia, e que teve de medir forças com um movimento sindical e uma esquerda que continuaram a ocupar o centro da vida política do país. Após a vitória em 1989, as elites viram sua saída bonapartista sucumbir na lama e o presidente eleito ser afastado em um processo de impeachment.

Aqui, o movimento dos de baixo gerou uma opção política de massas antes do colapso das antigas agremiações de esquerda. Um partido anticapitalista, com firmes raízes entre os proletários e demais assalariados, reaglutinou a tradição socialista e no curso de poucos anos tornou-se uma alternativa de poder. Esse partido, o Partido dos Trabalhadores, é atualmente a principal reserva de forças e a maior esperança de todos os que travam a dura luta.

3. A vitória eleitoral e o futuro do governo democrático e popular dependem da capacidade do PT em transformar-se no partido dos miseráveis
A coligação Brasil Popular foi derrotada, no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, pelo voto dos miseráveis, particularmente nos cinturões periféricos da Grande São Paulo. A esquerda colheu os frutos amargos do cruzamento entre os insucessos administrativos da Prefeitura (então dirigida por uma governante petista), o massacre dos meios de comunicação e a concentração de esforços na disputa do voto das camadas médias. Boa parte dos dirigentes partidários comportou-se conforme um velho teorema: a esquerda tem o voto cativo dos trabalhadores e das massas pobres; a direita, dos segmentos abastados da média e pequena burguesia; a eleição é vencida por quem conseguir atrair os extratos intermediários, suas referências políticas e culturais.

O desenvolvimento capitalista gerou uma economia complexa e vastas camadas de profissionais de formação média e superior, que combinam um estilo de vida de classe média com uma ocupação funcional no aparelho produtivo. Esses novos segmentos médios foram a base do último ciclo de expansão do sindicalismo e possuem um papel importante na articulação de um bloco social sob hegemonia dos trabalhadores. Esses setores modernos, contudo, continuam minoritários e convivem com uma maioria social e eleitoral de miseráveis, de famélicos, de despossuídos. Sem os agentes da modernidade, a esquerda certamente não conseguirá governar, mas sem a adesão da maioria arcaica não vencerá as eleições e não disporá de forças para enfrentar e derrotar, no plano do poder político, a fúria vingativa da plutocracia.

Para dirigir um amplo processo de transformações sociais e de transição do poder ao mundo do trabalho, o PT terá que ser o partido dos que nada têm. Terá que combinar a influência hegemônica de nova intelectualidade com os brios de uma multidão capaz de enfrentar a força bruta que é essa terra.

Haverá dois momentos decisivos na disputa pelo apoio dos miseráveis: a campanha do primeiro turno e os cem primeiros dias de governo. No primeiro, o PT e seus aliados terão de mostrar, em seus atos, discursos e programas, que não se misturam com a escumalha que comanda há séculos o país e que têm a disposição de efetivar as reformas radicais anunciadas. No segundo, o presidente Lula terá que eliminar do imaginário popular a hipótese de que, eleito, fará como os outros, pedindo para que esqueçam tudo o que disse até ser governo. Terá que criar entre os trabalhadores e os miseráveis a certeza de que aquele poderá não ser o governo dos sonhos, mas será o seu governo.

4. A eleição do companheiro Lula para a Presidência da República é a mais importante batalha de todas as que o povo brasileiro já enfrentou
Desde o final da ditadura, o principal traço do desenvolvimento da vida política brasileira tem sido a contradição entre a natureza dos programas econômicos das classes em luta e a ausência de força político-social para implementá-los. O Brasil vive há uma década uma situação de equilíbrio prolongado, uma crise de poder cujos resultados têm se revelado na forma de desorganização da economia, frustração popular e desmonte do aparelho de Estado. A batalha eleitoral que se avizinha é o capítulo mais importante e decisivo nessa lenta agonia nacional. As classes, os partidos, as instituições disputarão uma peleja que definirá o futuro político das próximas gerações.

A vitória da esquerda, do companheiro Lula, significará a primeira derrota de envergadura das oligarquias em séculos da história desse país. Como resultado de um processo eleitoral, e não de um movimento revolucionário, as classes dominantes serão afastadas do centro do Estado. Resistirão impiedosamente, através do suborno, da sabotagem ou da pura e simples truculência.

A primeira armadilha a ser vencida é a revisão constitucional: conscientes dos perigos que as eleições lhes prometem, os políticos dos endinheirados apressam-se em amarrar os braços de Lula a uma eventual Constituição reformada que bloqueie seu programa de governo e sua ação institucional. Qualquer concessão que ajude a viabilizar a revisão, qualquer gesto que torne o PT e seus aliados cúmplices desse processo, jogará pedras em nosso próprio caminho. Nossa intervenção institucional deve opor operação mãos-limpas contra revisão e, publicamente, através da denúncia, da obstrução e, se necessário, do boicote, dissociar nossa imagem da empulhação revisora.

O segundo desafio é combinar unidade de esquerda no plano nacional (com PSB, PC do B, PSTU e setores de outros partidos), identidade própria nas disputas pelos estados mais importantes (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) e políticas regionais de alianças (o PT deve estar disposto a apoiar qualquer candidatura progressista aos governos de estado que tenha o compromisso de respaldar, desde o primeiro turno, a campanha presidencial).

Por último, entre as grandes tarefas do processo eleitoral, um esforço inédito, descomunal, deve ser feito para a popularização do programa de governo e para transformar a campanha numa grande organizadora de multidões em luta pelas reformas. Para consolidar esse objetivo, é necessário ir além de alianças de conveniência: a frente de partidos pró-Lula deve se constituir em um instrumento permanente, democrático, que funcione, na campanha e no governo, como forma orgânica da unidade da esquerda e das forças progressistas.

5. O principal dilema do governo democrático e popular será enfrentado no plano da política: a passagem do poder para as mãos dos trabalhadores
A eleição do companheiro Lula abrirá um processo revolucionário em nosso país, uma crise de Estado cujo desfecho poderá ser a capitulação, a tragédia ou a revolução vitoriosa. Se a confirmação dos prognósticos eleitorais significará uma derrota contundente dos esquemas insurrecionais como estratégia de aproximação ao poder, os atos seguintes forçarão a consistência dos argumentos em defesa de um processo reformador sem rupturas.

A implementação do programa de governo do Partido dos Trabalhadores - cuja contraposição aos paradigmas neoliberais revela sua natureza antilatifundiária, antimonopolista e antiimperalista -, a partir do principal órgão do Estado, resultará numa específica dualidade de poderes, intrainstitucional: um confronto do poder presidencial, e sua opção reformadora, contra uma provável maioria conservadora no Legislativo e no Judiciário. Da definição desse inevitável enfrentamento, dependerá a hegemonia sobre a refundação nacional.

O cerco ao poder presidencial tenderá a provocar, por um certo período, uma paralisação no processo reformador, cuja continuidade será bloqueada pela maioria parlamentar conservadora, pelas decisões judiciais e pela aberta sabotagem do capital. A ruptura do cerco será a questão decisiva do processo que poderá ser aberto no próximo pleito.

Das três vias possíveis para a resolução da crise de Estado, recusamos, liminarmente, as tramas e trejeitos da capitulação: significaria, para a esquerda, uma condenação ao limbo por muitas gerações. Restam como hipóteses a tragédia ou a revolução vitoriosa: uma disputa pelo controle do Estado e pela hegemonia na sociedade cujo resultado, de toda forma, será o surgimento de uma nova ordem - uma ditadura restauradora ou o poder democrático dos trabalhadores.

O governo democrático e popular terá como principal tarefa a consolidação de um bloco social que não deixe o país mergulhar nas correntezas da tragédia. Uma luta que se desenvolverá em quatro planos: a democratização radical do Estado (dotando a sociedade de mecanismos plebiscitários que definam institucionalmente os conflitos entre os poderes, estabelecendo instrumentos de controle social sobre o Judiciário, criando novas formas de democracia direta); a busca da adesão das Forças Armadas à idéia de que só a esquerda possui um projeto nacional soberano; a conquista de aliados no interior das instituições controladas pelos conservadores; a permanente mobilização de massas como ferramenta de construção de uma nova ordem.

As reformas prometidas terão origem na pia batismal das eleições presidenciais, mas sua continuidade e aprofundamento só serão definidos após a prova da revolução política: serão esmagadas, se a plutocracia lograr a desestabilização do governo; ou mudarão a ordem social, se forem os trabalhadores os vitoriosos.

6. Para vencer as eleições e para governar o país, o PT precisa viver sua revolução copérnica
O Partido dos Trabalhadores é a força decisiva nos enfrentamentos desse ano e dos próximos, nas tarefas de campanha e na condução do governo.

Fundado como partido-lago - para o qual convergem todas as águas sociais -, vive o desafio de transformar-se em partido-fonte - a partir do qual nascem os afluentes principais da construção histórica. De uma agremiação que representa institucionalmente os movimentos dos trabalhadores - e que, exatamente por isso, obteve o respeito e a simpatia de milhões de cidadãos o PT vive uma etapa em que o futuro da esquerda pode depender de sua conversão em partido programático, centro solar de um sistema de forças e alianças capaz de mudar o país.

A revolução política que se iniciará na hipótese da vitória do companheiro Lula, demanda uma correspondência partidária: uma revolução copérnica, que altere os métodos, os estilos e as práticas de nossos dirigentes e militantes.

Só é possível conceber nosso partido como principal vertente da refundação do Estado se sua vida estiver regida por normas democráticas de subordinação das partes ao todo, se forem sendo superados os profundos traços corporativistas que determinam nosso funcionamento orgânico. Por que, por exemplo, os assuntos sindicais devem ser decididos apenas pelos nossos sindicalistas, ou os temas parlamentares somente pelos nossos congressistas, se são tópicos que influem sobre a conjuntura da vida nacional? Qual a natureza das rebeliões internas que não a recusa de cada setor em submeter sua específica lógica corporativa aos interesses estratégicos do partido?

Os objetivos copérnicos, as lutas do presente e do futuro clamam por uma reforma geral. Por um núcleo dirigente não-ornamental, que reúna os melhores e mais representativos quadros partidários, e que seja capaz de unificar os petistas nas grandes tarefas à nossa frente. Por um partido novamente enraizado nas fábricas, nos bairros, nas escolas, nas fazendas, com organismos permanentes de reunião e militância. Por uma política cultural que permita ao PT conquistar a adesão ativa da intelectualidade e a formação de um sistema de comunicação capaz de enfrentar o monopólio oligarca da mídia. Pela implantação de canais democráticos que permitam aos militantes sem-tendência participar da vida e das decisões partidárias, coibindo o fracionismo e as igrejinhas. Por um partido à altura do momento histórico que tanto lutou para criar.

Um primeiro passo tem que ser dado, para que a revolução copérnica se inicie: um imediato cessar-fogo na luta interna. Desde abril do ano passado, provada em pelo menos quatro grandes oportunidades (posição diante do governo Itamar, plebiscito parlamentarismo versus presidencialismo, resoluções do 8º Encontro Nacional, política de alianças para a eleição presidencial), formou-se no partido uma maioria de esquerda. Cabe a essa maioria, que evitou a caminhada do partido para posições que poderiam dilapidar seu patrimônio político e eleitoral, o papel de unificadora da vontade geral.

Um pacto de solidariedade à campanha de Lula deve ser imediatamente estabelecido. Todos devem assumir o compromisso de renunciar às páginas da grande imprensa como locus da luta de idéias entre dirigentes petistas. Um acordo para a ação, com base nas posições majoritariamente decididas, e conduzido pelo próprio companheiro Lula, deve permitir ao Partido dos Trabalhadores se voltar para fora, para os grandes embates hoje tão próximos. A vida está a pedir generosidade da maioria e disciplina da minoria.

Afinal, vale a pena o empenho e o sacrifício para o melhor ano do resto de nossas vidas.

Breno Altman é editor.