Cultura

A indústria do livro no Brasil é o único setor da atividade cultural que não depende de subsídios públicos para existir e prosperar. Vende seus produtos ao Estado, principalmente livros didáticos, mas não depende da sua ação direta.

 

Tratar em um artigo de uma política cultural para o livro pressupõe definir o alcance de uma proposta deste tipo.

A primeira, e mais importante definição é que não se está tratando de uma política para os escritores enquanto tais, e sim de uma política para o produto livro. Embora esta esteja intimamente ligada ao trabalho intelectual, deve-se distinguir claramente uma da outra. A relação de qualquer governo com a produção intelectual deve restringir-se ao respeito e à garantia da liberdade de expressão. Já a política em relação ao livro, além de abranger também a liberdade de expressão, está vinculada a questões mais amplas, como a educação, a cidadania, o desenvolvimento científico e tecnológico e o lazer. E mesmo no que diz respeito à liberdade de expressão, uma política governamental democrática se expressa não apenas na garantia formal de que se pode escrever e publicar com a mais ampla liberdade, mas também na criação de mecanismos que permitam a difusão - não dirigida ou manipulada - do que se produz e se publica, como parte dos mecanismos de exercício da cidadania.

O que se lerá em seguida não pretende ser um receituário de ações, e sim reflexões sobre o conteúdo de propostas políticas. Foram escritas desde a perspectiva de um editor de livros que, apesar de militante político, está falando como integrante da indústria editorial.

1. A indústria do livro no Brasil é um empreendimento maduro, capacitado a proporcionar ao público leitor brasileiro livros bem feitos sob todos os aspectos técnicos. Integrada ao processo mundial de circulação de idéias, oferece aos leitores um número grande e diversificado de autores nacionais e traduções que permitem o acompanhamento quase que imediato das grandes correntes de idéias e da literatura internacional.

A indústria do livro no Brasil também é o único setor da atividade cultural que não depende de subsídios públicos para existir e prosperar. Vende seus produtos para o Estado, principalmente livros didáticos, mas não depende da ação direta dele para suas atividades normais.

É preciso ressaltar, porém, que a não necessidade de subsídios públicos para a existência da indústria editorial não exime o Estado de ter uma política em relação ao livro, precisamente para garantir o acesso da maioria da população a este bem cultural essencial.

2. A dimensão da indústria do livro no Brasil mostra ao mesmo tempo sua força e suas debilidades. Em 1991, foi produzido no Brasil 28.450 títulos (entre 11 edição e reedições) e um total de 303.492.000 exemplares. Faturou-se, naquele ano, um pouco menos de US$ 900 milhões. Apenas como referência, esses números indicam uma produção editorial dez vezes maior do que a de Portugal e aproximadamente 20% menor do que a da França. Em números absolutos pode-se afirmar que é um setor que não tem um mau desempenho comparado com as indústrias editoriais de outros países. Mas, em termos relativos, o quadro é decepcionante: enquanto as editoras francesas produzem seis livros per capita por ano, no Brasil nosso índice cai para menos de dois livros per capita anual.

Uma das explicações para esta diferença reside precisamente na maneira como é tratada a questão das bibliotecas públicas.

Para se estabelecer alguns termos de comparação, apresentamos no quadro abaixo alguns dados do dispêndio do setor público na aquisição de livros para bibliotecas públicas em vários países do mundo, em 1991.

Nos Estados Unidos, a compra de livros para bibliotecas públicas é feita de maneira descentralizada. Entretanto, para um mercado que girou cerca de 15 bilhões de dólares em 1989, estima-se que 30% foi adquirido por bibliotecas públicas e particulares, universitárias e escolares. Para alguns segmentos, como o de livros técnicos e científicos, esse percentual de absorção pelas bibliotecas alcança até 90% da tiragem.
Enquanto isto, no Brasil, a compra total de livros para bibliotecas públicas, em 1991, não chegou a 1% do total da produção editorial.

PAÍS POPULAÇÃO DISPÊNDIO GLOBAL (US$) DISPÊNDIO PER CAPITA (US$)
Alemanha 77 milhões 98 milhões 1,12
Dinamarca 5,1 milhões 42 milhões 8,23
França 56 milhões 60 milhões 1,07
Holanda 15 milhões 63 milhões 4,02
Grã Bretanha 57 milhões 208 milhões 3,64
Espanha 39 milhões 130 milhões 3,33
Fonte: revista Lire, 13/03/92 e Câmara do Livro
Nota: Ainda que os dados não estejam suficientemente desagregados, à exceção da Espanha, essas cifras referem-se exclusivamente a compras para bibliotecas, excluindo-se os livros didáticos.

Essas informações colocam uma questão fundamental: a difusão da cultura sob a forma de livro, no Brasil, é extremamente elitizada, praticamente restrita a quem pode comprar livros. O grande instrumento democrático de difusão da leitura, que são bibliotecas públicas, simplesmente não existe como prioridade política para o governo.

Uma questão essencial, portanto, para o estabelecimento de uma política democrática para o livro no Brasil é o desenvolvimento do sistema de bibliotecas públicas.

Para que isto seja possível, é imprescindível que sejam consideradas as seguintes questões:

- A prioridade não é a da construção física de novas bibliotecas. Existe uma grande quantidade de equipamentos subutilizados ou mal utilizados, bibliotecas que podem ser reformadas, adaptadas ou reativadas. Não é preciso que as empreiteiras encontrem no sistema de bibliotecas mais uma das suas fontes de riquezas;

- A grande ênfase deve ser na descentralização e na autonomia das bibliotecas públicas para a compra e manejo de seu acervo. As aquisições devem ser feitas pelas próprias bibliotecárias locais, assessoradas por associações de amigos das bibliotecas e usuários. De qualquer forma, aquisições centralizadas decididas por alguma instância burocrática da administração, seja federal, estadual ou mesmo municipal, deve ser francamente combatida. Os leitores decidem o que querem ler, orientados e estimulados pelas bibliotecárias. A questão da autonomia administrativa também é séria. Hoje, uma legislação arcaica trata o livro como bem permanente, exigindo um enorme papeleio administrativo seja para a aquisição dos livros, seja para a baixa dos exemplares gastos pelo uso. Essa legislação (Código Nacional de Contabilidade) deve ser modificada.

- A mobilização da população para a questão das bibliotecas públicas é um ponto importante. Quando existe um sistema de bibliotecas que funciona, mesmo que precariamente, sua utilização é intensa. Exemplo disso são bibliotecas do município de São Paulo e dos municípios do ABC, adjacentes à capital. Mesmo com deficiências, o sistema funciona e o número de usuários é fantástico. Quando não existe bibliotecas, ou o seu acervo está tão desatualizado que não atrai mais ninguém, o número de freqüentadores é irrisório. Ao lado da atualização de acervos e melhoria dos serviços, é preciso um enorme esforço para fazer a população compreender que a biblioteca de sua comunidade está se transformando num fundamental centro de cultura, informação e lazer. Para que isso seja possível, é necessário estabelecer um intenso programa de reciclagem das bibliotecas e de todo o pessoal das bibliotecas públicas, corrigindo distorções e fazendo com que o bibliotecário seja um agente de cultura. informação e lazer e não um mero guardião de livros.

- A questão do financiamento desse programa tem que ser encarada com realismo. Não acredito que vinculações orçamentárias sejam o melhor instrumento de garantir dinheiro para a educação e a cultura, inclusive porque engessam o orçamento. A questão é política, do estabelecimento de uma prioridade específica para o assunto no âmbito do governo federal. Uma vez feito isso, e estabelecidas verbas adequadas, pode-se utilizar a capacidade de investimento do governo federal para estimular, através de convênios, vinculações de contrapartidas nos estados e municípios, que as administrações dos vários níveis se motivem para investir no sistema de bibliotecas. Por exemplo, se o governo federal decide aplicar um dólar per capita na aquisição de livros, essa aplicação, em cada estado e município, deve estar vinculada à aplicação de mais um dólar per capita por parte do governo estadual e outro dólar per capita pelo município. Cada uma dessas instâncias, por sua vez, pode estabelecer mecanismos próprios para o financiamento disso, seja através de incentivos fiscais, seja através de programas que mobilizem os usuários, as empresas locais, fundações etc., para que contribuam com as bibliotecas públicas. No que diz respeito à operacionalização de um programa descentralizado e dinâmico de aquisições, a Câmara Brasileira do Livro já tem desenvolvido, inclusive com algumas instâncias administrativas, o programa do checklivro, que permite absoluta transparência na atualização de acervos e uma enorme flexibilidade administrativa e prática. O cheklivro é um instrumento imaginado pela Câmara Brasileira do Livro inicialmente como forma de elevar o movimento das bienais do livro para as livrarias, depois de terminado o evento. A cada compra, o visitante da bienal recebia cheklivro equivalente a 10% do valor, que podiam ser usados em quaisquer livrarias do país. O sistema evoluiu para facilitar a aquisição de livros por parte das bibliotecas públicas. O Departamento Nacional do Livro, da Biblioteca Nacional, repassa as verbas de aquisição de livros para a CBL e emite, em conjunto com a mesma, o montante equivalente em cheklivros, que são enviadas para as bibliotecas do sistema. As bibliotecas podem então adquirir os livros diretamente nas livrarias locais, passando por cima da burocracia, fortalecendo as livrarias locais e aumentando a autonomia das bibliotecas locais.

3. O fortalecimento de um sistema de bibliotecas públicas descentralizado e eficiente, além de permitir o acesso da cidadania a uma massa essencial de informação, aliada ao lazer, terá certamente um efeito indutor à descentralização da indústria editorial, estimulando as editoras regionais.