Economia

Economista Paulo Nogueira Batista Jr. vem se destacando como estudioso dos problemas ligados à dívida externa

O economista Paulo Nogueira Batista Jr. vem se destacando há mais de dez anos como estudioso dos problemas ligados à dívida externa brasileira e como firme defensor de um posicionamento mais duro em relação aos credores do país.

Integrante da equipe do ministro Dílson Funaro, foi um dos principais responsáveis pela moratória da dívida externa promovida pelo governo Sarney em fevereiro de 1987.

Recentemente, Paulo Nogueira Batista Jr. apresentou uma proposta de combate à inflação com "âncora interna", ou "âncora patrimonial", baseada em uma tributação potencial sobre o capital privado. Este é o tema da entrevista concedida à Teoria & Debate.

A abordagem deste assunto torna-se particularmente importante neste momento, quando discutimos um programa de governo e o nosso candidato às eleições presidenciais se mantém como favorito nas pesquisas. Chegar à Presidência com uma política econômica clara é fundamental para o país e para o nosso partido.

Por que o combate à inflação não pode ser feito com medidas graduais, dispensando um choque ou algum programa mais duro?
A experiência mostra que inflações de grande dimensão são resolvidas com ataques frontais e não com políticas gradualistas. Quando a inflação alcança o estágio que alcançou no Brasil, é muito difícil imaginar que um programa gradualista possa ter um sucesso duradouro. Mas um ataque frontal não precisa ser decidido em circuito fechado. Pode e deve ser precedido de uma discussão política com a sociedade.

Isto supõe coordenação política. Há condições para isto no Brasil, neste ou no próximo governo?
Posso até vir a ser desmentido pelos fatos, mas não me parece que o governo Itamar reúna as condições políticas para tomar uma iniciativa coordenada que resolva o problema da inflação. Com a longa tradição inflacionária, as classes médias e as elites montaram um sistema bastante sofisticado e eficiente de convívio com a inflação. Alguns setores das elites, notadamente o sistema financeiro, conseguem até ganhar com ela. Para os donos do poder, a inflação não é um problema urgente. É um problema para as camadas mais pobres da população, sobretudo para os setores desorganizados. A inflação é um imposto cobrado pelo governo e pago por esses setores, que não têm acesso à moeda estrangeira ou à moeda indexada, às aplicações financeiras. Ela só se torna preocupante para o sistema político às vésperas de eleições. Fora isso, as elites brasileiras só estarão dispostas a um ataque frontal ao problema se, em algum momento, ele se agravar muito, se houver uma catástrofe monetária.

Se o programa que você imagina pressupõe negociação prévia, por que não apostar num acordo envolvendo uma prefixação geral ou outros instrumentos gradualistas? As câmaras setoriais, por exemplo, não teriam um peso importante?
Câmaras setoriais e políticas de preços e salários podem ter um papel importante, mas de caráter auxiliar. Se um eventual governo Lula enfrentar o problema com um programa gradualista, baseado em acordos setoriais de preços e salários, é muito pouco provável que obtenha êxito.

Da mesma forma que o gradualismo no Brasil tem uma sucessão de iniciativas derrotadas, os ataques frontais também têm. O gradualismo não oferece chances de corrigir o rumo, de fazer correções com mais mobilidade do que qualquer tipo de enfrentamento frontal?
Os cinco choques tentados desde o Plano Cruzado sofriam de um problema comum: foram feitos por um grupo restrito de economistas e advogados, reunidos em gabinetes fechados, nem sempre com tempo para examinar e pensar as questões envolvidas. É muito difícil que isso dê certo. A economia brasileira é muito complexa e são enormes as probabilidades de que se produzam erros graves de formulação. Por outro lado, é uma ilusão pensar que uma inflação da intensidade da inflação brasileira possa ser enfrentada com meias medidas. Inflações como a nossa ou mais altas são muito raras. Não chega a vinte o número de casos conhecidos em toda a história mundial, mesmo incluindo-se inflações recentes, como a da Rússia e a da Ucrânia. Nenhuma dessas hiperinflações desapareceu de forma gradativa. É verdade que é difícil generalizar a partir de tão poucos exemplos. Porém, mesmo incluindo-se casos de inflações graves, mas que não se configuraram claramente como hiperinflações, persiste a conclusão básica: a instabilidade só termina quando se produz uma descontinuidade, uma mudança abrupta na condução da política econômica. Foi o caso do México e de Israel nos anos oitenta, por exemplo.

Por que a hiperinflação é um fenômeno típico do século XX?
A inflação alta e prolongada representa a degeneração de um elemento central da organização monetária moderna: a moeda fiduciária, garantida e emitida pelo Estado de forma centralizada. O século XX se diferencia de forma muito clara dos séculos anteriores em termos de organização monetária. Até muito recentemente havia sistemas monetários em que ainda se preservava um vínculo entre moeda e padrões não-fiduciários, ou seja, moeda metálica, moeda de valor intrínseco. Quando se tem um sistema monetário organizado com base em moeda mercadoria, ou moeda metálica ou moeda papel conversível em moeda metálica, há uma limitação intrínseca à possibilidade de expandir os meios de pagamento. Através de um processo lento e gradual, desenvolvido ao longo de séculos e concluído no século XX, pouco a pouco o sistema monetário se desvinculou dessa base metálica, tornando-se cada vez mais um sistema sem lastro. Além disso, o Estado foi assumindo progressivamente o monopólio da emissão de moeda primária, retirando de emissores privados o direito de criar base monetária. Após a grande depressão dos anos 30, com o colapso do padrão ouro, configurou-se o sistema monetário moderno, tal como nós o conhecemos hoje. Ele tem duas características: monopólio da emissão primária de moeda pelo Estado, ou pelo Banco Central público, e a total ausência de lastro metálico. Nos séculos anteriores, houve episódios de inflação mais alta, em que o Estado, por alguma emergência, suspendeu ou quebrou temporariamente o vínculo entre emissão da moeda e o seu lastro metálico, criando moeda não-conversível. Foi o caso dos assignats, na Revolução Francesa, e dos continentals, na guerra de Independência dos EUA. O que era episódico tornou-se regra em nosso século, abrindo caminho para processos inflacionários de intensidade e duração nunca vistas até então. Quando a inflação se torna crônica, muito alta e intensa, instala-se na sociedade uma desconfiança generalizada e arraigada na moeda que o Estado emite, na sua capacidade de garantir a estabilidade pelo menos relativa da moeda, na sua capacidade de atuar, nos mecanismos de que dispõe, no próprio Banco Central. Mesmo quando se tomam medidas corretas, não se consegue convencer a sociedade de que elas podem ser eficazes, nem de que serão sustentadas. Como resultado, as medidas tornam-se extraordinariamente custosas em termos de recessão e desemprego. Ao produzir esses efeitos colaterais anormalmente elevados, pela incapacidade de reverter as expectativas, a ação do Estado, na verdade mina o esforço de ajustamento e derrota a si mesmo. É o caso típico da perda de receita tributária devido à queda da atividade produtiva. Além disso, no caso de inflação muito alta a tentativa bem-sucedida nunca é a primeira. O histórico de insucessos gera uma profunda desconfiança em cada nova iniciativa. O processo avança para uma crise de confiança no Estado nacional que emite aquela moeda. É nesse ponto que estamos já há alguns anos. No Brasil acabou o crédito do Estado. Ninguém empresta voluntariamente ao setor público, a não ser por prazos muito cultos.

Quais os fundamentos da sua proposta?
A partir deste diagnóstico geral, há duas linhas de combate à inflação. Uma é a que ficou conhecida no Brasil como dolarização. A outra, que eu considero preferível, é estabelecer uma âncora interna para o programa de estabilização. A origem das duas em termos de diagnóstico é muito parecida. O que é a dolarização? Reconhecido o colapso da confiança na moeda estatal, busca-se uma camisa-de-força, uma âncora, que é garantida por uma agência externa. No caso da América Latina toma a forma de uma vinculação com o dólar, como é notoriamente o caso da Argentina. Em outras regiões do mundo pode ser o marco alemão. Encontra-se na ligação com a moeda estrangeira, na subordinação à moeda estrangeira, um elemento de restauração da ordem monetária que o Estado desacreditado não consegue garantir por si só. Essa é a filosofia básica da dolarização. Compartilho com os partidários da dolarização a avaliação de que só será possível avançar no rumo de uma correção do problema da inflação se houver disposição do Estado de aceitar certas limitações no campo monetário, na forma de regras garantidas por uma reforma institucional. Ninguém acreditará num programa de estabilização que não venha com salvaguardas. E essas salvaguardas precisam ter respaldo em algum mecanismo de controle externo ao poder público desacreditado. Contudo, não me parece conveniente que a instância externa ao Estado seja também externa ao país. Isso implica perda de soberania nacional e gera relações de dependência no campo monetário que são muito difíceis de desfazer. O processo de estabilização necessita de salvaguardas externas ao Estado, mas que não devem ser buscadas no exterior. Elas devem se basear numa instância interna, que não pode ser o poder público. Se a garantia não pode vir do poder público, ela tem que vir da sociedade civil, e é conveniente que, da sociedade civil, sejam destacados aqueles segmentos que estão hoje comprometidos com a instabilidade ou estejam indiferentes à estabilização. Em suma, é necessário encontrar um mecanismo institucional que torne os proprietários dos meios de produção solidários e comprometidos com a estabilização. Sabemos que os empresários não se distinguem por espírito público, e não apenas no Brasil. Não é tarefa social deles ter espírito público. Eles têm que lutar pelos seus interesses particulares. É o que o sistema exige deles. A idéia central, portanto, é promover uma reforma institucional na área monetária que envolva o setor privado, que subordine o interesse privado à estabilização. Esta é a leitura que eu faço de uma série de experiências históricas. Em diversos casos, através de uma negociação, uma instância privada foi envolvida no processo de reorganização monetária. Essa instância passou a funcionar como um contrapeso ao Estado desacreditado. Isso acontece porque, muitas vezes, o país que é atingido pela crise monetária não tem condições internacionais e políticas de buscar um suporte externo adequado. Por exemplo, quando os norte-americanos fizeram a guerra de Independência tiveram um problema inflacionário gravíssimo, talvez o mais grave até então conhecido. Eles tiveram essa inflação durante a guerra de Independência e nos anos seguintes, na moeda-papel sem lastro emitida por eles para financiar a guerra. Para reorganizar o sistema monetário, eles não podiam buscar apoio da potência hegemônica na época, a Inglaterra, com quem guerreavam. Também não podiam buscar apoio eficaz na rival, a França: embora ela tivesse interesse na derrota inglesa, estava enfrentando graves problemas financeiros, que levariam à Revolução em 1789. Foi preciso buscar dentro dos EUA alguma forma de salvaguarda, e tinha que ser externa ao Estado. Porque o Estado não apenas provocara uma inflação sem precedentes, como havia entrado em moratória em grande parte de sua dívida, acumulando obrigações vencidas com diversos segmentos do setor privado. O primeiro movimento dos norte-americanos foi regredir à moeda metálica. Mas logo se deram conta de que isso seria insuficiente para atender às necessidades de circulação. Criaram então o que seria depois conhecido como o primeiro banco central dos EUA, um banco que passou a emitir notas a partir de uma estrutura institucional privada. Apesar de incorporado pelo Congresso, era um banco emissor privado, The First Bank of United States. Tratava-se de uma concessão com prazo determinado, com participação do Estado no capital, mas minoritária, e controle do banco pelos acionistas privados, dentro das regras estabelecidas em estatuto. Assim, foi possível colocar em circulação uma moeda que teria aceitação. Um exemplo mais recente é a hiperinflação da Polônia nos anos 20. Naquele momento, os poloneses tinham diante dos seus olhos o exemplo austríaco, onde a estabilização se baseara em um grande empréstimo (grande para o tamanho da Áustria) da Liga das Nações. Em troca, a Liga obteve direito de interferência nas questões internas da Áustria num grau inimaginável, com o controle do Banco Central, o controle das finanças públicas e a presença de um representante residente da Liga com poderes enormes na condução da política econômica. Os poloneses não quiseram seguir esse caminho. Após mais de cem anos de ocupação por potências estrangeiras, com a partilha do país entre a Rússia, a Alemanha e a Áustria, a Polônia recuperara sua independência depois da Primeira Guerra Mundial. Era um país extremamente zeloso de sua autonomia e decidiu partir para uma estabilização com recursos internos. Não havia possibilidade de partir do Banco Central público, emissor do marco polonês, totalmente desacreditado. O governo criou então o estatuto do chamado Banco da Polônia, Bank Polski, que emitiu uma nova moeda. Era um banco de capital privado, organizado de acordo com regras estabelecidas pelo poder público, e foi muito bem-sucedido na eliminação da hiperinflação. Em parte porque ele tinha um estatuto que garantia a sua autonomia e um caráter privado que o tornava crível aos olhos da população, desconfiada de um Estado que havia levado ao limite o processo de deterioração da moeda que ele emitia. Esses são apenas dois exemplos. Há diversas outras experiências desse tipo.
Qual seria propriamente o lastro do banco emissor privado?
As experiências são variadas. No caso polonês, o lastro tomou a forma de moeda de liquidez internacional ou divisas consideradas estáveis. O banco tinha obrigação de acumular uma certa reserva nessa forma, contra a emissão que ele fazia.

E como ele obteve esse lastro?
A integralização do capital por parte de acionistas foi feita obrigatoriamente em ouro ou moedas fortes.

Os acionistas eram cidadãos poloneses, empresas grandes, proprietários?
Isso.

E fizeram isso compulsoriamente?
Não, no caso polonês a subscrição foi semivoluntária. Houve muita pressão do governo sobre certos segmentos do setor privado, porque havia alguma relutância. Mas foi formalmente uma subscrição voluntária. O novo banco foi construído com liquidez intencional do setor privado polonês.

Com o dinheiro que eles mantinham no exterior?
Sim. No caso alemão, também nos anos 20, o lastro era diferente. Foi basicamente uma hipoteca sobre terra.

Estatal?
Privada, terra privada.

O que significa hipoteca sobre terra? Como isso dá lastro a um banco?
O caso alemão é um exemplo entre vários em que foram usados ativos reais para dar alguma segurança para a emissão de uma determinada moeda. Na época considerava-se inconveniente ou impossível lastrear a emissão em ativos de liquidez internacional, como na Polônia. Estabeleceu-se então sobre as empresas agrícolas e sobre as empresas industriais, comerciais e financeiras a obrigação de participar de um novo banco emissor, o Rentenbank. Esta obrigação tomou a forma de uma espécie de hipoteca, denominada marco-ouro. Tomava-se o valor da terra e de outros ativos, tal como havia sido calculado para fins de um empréstimo de emergência que o governo impusera logo antes da Primeira Guerra Mundial. Estabeleceu-se então um percentual, 4% desse valor, que se transformou numa obrigação da empresa para com o banco.

Era um direito do banco sobre as empresas...
... que se tornavam acionistas do banco na medida dessa sua contribuição. No caso alemão é importante ter em mente o quadro político e econômico em que isso foi feito. Definiu-se que os empresários contrairiam uma obrigação com o banco emissor. Essa obrigação foi estabelecida compulsoriamente. Sobre esse valor, equivalente a 4% das terras e outros ativos, as empresas tiveram que gerar um fluxo de rendimentos pagos ao banco, a uma taxa de juro de 6% ao ano. Isso foi possível politicamente porque a Alemanha vivia uma situação de gravíssima emergência nacional: hiperinflação catastrófica, movimentos revolucionários comunistas - na Saxônia e na Turíngia, movimentos revolucionários de direita na Baviera, inclusive a tentativa de golpe nazista, movimentos separatistas na Renânia, estimulados pelos franceses, que é a principal região industrial do país, o Ruhr, ocupada por franceses e belgas. Era muito concreto e imediato o risco de que o país seria esfacelado do ponto de vista social e territorial. Nesse contexto é que se estabeleceu uma negociação envolvendo os grandes proprietários rurais, indústria, comércio, finanças, o Estado e os partidos políticos, dando origem a esse sistema emissor paralelo ao Reichsbank. Da negociação resultou um compromisso das classes proprietárias com a solução do problema da inflação.

Nestes casos o país convive então com duas moedas?
Não necessariamente. Na Polônia houve a substituição da moeda pública por uma moeda privada, emitida pelo Bank Polski.

Na seqüência houve inflação na moeda pública?
No caso polonês ela desapareceu, substituída pela nova moeda. No caso alemão houve convívio das duas moedas, o marco papel e o Rentenmark, emitido por esse banco privado. A taxa de câmbio entre as duas moedas foi mantida constante e não houve inflação na moeda pública.

Nessa conversão não há perdas para setores da sociedade? Como é que as coisas se passam do ponto de vista distributivo?
Aqui no Brasil também foi discutida uma proposta de sistema bimonetário, apresentada por André Lara Resende. Um dos riscos deste tipo de proposta é que a presença de uma moeda paralela mais forte desencadeie uma aceleração inflacionária no cruzeiro, penalizando todos aqueles que recebem em cruzeiros ou têm ativos em cruzeiros. O resultado seria um aumento no grau de concentração da renda. Mas isso não ocorre necessariamente num sistema bimonetário. Para evitar esse efeito, há uma condição básica: estabelecer uma taxa de câmbio fixa entre a moeda antiga e a nova. Por que a proposta de currency board com duas moedas gera esse efeito? Porque a taxa de câmbio entre o cruzeiro e a moeda de emissão do board, a moeda dolarizada, é livre, é flutuante.

No caso da sua proposta de âncora interna não seria?
Não necessariamente haveria duas moedas. Se houvesse, a taxa de câmbio entre as duas seria fixa. Se existe inflação elevada com uma moeda desacreditada, instável, e se introduz uma outra que é lastreada, haverá uma queda brusca na demanda real pela moeda antiga e aí se torna praticamente impossível evitar que a inflação suba na moeda antiga. Caso se queira preservar a moeda antiga, é preciso amarrá-la à nova, para que a qualidade superior da nova se transmita de alguma forma à moeda antiga. Mas não creio que esse seja necessariamente o melhor sistema. Pode ser melhor partir de imediato para uma moeda única.

Porém, se também os direitos do público em cruzeiros junto ao sistema financeiro e junto ao Estado tiverem que ser honrados pelo banco privado, ele não estará exposto a uma perda de credibilidade por assumir um passivo muito grande logo num primeiro momento?
Não, porque o novo banco emissor de capital privado terá que assumir, na verdade, apenas o passivo monetário do Banco Central, a base monetária.

Não precisaria assumir a dívida interna também?
Não. Essas obrigações continuariam a ser passivo do Tesouro, ou do sistema financeiro que emitiu os depósitos. Seria transferido apenas o passivo monetário do Banco Central para o novo banco e este teria que ser compensado por isso pelo Banco Central.

Compensado de que forma? O BC transferiria para esse novo banco suas reservas de dólar?
Transferiria reservas equivalentes à base monetária ou então assumiria uma dívida em determinadas condições com esse banco, a ser paga na moeda do banco, que passaria a ser a moeda de curso legal na economia.

Nesse caso, se alcançaria o objetivo do ataque frontal à inflação, uma queda brusca e imediata?
Se o problema é a desconfiança geral e arraigada na capacidade do Estado de se autodisciplinar enquanto emissor de moeda e gestor de contas públicas, a única forma de se enfrentar essa desconfiança eficazmente é fazer o Estado abdicar por algum tempo do direito de emitir moeda primária ou restringir severamente o seu direito de emitir moeda primária. Uma forma muito dura de se fazer isso seria criar um banco emissor privado, garantido por ativos privados, tendo a característica de emitir uma moeda cujo sucesso teria efeitos positivos sobre os interesses dos seus acionistas e cujo fracasso teria efeitos negativos sobre os interesses dos acionistas, e dar a esse banco o monopólio de emissão de moeda primária durante um prazo determinado, digamos dois ou três anos. Durante esse período, o Banco Central ficaria impossibilitado de exercer a função de autoridade monetária, de emissor de moeda primária, como em alguns países no passado. É uma medida extremamente dura. Se por hipótese se chegasse a isso no Brasil, teríamos uma medida drástica como poucas em matéria de controle da inflação. O que se está supondo é que o poder público estaria disposto a propor um conjunto de leis que determinariam a transferência por prazo determinado de uma prerrogativa central do Estado para uma instituição não-estatal. Dificilmente um Estado faz isso, a não ser em condições de extrema emergência. Por que ele faria isso? Porque essa seria a única forma de sinalizar para a sociedade que ele está de fato disposto a eliminar a inflação. Caso se chegue a isso, o resultado do ponto de vista das expectativas seria uma reversão dramática. Reversão dramática porque se perceberia imediatamente que o Estado não teria outra alternativa senão viver sem a inflação, porque teria perdido a condição de se financiar monetariamente de forma ilimitada. Pode-se contra-argumentar: mas se foi o Estado que instituiu esse novo sistema monetário, o Estado poderá alterá-lo. É verdade, mas o que costuma acontecer nessas experiências é que se colocam, no estatuto do novo banco e nas leis que regem esse novo sistema monetário, medidas de proteção contra alterações. Não quer dizer que as regras não possam ser alteradas. Podem ser alteradas por iniciativa da assembléia de acionistas. Mas tem que haver concordância do poder público. Podem ser alteradas por iniciativa do poder público, mas tem que haver a concordância da assembléia de acionistas. Cria-se um mecanismo que admite a mudança, quando ela se torna necessária, mas ao mesmo tempo protege o banco contra o arbítrio do governo do momento, e também protege o banco e o estatuto criado pelo poder público do arbítrio dos acionistas privados. Esse é um modelo recorrente nessas experiências. Inclusive porque ninguém imagina que se vai transferir uma prerrogativa do poder público a um conjunto de interesses privados sem estabelecer regras e restrições precisas.

Essa transferência deveria ser feita mediante uma definição jurídica muito precisa e esse novo Banco Central teria apenas algumas prerrogativas, muito limitadas. É isto?
Exato.

Ele não teria outros direitos além da emissão de moeda?
Não. Ele apenas funcionaria como uma espécie de garantia, externa ao Estado, de que o Estado não se financiaria com emissão de moeda de forma ilimitada.

Nesse quadro, como ficaria a dívida pública? Haveria alguma medida como alongamento compulsório dos prazos?
Esse é um ponto importante. O princípio de não se fazer nada em circuito fechado traz implicações para os tipos de instrumentos que você pode usar. Não se pode propor o confisco de ativos, nem o congelamento geral de preços. É bom abdicar de tais instrumentos. A dívida interna hoje é pequena, cerca de 8% do PIB. Um pedaço dela, digamos a metade, em condições normais seria a base monetária e se transformaria naturalmente em moeda. São os recursos hoje nos fundos e que, com inflação baixa, nem compensaria aplicar. A outra parte são recursos que, num cenário de maior confiança, seriam aplicadas a prazo mais longo. Seria poupança e não moeda. Na hipótese de se reverterem favoravelmente as expectativas da inflação haveria uma tendência do público em aumentar sua demanda real por moeda primária e depósitos à vista. No vencimento de parte destes títulos, o governo teria que entregar moeda. Mas ele já não teria poder de emitir. Isso não significa que ele teria que gerar um excedente fiscal para recomprar a dívida que vai sendo liquidada voluntariamente pelo público, porque o banco emissor privado colocaria moeda em circulação, acumulando créditos contra o governo central, isto é, Tesouro e Banco Central. É assim que a moeda entraria em circulação.

Como?
O banco emissor concederia empréstimos ao Tesouro e ao Banco Central, que se tornariam devedores do banco privado.

O banco emissor teria então a possibilidade de financiar o governo e o Banco Central? Quais as regras para isto?
No próprio ato de criação desse banco se fixariam limites muito rígidos, calculados com base em uma estimativa desses resgates de títulos e da demanda real por moeda em condições de estabilidade. Poderia ser uma emissão "final", dada ao Estado com o propósito específico de recomprar parte da dívida interna, vinculada a isso. Estes são detalhamentos que podem ser modificados, podem surgir formas mais interessantes na discussão. Eu colocaria moeda em circulação dessa forma, através do Banco Central e do Tesouro, que estariam obrigados a utilizá-la única e exclusivamente para recomprar a dívida interna, com um monitoramento para garantir que fosse feito assim. No processo, o Tesouro teria um alívio financeiro, trocaria a dívida que hoje precisa ser rolada constantemente, a um custo elevado, por uma dívida de prazo mais longo e mais barata. Poderia ser estabelecido no estatuto que o prazo dessa dívida seria pela duração da concessão, dada pelo poder público ao banco privado. Seria um prazo muito mais longo do que a dívida no mercado hoje e com uma taxa de juro, em termos reais, muito mais baixa do que a que vigora hoje. Estaria se produzindo um alívio para o governo. Ao mesmo tempo, estaríamos restabelecendo a normalidade monetária, substituindo-se a moeda indexada por uma moeda crível, não-indexada e única. Estaria se reunificando o sistema monetário nacional, que hoje é um sistema dual, com a moeda dos ricos, indexada ou dolarizada, e a moeda dos pobres, o cruzeiro real. Ao fazer isso, recriaria-se uma única moeda nacional para todos. Seria uma moeda de emissão privada por prazo determinado, e não como sistema permanente.

Você falou em dois ou três anos?
Talvez uns três anos, a discutir. O que determina o prazo é a avaliação sobre o tempo que o setor público precisa para se reorganizar financeiramente, administrativamente, para fazer as reformas de fundo, e inclusive a reforma do Banco Central. Esse espaço de tempo criado pelo novo sistema monetário teria que ser aproveitado para reorganizar o Banco Central público e recuperar a sua capacidade de gerar confiança, tornando-o mais independente do poder público e também mais independente do sistema bancário privado, que hoje comanda, influi excessivamente em certas áreas do Banco Central. Teria que ser um Banco Central muito mais sólido, muito mais comprometido com o regime de estabilidade do que é o Banco Central do Brasil hoje. E isso não se faz do dia para a noite.

A proposta pressupõe o equilíbrio das contas públicas?
Não, mas ela força o equilíbrio das contas públicas, pelo fato de cortar o financiamento monetário.

E como conseguir o comprometimento do setor privado com esse projeto de âncora interna?
O importante é criar uma solidariedade que hoje não existe entre os proprietários dos meios de produção e o processo de estabilização. Como se faz isso? Qual o mecanismo? Há várias formas. Pode ser que se consiga imaginar uma forma melhor, mas a que me parece mais eficaz é a que vou delinear aqui. A participação no banco emissor seria compulsória para todas as empresas privadas brasileiras, acima de um determinado tamanho, medido pelo faturamento. Seria estabelecida uma espécie de hipoteca sobre os ativos fixos das empresas produtivas do país. Sobre os terrenos, sobre as instalações, equipamentos, galpões etc. No Brasil não existe imposto sobre os ativos das empresas, embora se tenha cogitado e ainda se cogite de introduzi-lo. Não há um cadastro, portanto. Como avaliar corretamente esses ativos? Um mecanismo extremamente engenhoso foi sugerido pelo economista francês, o Prêmio Nobel Maurice Allais. Allais, que em O Imposto sobre o Capital e a Reforma Monetária, propõe uma forma de instituir um imposto sobre o capital que pode ser aproveitada. O mecanisno é o seguinte: as empresas teriam que declarar o valor dos seus ativos fixos, os seus ativos tangíveis. Essa declaraão não seria contestada pelo poder público, mas seria divulgada para o mercado, acompanhada de uma descrição dos bens envolvidos. Feito isso, qualquer pessoa que se apresentasse teria o direito de comprar o bem por um valor equivalente a, digamos, 150% do valor declarado pelo proprietário. Se o proprietário for obrigado a vender nessas condições, não poderá se queixar, pois terá vendido por um valor 50% maior do que o declarado por ele para fins de criação da hipoteca que dá origem ao capital do banco. Para evitar ofertas frívolas, bastaria estabelecer que uma oferta só poderia ser feita com um depósito que representasse um percentual significativo da transação pretendida. Por outro lado, o proprietário poderia evitar a venda desde que corrigisse o valor declarado e pagasse uma multa de, digamos, 10% desse valor. Dessa forma, estaria criado um mecanismo pelo qual o próprio mercado policiaria avaliações falsas ou errôneas, obrigando os proprietários a declararem o valor real dos seus ativos. Com base neste cadastro seria estabelecido o valor da obrigação da empresa para com o banco emissor. Essa obrigação geraria um fluxo de rendimentos para o banco. O banco estaria recebendo uma parte dos rendimentos do ativo, do capital produtivo privado. É importante que o lastro seja exclusivamente privado para descontaminá-lo da perda de credibilidade do setor público. E esse banco privado vai ser gerido pelos seus acionistas, que participariam de acordo com sua contribuição. Para evitar que o banco caísse nas mãos de grupos de poder privado e passasse a ser controlado oligarquicamente, poderia se recorrer a uma regra que foi aplicada em algumas experiências passadas: estabelecer um teto bastante baixo para a participação de cada empresa no capital votante. Com base nesse lastro em ativos reais, o banco emitiria obrigações monetárias e não-monetárias. A ligação entre o ativo fixo e as obrigações monetárias poderia se fazer através da emissão de títulos do banco, que poderíamos chamar de títulos intermediários. Esses títulos seriam como a representação financeira do ativo real do banco. A moeda seria conversível nos títulos intermediários. Conversível em títulos remunerados e indexados, cuja remuneração estaria garantida pelo fluxo de rendimentos pagos pelas empresas ao banco. Esse título intermediário seria o único título de curto prazo indexado que subsistiria no novo sistema monetário. Assim, se a moeda for estável, a demanda por ela será alta e a demanda pelos títulos intermediários será baixa. O passivo monetário, sem custo financeiro para o emissor, preponderará sobre o passivo não-monetário remunerado. Em conseqüência, o lucro do banco tenderá a ser mais alto do que em uma situação em que existisse inflação na nova moeda, pois nesse último caso a demanda real pela moeda seria mais reduzida e mais alta a demanda por títulos intermediários, aumentando o custo do passivo do banco emissor. Se o lucro distribuído aos acionistas em cada período for inferior aos pagamentos por conta da hipoteca especial, a hipoteca se tornará, no todo ou em parte, um imposto sobre ativos. Gostei de uma expressão que Bresser Pereira usou quando eu expliquei isso a ele: o lastro em ativos reais corresponde, na verdade, a um imposto potencial sobre o capital, um imposto que só se torna efetivo quando a nova moeda não encontra aceitação e é convertida nos títulos intermediários.

Como você vê tudo isso num governo Lula?
Lula representa a parcela mais pobre da sociedade, aqueles que pagam o custo da inflação, sofrem com o apartheid monetário que existe no país hoje. Essa proposta é uma tentativa de acabar com o apartheid monetário, reunificar o sistema monetário. Isso beneficia os que pagam o imposto inflacionário, os que têm interesse em eleger Lula. Mas esta é uma idéia que pode encontrar resistências na esquerda. Na Alemanha foi assim, as esquerdas resistiram muito a esse tipo de idéia, relutaram em aceitá-la. E é fácil entender o motivo: ela representa a privatização de uma prerrogativa central do poder público, ainda que de forma parcial e temporária. Mas, por outro lado, ela tem um conteúdo que combina com o pensamento de esquerda: é uma reforma monetária lastreada em um imposto potencial sobre o capital. Do ponto de vista do debate ideológico, ela tem aspectos paradoxais, que podem atrair e repelir a esquerda. Por isto é indispensável fazer uma discussão aprofundada de todos os seus componentes, inclusive para aprimorá-los e adequá-los com mais precisão ao quadro brasileiro de hoje.

Carlos Eduardo Carvalho e Fernando Haddad são membros do Conselho de Redação de T&D.