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Uma política de segurança pública tem que entender que o crime organizado é de direita

O PT descobriu recentemente a necessidade de discutir uma política de segurança pública. A razão mais imediata disso é o fato de que neste ano poderemos ganhar as eleições para a Presidência da República e para os governos de vários estados. Esta é uma razão de peso. Suficiente para justificar a entrada da questão na nossa pauta de discussões, mas não é a única. A disseminação da criminalidade conduz a uma situação em que os direitos democráticos dos trabalhadores são profundamente violados. Basta ver o que era há dez ou quinze anos a organização dos moradores das favelas do Rio de Janeiro e a verdadeira caricatura que ela é hoje. Parte significativa das associações estão controladas - por intimidação, por cooptação, ou por ambas as formas - pelos traficantes de drogas, que articuladas com policiais corruptos, deixam um rastro de violências, arbitrariedades e assassinatos.

Mas não é só no controle de um grande número de entidades representativas que se dá o caráter nefasto da ação da criminalidade nas comunidades carentes. São inúmeros os casos em que moradores de favelas sofrem profundos constrangimentos pela ação dos criminosos. São os tiroteios entre quadrilhas ou entre elas e policiais na porta das casas. São as rixas ou problemas pessoais nas comunidades "arbitrados" pelos traficantes, que em arremedos de tribunais matam, expulsam das comunidades, humilham ou espancam pessoas (ano passado, por exemplo, os chefes do tráfico no morro do Borel, na Zona Norte do Rio, "castigaram", com tiros na palma das mãos, 21 menores que cometiam pequenos furtos nas redondezas).

É, ainda, o fato de que em muitas comunidades carentes, para que o Poder Público possa implantar um serviço ou realizar uma obra qualquer de interesse da população local, tem que contar com a aquiescência dos traficantes. Assim, se numa comunidade estes consideram, por exemplo, que a instalação de telefones públicos vai diminuir sua segurança, possibilitando denúncias, os destroem pura e simplesmente.

Confundir este quadro com auto-organização da população ou com alguma espécie de contrapoder, alternativo ao do Estado burguês, como ensaiam alguns, é não entender nada do que está se passando. O crime organizado é de direita, a quem - mesmo que de forma indireta - favorece. Mais ainda: toda vez que se imiscui diretamente na política, o faz ao lado da direita. A situação hoje existente nas comunidades carentes do Rio de Janeiro, além de violar cotidianamente direitos democráticos mais elementares dos trabalhadores, contribui, e muito, para a sua desorganização.

Não desvinculado disso tudo, está o surgimento de uma tendência à "banditização" da política no Rio de Janeiro. Para que se tenha um exemplo, basta dizer que, nesta legislatura, praticamente todos os deputados estaduais do PT no Rio já sofreram ameaças de morte, tendo sido obrigados a requerer proteção policial. Os responsáveis pelas ameaças não são desconhecidos: são os grupos de extermínio e quadrilhas formados por policiais, alcaguetes e lumpens.

Depoimento de um dos integrantes do grupo de extermínio responsável pela chacina de Vigário Geral apontou a ligação do grupo com deputados e fez menção, inclusive, a uma caixinha nutrida por recursos oriundos da extorsão de bandidos para campanhas eleitorais de indivíduos (em geral policiais ou ex-policiais) que, uma vez eleitos, pudessem representar uma retaguarda para a quadrilha.

Estamos longe da situação a que chegou a Colômbia, onde se mata cotidianamente políticos, juízes e jornalistas que ousam enfrentar a máfia do narcotráfico. Mas, entre outras tendências que interagem no atual quadro político brasileiro, esta - a da "banditização" da política - existe e deve ser considerada. Se ela vai seguir crescendo ou não, é outra história. Mas é também uma história que depende, em grande medida, do enfrentamento que seja dado ao problema.

O crime "não-organizado"

O crescimento de um tipo de crime menor, que chamaremos aqui de "não organizado" (pequenos furtos ou roubos, assaltos em ônibus ou em residências, furtos de acessórios de automóveis etc.), é uma realidade incontestável. As razões mais imediatas disso são a deterioração das condições de vida de boa parte da população, o aumento da miséria e do desemprego e a cada vez mais desigual distribuição de renda. Freqüentemente o produto desses pequenos crimes - cometidos pelos chamados "pés-de-chinelo" - é dividido entre seus autores e policiais encarregados do policiamento preventivo nas áreas em que os crimes são cometidos.

É preciso eliminar essa cumplicidade - que representa inclusive um estímulo a que mais crimes sejam cometidos. É preciso, também, que os critérios para a distribuição do policiamento ostensivo sejam revistos. Hoje, pelo menos no Rio de Janeiro, muitas vezes eles se orientam mais pelas propinas pagas a coronéis da Polícia Militar por empresários e comerciantes, que "compram" a presença de PMs nos locais que lhes interessam, do que pela incidência de ocorrências. Não há um trabalho integrado entre a PM - que faz o policiamento ostensivo e preventivo e a Polícia Civil - que faz os registros dos crimes e, portanto, tem o mapeamento dos locais de sua maior incidência.

Esse tipo de crime "menor" pode ser combatido com mais sucesso do que é feito hoje em dia. Mas - não nos iludamos! - enquanto permanecer a atual crise social sua incidência não vai cair de forma significativa.

Já no chamado "crime organizado" - grupos de extermínio, narcotráfico, roubos de carga, roubos e furtos de automóveis, grandes assaltos -, a participação de policiais, do alto escalão, inclusive, é decisiva. Estimativas feitas por policiais vinculados ao PT estimam que de 20% a 30% dos integrantes da polícia do Rio de Janeiro têm relação direta com alguma das formas de manifestação desse "crime organizado" (atenção: não estamos falando aqui da chamada "pequena corrupção policial", da qual participaria a maioria da corporação).

É interessante atentar para o fato de que, ao contrário daqueles delitos cometidos pelos "pés-de-chinelo", o "crime organizado" é, paradoxalmente, mais vulnerável a um combate enérgico, desde que haja vontade política para tal. Pelo menos por enquanto, quando ainda não se transformou num contrapoder dentro da sociedade. Senão vejamos.

Os carros roubados ou furtados vão, em sua esmagadora maioria (a própria polícia estima que em 80%), para os ferros-velhos, que têm, praticamente todos, policiais como sócios, conforme a imprensa já denunciou fartamente, dando nomes e endereços. Aqui, vale um exemplo elucidativo: nos últimos dez dias de dezembro de 1992, os ferros-velhos fecharam suas portas e deram férias coletivas a seus empregados. Pois bem, naquele período os roubos e furtos de automóveis diminuíram para 20% da média.

As cargas roubadas têm como destino receptadores conhecidos, cujos nomes cansam de aparecer nos jornais.

Os maiores seqüestradores são também conhecidos - e, com freqüência extorquidos - por policiais.

Da mesma forma, não é difícil levantar a chegada das drogas às bocas-de-fumo nas favelas e, inclusive, identificar os grandes traficantes, que (não nos iludamos!) não são os "Escadinhas" da vida.

Mas o maior problema para uma investigação a fundo sobre o "crime organizado" é o fato de que, na esmagadora maioria das vezes, há policiais (e do alto escalão) envolvidos. Envolvidos na execução dos negócios sujos, envolvidos na extorsão dos criminosos ou, ainda, envolvidos em ambas as atividades (com freqüência, os mesmos policiais que cometem extorsão contra os traficantes nas favelas são os que lhes vendem armas contrabandeadas).

É esse envolvimento que explica o fato de a maior parte dos integrantes da cúpula policial do Rio ter um patrimônio muitíssimas vezes maior do que seria possível se vivesse somente de seus salários na polícia.

Por isso, ao se falar de "crime organizado", é preciso desmistificar coisas como o "Comando Vermelho" ou o "Terceiro Comando". É verdade que as quadrilhas existem e que têm muitas vezes armamentos sofisticados (que, é bom que se diga, na maioria das vezes sequer sabem utilizar de forma adequada). Mas a imprensa e a polícia exageram na importância disso. Por ignorância e para vender jornais, num caso. E para obter melhores condições de trabalho, esconder os reais donos do negócio do narcotráfico ou, ainda, conseguir um melhor preço na extorsão dos traficantes, no segundo.

Presos apresentados como "de alta periculosidade e chefões do tráfico" são, em sua maioria, jovens de não mais de vinte anos. Eles são o elo final - e menos lucrativo - da cadeia do narcotráfico. Não têm capital nem capacidade gerencial para negociar no exterior com os cartéis internacionais as grandes partidas da droga e são facilmente substituíveis - por outros jovens da comunidade, de igual ou menor idade - uma vez presos ou mortos. Além disso, vivem permanentemente sendo presos clandestinamente e extorquidos ("mineirados", como se diz no Rio) por policiais, de diferentes corporações e delegacias, que acabam ficando com a parte do leão dos lucros que teriam esses traficantes do varejo, de "final de linha".

Por isso tudo, uma política séria de combate ao crime organizado tem que começar por identificar quem é quem nesse filme. E aí, certamente, haverá surpresas pois, em vez dos "Escadinhas", "Bill" e outros que tais, vão aparecer muitos personagens hoje acima de qualquer suspeita.

Esse quadro sucinto nos mostra um perfil da polícia que é muito mais grave do que a simples existência de "maus policiais" na instituição. O presidente da Associação de Moradores de Vigário Geral, Nahildo Ferreira de Souza ele próprio, pai de um dos jovens assassinados na chacina naquela favela -, disse a um jornal significativo: "sei que existem bons policiais; só não sei onde estão eles..."

Na verdade, dizer somente que há "maus policiais" é pouco. Não representa a real situação da instituição, pelo menos no Rio de Janeiro (e, convenhamos, a situação não deve ser tão diferente assim nos demais estados). O fato é que a polícia está podre. É preciso ser reformada de alto a baixo.

O problema do Exército

Não se deve cair, no entanto, no canto de sereia daqueles que apontam como saída - mesmo que provisória - a transferência para o Exército da responsabilidade pela manutenção da segurança pública, ainda que esse discurso, pelo menos no Rio, encontre eco em parte significativa da população. Isto, por vários motivos. O primeiro deles é que nossa história recente, quando o Exército se transformou numa força de ocupação interna, mostra que não é muito conveniente para o país retirá-lo de suas funções constitucionais. Afinal, o uso do cachimbo faz a boca torta.

Mas há outra razão. Exército e polícia são, por sua própria natureza, coisas distintas. O adestramento e o armamento do Exército não são, nem podem ser, os mesmos da polícia. Esta última tem que lidar com a população e prestar-lhe um serviço: a segurança pública. Mesmo quando em conflitos armados com delinqüentes, quase sempre esses conflitos ocorrem em locais de concentração populacional.

Já a filosofia de atuação do Exército busca o aniquilamento do inimigo, sem uma preocupação particular em preservar a vida de quem está ao redor. Assim, ele não é preparado para conviver ou proteger a população civil, mas para enfrentar um outro exército e destruí-lo.

Conseqüência direta desses objetivos é o armamento utilizado num e noutro caso. Enquanto a polícia tem armas de combate a curta distância e não usa explosivos, as Forças Armadas utilizam fuzis e granadas. O fato de que traficantes possuam armas de guerra, como fuzis FAL ou AR-15, não deve nos levar à conclusão de que a polícia tem que ter um armamento semelhante. Primeiro, porque isto não traria um aumento considerável em seu poder de fogo, dadas as condições dos enfrentamentos armados. Depois, porque colocaria em risco a vida de muitos inocentes. A explosão de granadas numa favela seguramente feriria várias pessoas num raio de algumas dezenas de metros, assim como tiros de FALl ou AR- 15, que têm um alcance de 1500 metros e um enorme poder de penetração, ultrapassariam várias paredes de barraco.

Por isso, é incorreta a visão que, prisioneira de uma espécie de pânico em torno da questão da segurança, busca a solução para a violência na utilização aberta do Exército na segurança pública. Mais do que nunca é preciso pensar o trabalho de segurança pública como algo que use mais a inteligência e as informações do que a violência indiscriminada.

Resta, então, o desafio de mudar a polícia. As providências necessárias para isto são muitas, tanto no âmbito da organização em si do seu trabalho, quanto no âmbito da sociedade. Não há espaço aqui para detalhar todas elas. Vamos, assim, falar apenas das mais abrangentes - que nem por isso são menos concretas.

O primeiro desafio é mudar a concepção do trabalho da polícia. O policial deve se sentir como um servidor público, cuja função é garantir a segurança dos cidadãos. De todos os cidadãos: pobres e ricos, negros ou brancos. As dificuldades para essa mudança de concepção são de duas ordens.

Em primeiro lugar, cultural-ideológica. Não nos iludamos: parcela expressiva da população é a favor de medidas como a pena de morte e a violência contra criminosos presos. O próprio massacre do Carandiru teve a aprovação de muita gente. Ora, é do meio da população que são recrutados os policiais.

De outro lado, a mentalidade elitista da nossa polícia salta aos olhos no tratamento brutal que ela dá às camadas mais pobres da população, em comparação à forma como trata os segmentos de mais alta renda. Basta ver como a polícia se comporta nas favelas ou nas comunidades carentes. O pobre e negro é sempre suspeito, até prova em contrário.

Não podemos ter ilusões: transformar uma polícia permeada pela corrupção e por uma mentalidade repressora e elitista numa corporação que veja a si própria como prestadora de serviços aos cidadãos, respeitando-os, independentemente de sua origem social, não é tarefa fácil. De certa forma, uma transformação como essa depende também, em algum nível, de uma transformação na sociedade. Mas, da mesma forma que a tese que aponta a crise social como causa última da violência, esta afirmação, embora seja também verdadeira, é insuficiente para quem quer governar de forma transformadora. E governar de forma transformadora desde já.

Há ainda outras dificuldades, de natureza institucional e legal para a transformação da polícia. O fato de que os governos estaduais disponham de policiais militares, que são verdadeiros exércitos, é algo que não encontra precedente nos países desenvolvidos. Ora, como já foi dito, uma instituição militar é preparada para aniquilar um inimigo, não para conviver com ele. Por isso, desmilitarizar a PM, transformando o policiamento ostensivo num serviço executado por policiais civis uniformizados, deve ser uma importante bandeira do PT e dos setores democráticos da sociedade.

Uma segunda providência essencial para se modificar a polícia é aproximá-la da população. Se segurança é um serviço público, é preciso que a população participe da discussão acerca do tipo de polícia que ela deseja e das formas de sua atuação, assim como de avaliações periódicas sobre seu trabalho. No caso do Rio de Janeiro, foi vetado pelo governador Leonel Brizola um projeto de lei que regulamentava a criação de Conselhos Comunitários de Segurança, que estão inclusive previstos na Constituição Estadual. Esses conselhos seriam formados pelos chefes locais das polícias Civil e Militar e por representantes de entidades da sociedade civil (associações de moradores, sindicatos de trabalhadores, OAB, ABI, associações empresariais, clubes, escolas de samba etc.), existindo nos diversos níveis - bairros, municípios e estado.

Para que se possa aproximar a polícia da população, é necessário descentralizá-la. No Rio, é preciso revitalizar as delegacias distritais, aparelhando-as e motivando seus policiais. Hoje essas delegacias - cerca de 130 no Estado estão totalmente burocratizadas. Praticamente todo o trabalho de investigação é feito pelas chamadas delegacias especializadas, onde se concentra também a maior corrupção. Assim, um roubo de carro, por exemplo, independentemente do local da ocorrência, é encaminhado para a delegacia especializada.
Ao lado disso, os efetivos da PM, atualmente organizados em torno de batalhões, poderiam ser pulverizados, ficando sediados nas delegacias distritais, de forma a integrar o trabalho de policiamento ostensivo com o de investigação, hoje realizados de forma inteiramente estanque. Dessa maneira, criariam-se condições para o exercício do controle sobre o trabalho por parte da população, através dos Conselhos Comunitários de Segurança.

Uma terceira providência para modificar a polícia seria a redefinição de suas prioridades. A polícia está voltada primordialmente - não só no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil - para a repressão aos crimes contra o patrimônio, em detrimento dos homicídios. Esta prioridade se reflete tanto nos efetivos e nos meios materiais destinados ao combate a cada um desses tipos de crimes, quanto na importância que, explicitamente, é dada a eles pelas autoridades. Assim, as poucas dezenas de seqüestros de empresários acontecidos entre maio de 1991 e maio de 1992 receberam mais atenção e recursos dos organismos policiais do que os 3 mil assassinatos ocorridos no mesmo período. Não é preciso muita perspicácia para ver que a orientação dessa prioridade é a origem social da maioria das vítimas. Pois bem, no caso dos homicídios, cujas vítimas quase sempre são pobres, dos 3 mil ocorridos no período citado, 80% foi arquivado como "de autoria desconhecida". E - pasmem! - 30% também como de "vítimas de identidade desconhecida".

Não se trata, evidentemente, de desprezar os crimes contra o patrimônio, nos quais se inclui a extorsão mediante seqüestro. Mas do ponto de vista de um governo democrático - para quem a vida de uma pessoa humana é o bem maior é claro que a prioridade deve mudar.

Desarmamento da sociedade

Uma quarta providência essencial para se diminuir os índices de violência é a promoção de um desarmamento geral e radical na sociedade. Hoje, inúmeras pessoas têm por hábito sair às ruas armadas, fazendo com que qualquer desavença no trânsito, por boba que seja, traga em si o risco de um homicídio. Para a promoção desse desarmamento, seria preciso, de um lado, transformar o porte ilegal de arma hoje uma simples contravenção penal, resolvida com o pagamento de uma pequena multa - em crime. De outro lado, seria necessário limitar drasticamente a concessão de portes de arma, suspendendo os já aprovados e reavaliando com critérios muito mais rigorosos novas concessões.

Além disso, devemos promover uma intensa luta ideológica na sociedade contra a violência. Brizola, que tem-se notabilizado nos últimos tempos por dizer bobagens, pelo menos neste aspecto tem razão: é preciso pressionar as emissoras de rádio e televisão (e não só a Globo!) para que revejam suas programações. É inaceitável que detentores de concessões públicas para a exploração de canais de rádio e TV as utilizem para veicular programas que fazem a apologia da justiça pelas próprias mãos, do extermínio dos "bandidos" ou que ajudem a banalizar a violência, tornando-a corriqueira em cada sala de jantar do país. Chamar a sociedade para uma discussão a esse respeito, organizando um verdadeiro mutirão contra a violência é hoje uma necessidade.

A quinta grande providência seria rever radicalmente o sistema prisional brasileiro. Ele hoje reúne majoritariamente jovens, negros, pobres e semianalfabetos. Não recupera ninguém e, ao contrário, só contribui para formar mais criminosos. Os presos, em geral, saem piores do que entraram, do ponto de vista da adaptação deles ao convívio social. Assim, o atual sistema prisional não se justifica: ele nem ressocializa, nem é um instrumento de defesa da sociedade. Ora, mantê-lo apenas como elemento punitivo, além de questionável do ponto de vista humano, pois no Brasil quem vai para a cadeia é o pobre, é irracional. Um dia o preso vai sair e estará ainda menos apto para o convívio social.

Se fossem abertas as cadeias do Rio e libertados todos os seus presos, a população sequer se daria conta, pois a criminalidade não aumentaria de forma significativa. Esta afirmação, que parece exagerada à primeira vista, pode ser comprovada. Há no estado cerca de 10 mil presos e 90 mil mandados de prisão a cumprir. Temos, então, um universo de cerca de 100 mil condenados, dos quais só 10% presos. Ora, como já foi dito, mesmo entre os homicídios - um tipo de crime que quase sempre chega ao conhecimento da polícia, ao contrário dos roubos ou furtos - 80% acaba arquivado como "de autoria desconhecida". Os condenados corresponderiam então a somente 20% dos crimes cometidos. Mas, como já vimos, só 10% dos condenados estão presos, o que significa que apenas 2% do universo de autores dos crimes cometidos estão na cadeia. Considerar que a libertação desse contingente mudaria em algo a atual situação da criminalidade no Estado é ilusão. Não está em discussão, claro, o fato de que, nesse nosso exemplo hipotético, se fosse dada publicidade à soltura dos presos, haveria um pânico generalizado na sociedade.

Outros temas da segurança

Por fim, deve ser dito que neste artigo discutimos segurança pública de um ponto de vista restrito ao combate à chamada criminalidade convencional. Pensar segurança pública num sentido mais amplo significa tratar, por exemplo, de temas como os acidentes de trânsito - que ocupam o primeiro lugar no Brasil nas mortes por causas externas, sendo responsáveis por 30% delas, ou os acidentes de trabalho, que juntamente com os acidentes domésticos, estão em segundo lugar, ocasionando 25% das mortes.

Mesmo no que diz respeito aos homicídios, contrariamente ao que se pensa devido à paranóia que se generaliza na classe média brasileira em relação à segurança pública, a maioria é cometida por parentes, vizinhos ou conhecidos da vítima (aliás, o mesmo ocorre em relação a outros crimes violentos contra a pessoa, como estupros, lesões corporais etc).

Essas ressalvas são importantes para que, ao travarmos a discussão - necessária - sobre o combate à criminalidade convencional, não fortaleçamos o discurso conservador, que procura limitar a questão da segurança pública ao combate a essa criminalidade. A discussão sobre o combate à criminalidade é importante. Mas, é bom que fique claro, ela só parte de uma discussão mais abrangente sobre segurança pública.

Cid Benjamin é jornalista e militante do PT/RJ.