Nacional

É imperioso rediscutir a questão nacional, renovando-a dialeticamente, através de uma política de integração interna e externa, que assegure o desenvolvimento econômico com democracia política e justiça social

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"O grande triunfo do adversário é fazer-nos crer o que diz de nós"
Paul Valéry
Maus pensamentos e outros

 

Durante muitos anos - desde meados da década de 50 até recentemente - predominou na esquerda brasileira a defesa de um projeto de nacionalismo autárquico para o país. E o próprio PT, mesmo sendo, em vários e fundamentais aspectos, uma novidade radical na história da esquerda, não deixou de compartilhar desse equívoco.

Vale dizer: em maior ou menor medida, fomos tributários de uma visão exclusivista e superficial do lugar concreto do Brasil no mundo. Também, ao combatermos, com inteira razão, a política "antinacional" e "entreguista" das elites dominantes, fomos não raro seduzidos pela perspectiva de uma ruptura unilateral com o sistema econômico e político internacional. Também sonhamos, ainda que de modo inconfessado, com a autarquização do país ou, quem sabe, com a constituição de um mercado político, econômico e cultural alternativo, ao lado de países ideologicamente "afins".

De alguns anos para cá, no entanto, começamos a rever tais posições, criticando sua estreiteza ideológica e inconsistência prática. Supondo que fosse desejável, o que não é o caso, o nacionalismo autárquico seria impraticável como política de governo no Brasil de hoje. Para comprová-lo, basta verificar o quanto é profunda, e no limite irreversível, a interdependência econômica dos países industriais. A complexidade de nossa base produtiva, a complementariedade da economia brasileira com a de outros países, tanto no que diz respeito a matérias-primas como a tecnologias e mercados, torna inexeqüível qualquer projeto autárquico, isolacionista, sob pena de grave retrocesso histórico.

Contudo, ao promovermos essa indispensável revisão crítica, corremos o risco, da forma que ela tem se processado, de cair no extremo oposto, igualmente equivocado, e acabar alienando um conteúdo essencial do nosso projeto transformador para o Brasil.

Desejosos de superar o nacionalismo sectário, puramente reativo, incapaz de equacionar as contradições efetivas do país, tanto internas quanto externas, corremos o risco de negar a pertinência mesmo das lutas contra os laços de subordinação econômica e política que constrangem o desenvolvimento brasileiro. No afã de nos livrarmos de um esquema interpretativo e de ação que não corresponde mais, se é que algum dia correspondeu, subjetiva ou objetivamente, aos desafios reais da nossa independência, corremos o risco de considerar indevidamente superada a própria questão nacional, como se ela fosse em si mesmo um anacronismo político.

Corremos o risco de pensar e agir como se o Brasil não, tivesse mais tarefas nacionais, como se as transformações de um caráter eminentemente nacional que os países mais avançados do mundo realizaram ao longo dos séculos XIX e XX já estivessem realizadas e superadas entre nós. Em uma palavra: corremos o risco, para dizê-lo em boa linguagem popular, de jogar a criança fora junto com a água do banho.

Na verdade, essa revisão crítica não se dá no vazio, alheia à disputa político-ideológica em curso no país. Ela está longe de ser apenas uma dialética intelectual interna à esquerda. Ocorre, ao contrário, em contexto extremamente adverso, em tensão permanente com a ideologia neoliberal hegemônica no país. Pois Collor foi destituído mas o neoliberalismo continua exercendo fortíssima hegemonia sobre a vida cultural e política brasileira, acossando inclusive a elaboração doutrinária da própria esquerda. Resistimos bravamente aos desígnios neoliberais, aos seus objetivos econômicos, políticos e sociais e foi com certeza graças a essa resistência ativa que o neoliberalismo não obteve no Brasil vitória tão completa e devastadora como em outros países da América Latina - mas nem por isso deixamos de ser polarizados pela sua pauta de debates.

Não é de estranhar, nesse contexto, que se queira induzir-nos a tratar a questão nacional brasileira como arcaica, ultrapassada, supostamente incompatível com o ideário de uma esquerda de novo tipo, realista, criativa, que disputa o poder com vontade de mudar realmente o país, e não apenas de obter satisfação simbólica no terreno de propaganda ideológico.

A questão de um projeto nacional, de um destino coletivamente pretendido e do qual a nação inteira seja sujeito, de metas históricas compartilhadas pelo conjunto da sociedade, não tem lugar na proposta neoliberal para os países subalternos. Aos países subalternos o neoliberalismo proíbe qualquer veleidade nacional. Pensar e agir em nome do Brasil torna-se out. O seu maior esforço é para inibir toda reflexão séria e aprofundada sobre o Brasil, seja artística ou científica. Sob o influxo da ideologia neoliberal, é considerado positivo, progressista, "moderno" somente aquilo que tenha expungido de si qualquer particularidade brasileira. Tematizar o Brasil, o destino coletivo de seu povo (e nem por ser implícita tal dogmática deixou de ser férrea, implacável) é signo de esquerdismo nostálgico e de incompreensão dos "verdadeiros" desafios da vida contemporânea, que seriam por definição transnacionais.

Essa hegemonia instaurou-se, salvo engano, porque o neoliberalismo ocupou um espaço duplamente aberto. De um lado, aquele aberto pela crise do socialismo e da social-democracia, ou seja, dos paradigmas clássicos da esquerda; de outro, aquele disponível pelo esgotamento do modelo desenvolvimentista que o Brasil adotou, grosso modo, desde 30. À crise do socialismo e, conseqüentemente, de sua visão do problema nacional, somou-se a exaustão de um projeto para o país que não dá mais conta de um cenário doméstico e mundial profundamente reestruturado.

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Transcender-se o velho e inadequado nacionalismo é, portanto, uma necessidade imperiosa, a esquerda não tem porque fazê-lo negando a questão nacional - e sim renovando-a dialeticamente, através de um projeto de integração soberana do Brasil no sistema econômico e político internacional. O Brasil pode e deve ter uma política de crescente e ousada integração no mundo que se articule com uma também crescente integração nacional, não apenas geográfica mas sobretudo social e política, incorporando à cidadania milhões de excluídos.

Não se trata de realizar primeiro uma coisa para depois fazer a outra. Trata-se de trabalhar simultaneamente nas duas perspectivas. Trata-se de envolver toda a nação nesse projeto de integração soberana. E não a contragosto, por ausência de alternativa, mas com o máximo empenho político, convictos de que esse é o melhor caminho para o conjunto da sociedade brasileira, o único capaz de assegurar desenvolvimento econômico co democracia política e justiça social.

O neoliberalismo contenta-se com a modernização parcial, setorial da vida brasileira. Como reconheceu, de modo brutal mas sem hipocrisia, a ex-ministra Zélia Cardoso de Melo, o desafio brasileiro, do ponto de vista neoliberal, é o de fazer com que o "país" moderno pegue o bonde do Primeiro Mundo, mesmo que, para isso, 80% do Brasil real saia definitivamente dos trilhos do desenvolvimento. Nenhuma preocupação, como se vê, com o sujeito histórico-social concreto que é a nação brasileira. Para consolidar os privilégios da face elitista do Brasil, para servir aos interesses de determinados segmentos econômicos e sociais, relevantes sem dúvida mas socialmente minoritários, qualquer tipo de integração internacional serve. É até melhor, e politicamente mais seguro, que ela seja subalterna.

Para servir, entretanto, à sociedade brasileira no seu conjunto, na sua desejável pluralidade interna, na sua diversidade econômica, social, cultural e política - só se a integração for soberana, de modo a compatibilizar as tarefas internacionais, sem as quais o Brasil não chegará a parte alguma nesse final de século e início de milênio, com as tarefas propriamente nacionais, sem as quais, se alguém chegar ao Primeiro Mundo, não será o Brasil mas uma reduzidíssima parcela de suas elites.

Várias das questões-chave que hoje polarizam o debate do PT e da esquerda sobre o programa de governo Lula só podem ser adequadamente resolvidas, a meu juízo, nessa perspectiva da integração soberana. A questão da reforma do Estado, a questão militar, a dialética entre mercado interno e mercado externo, a dívida externa, as políticas de educação, saúde e previdência, a presença do poder público na vida cultural, as prioridades da nossa política internacional, o Mercosul etc...

Tomemos, a título de exemplo, a questão da reforma do Estado. Ninguém ignora que o modelo estatal brasileiro, além de historicamente esgotado, está doutrinariamente caduco. Parte do Estado brasileiro atual vem do nacional populismo corporativista, e seguramente não corresponde às exigências democráticas do país. Outra parte é remanescente do regime militar, antagônica aos valores humanos e políticos que sustentamos. O que ainda existe de bom no Estado brasileiro é lateral, periférico, está longe de determinar o seu caráter central. Logo, carecemos de uma ampla e radical reforma do Estado. Tornou-se, aliás, um truísmo reivindicá-la. Sim, mas para servir a qual projeto de país? Para viabilizar o projeto neoliberal, o Estado será um. Para executar um projeto de democratização substantiva do país, no seu conjunto, o Estado será fatalmente outro. O esquematismo não é nosso, é da vida brasileira...

Para favorecer uma integração internacional subalterna (ou conservá-la) basta o Estado mínimo, sem poder efetivo de criação econômico-social, à mercê do "livre" jogo do mercado oligopolizado, limitando-se a prestar serviços assistenciais cada vez mais precários a uma legião cada vez maior de excluídos. Para assegurar, porém, uma integração internacional decidida e sem tabus, mas ao mesmo tempo soberana, não-agachada - o que, diga-se de passagem, nunca será um desafio apenas econométrico e à criatividade política das nações - o Estado não pode ser mínimo, atrofiado, desqualificado, terá que ser um Estado democraticamente forte, dotado de instrumentos de ação não só paliativos mas estruturais, capaz de agir sobre os obstáculos internos e externos à nossa soberania.

A questão militar, para dar apenas mais um exemplo, deve ser também considerada nessa perspectiva. Se queremos que o Brasil transcenda o falso dilema "desnacionalização subalterna, entreguista, versus nacionalismo reativo, autarquizante", dilema cuja perpetuação só interessa aos nossos adversários, não podemos ignorar o fato histórico inescapável de que nenhum pais, no século XX, sobretudo nenhum país de Terceiro Mundo como o nosso, conseguiu integrar-se ao mercado econômico e político internacional em condições vantajosas para o seu povo sem uma retaguarda militar significativa, capaz de inibir chantagens econômicas e geopolíticas dos países hegemônicos (os que não tinham diretamente tal retaguarda estavam aliados, voluntária ou compulsoriamente, a potências que as tinham ... ).

Daí não decorre, absolutamente, que devemos cortejar os militares nem tampouco abrir mão de nossa defesa da paz e da institucionalidade democrática. Trata-se de combinar, também no que diz respeito aos militares, a questão nacional com a questão democrática. O mais importante, creio eu, é dar-lhes um papel definido em nosso projeto de desenvolvimento para o país. As Forças Armadas perderam qualquer papel criativo na vida brasileira. Com isso, avulta naturalmente o seu papel autoritário, de tutela da vida civil. É necessário que elas estejam sintonizadas com um projeto afirmativo de nação, com a defesa da soberania nacional, não só no que diz respeito às nossas fronteiras mas às condições da nossa integração econômica e política no mundo. Até porque, se não soubermos assegurar-lhes esse novo e democrático papel, elas acabarão presas mais ou menos fáceis de projetos outros. Uma instituição poderosa e estruturante do Estado, como as Forças Armadas, sem papel definido é que não ficará.

O PT, que teve entre os seus fundadores personalidades como Sérgio Buarque de Holanda, Mário Pedrosa e Antônio Cândido, tem à sua disposição um patrimônio teórico alternativo para trabalhar na perspectiva da integração soberana. Todos eles pensaram o nacional com vocação universalista. Cândido escreveu sobre o tema um ensaio notável, "Literatura e Subdesenvolvimento", de 1972, que assenta as bases éticas e culturais para um renovado não-exclusivista projeto nacional.

Nesse sentido, o PT cumpre agora, através das caravanas da cidadania, lideradas por Lula, um movimento político-cultural e simbólico importantíssimo, cujo alcance não tem sido bem compreendido sequer por nós mesmos.

As caravanas da cidadania, muito mais que legítimos instrumentos de proselitismo eleitoral, são instrumentos de insurgência do Brasil real. Mais até pelo que são em si mesmas do que pelo que se afirma discursivamente nelas. As caravanas têm um sentido e análogo à aventura intelectual de Euclides sertão adentro e à aventura político-militar da Coluna Prestes país afora. As caravanas são viagens ao interior da nação, à "alma" do Brasil. Elas recuperam a espessura geográfica e político-cultural do Brasil, demonstram que o Brasil não é aquele "vazio" material e simbólico que Collor e os neoliberais erigiram em conveniente inimigo, demonstram que as energias para um renovado projeto nacional podem ser buscadas nas entranhas de nossa própria experiência coletiva, não precisam vir de fora de nós mesmo, do outro, do nosso "avesso". As caravanas, além do mais, e esse não é o menor de seus fascínios, recuperam uma espécie de épica da nacionalidade, redescobrem o Brasil em movimento, em luta com os seus demônios, o seu destino. Elas contribuem para a insurgência de uma outra pauta, de fato brasileira, sem xenofobia mas ao mesmo tempo sem complexo de inferioridade, sem ceder àquele mito negativo do Brasil inútil e retrógrado, que anda de carroça em meio às possantes máquinas do futuro, do Brasil que só pode salvar-se negando-se a si mesmo, negando aquele poderoso "instinto de nacionalidade" de que falava o bruxo mestiço Machado de Assis, para citar outro personagem a um só tempo profundamente brasileiro e universal.

Ao discutir a pequena produção, as cooperativas dos sem terra, o empresariado provincial, os desequilíbrios regionais, a economia informal, o desemprego, o analfabetismo, a fome, bem como o escoamento nacional e internacional da produção, a reestruturação industrial, os blocos econômicos, a integração de mercados, o sistema financeiro internacional, Lula instaura um outro temário mas sobretudo reconhece o Brasil real, os sujeitos individuais e coletivos do Brasil real como interlocutores legítimos, restabelece a confiança na capacidade de auto-superação histórica da sociedade brasileira, em nossa capacidade de encontrar saídas (em diálogo com a experiência internacional, naturalmente) para os gravíssimos problemas do país. Lula enfatiza, peregrinando, que a superação de nossos complexos impasses deve dar-se com os mais diversos setores sociais e não contra eles. Para Lula, os setores ditos arcaicos da economia não são cancros da vida brasileira, a serem extirpados, mas sim aspectos verdadeiros daquilo em que historicamente resultamos. Nem tampouco a economia informal é a inimiga, a excrescência, mas algo que foi historicamente funcional ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Não inimiga mas integrante do mosaico contraditório que somos nós.

O nosso maior desafio, hoje, na perspectiva de um renovado projeto de independência nacional, de integração soberana no mundo, é justamente esse: o de uma compreensão ao mesmo tempo amorosa e não-apologética do Brasil. "Ninguém jamais se tornou universal sem conhecer e amar a própria aldeia", disse Dostoievski.

Nosso maior desafio é o de basear um projeto nacional universalista em uma serena compreensão de nossa contraditória identidade nacional. Numa atitude que não seja maniqueísta em relação a nós mesmos nem ao mundo. Pois os obstáculos a serem vencidos não o serão exclusivamente em nós nem no mundo, mas em uma nova relação nossa com o mundo, que passa necessariamente por uma nova relação do Brasil consigo mesmo.

Se não tivermos uma compreensão amorosa do nosso país por mais duros que sejamos com as suas mazelas, dificilmente conseguiremos mudar o país e dar-lhe uma presença superior no mundo. Compreensão amorosa e transformadora, transformadora justamente porque amorosa.

Luiz Dulci é secretário de Governo da Prefeitura de Belo Horizonte e membro do Diretório Nacional do PT.

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