Durante muitos anos - desde meados da década de 50 até recentemente - predominou na esquerda brasileira a defesa de um projeto de nacionalismo autárquico para o país. E o próprio PT, mesmo sendo, em vários e fundamentais aspectos, uma novidade radical na história da esquerda, não deixou de compartilhar desse equívoco.
Vale dizer: em maior ou menor medida, fomos tributários de uma visão exclusivista e superficial do lugar concreto do Brasil no mundo. Também, ao combatermos, com inteira razão, a política "antinacional" e "entreguista" das elites dominantes, fomos não raro seduzidos pela perspectiva de uma ruptura unilateral com o sistema econômico e político internacional. Também sonhamos, ainda que de modo inconfessado, com a autarquização do país ou, quem sabe, com a constituição de um mercado político, econômico e cultural alternativo, ao lado de países ideologicamente "afins".
De alguns anos para cá, no entanto, começamos a rever tais posições, criticando sua estreiteza ideológica e inconsistência prática. Supondo que fosse desejável, o que não é o caso, o nacionalismo autárquico seria impraticável como política de governo no Brasil de hoje. Para comprová-lo, basta verificar o quanto é profunda, e no limite irreversível, a interdependência econômica dos países industriais. A complexidade de nossa base produtiva, a complementariedade da economia brasileira com a de outros países, tanto no que diz respeito a matérias-primas como a tecnologias e mercados, torna inexeqüível qualquer projeto autárquico, isolacionista, sob pena de grave retrocesso histórico.
Contudo, ao promovermos essa indispensável revisão crítica, corremos o risco, da forma que ela tem se processado, de cair no extremo oposto, igualmente equivocado, e acabar alienando um conteúdo essencial do nosso projeto transformador para o Brasil.
Desejosos de superar o nacionalismo sectário, puramente reativo, incapaz de equacionar as contradições efetivas do país, tanto internas quanto externas, corremos o risco de negar a pertinência mesmo das lutas contra os laços de subordinação econômica e política que constrangem o desenvolvimento brasileiro. No afã de nos livrarmos de um esquema interpretativo e de ação que não corresponde mais, se é que algum dia correspondeu, subjetiva ou objetivamente, aos desafios reais da nossa independência, corremos o risco de considerar indevidamente superada a própria questão nacional, como se ela fosse em si mesmo um anacronismo político.
Corremos o risco de pensar e agir como se o Brasil não, tivesse mais tarefas nacionais, como se as transformações de um caráter eminentemente nacional que os países mais avançados do mundo realizaram ao longo dos séculos XIX e XX já estivessem realizadas e superadas entre nós. Em uma palavra: corremos o risco, para dizê-lo em boa linguagem popular, de jogar a criança fora junto com a água do banho.
Na verdade, essa revisão crítica não se dá no vazio, alheia à disputa político-ideológica em curso no país. Ela está longe de ser apenas uma dialética intelectual interna à esquerda. Ocorre, ao contrário, em contexto extremamente adverso, em tensão permanente com a ideologia neoliberal hegemônica no país. Pois Collor foi destituído mas o neoliberalismo continua exercendo fortíssima hegemonia sobre a vida cultural e política brasileira, acossando inclusive a elaboração doutrinária da própria esquerda. Resistimos bravamente aos desígnios neoliberais, aos seus objetivos econômicos, políticos e sociais e foi com certeza graças a essa resistência ativa que o neoliberalismo não obteve no Brasil vitória tão completa e devastadora como em outros países da América Latina - mas nem por isso deixamos de ser polarizados pela sua pauta de debates.
Não é de estranhar, nesse contexto, que se queira induzir-nos a tratar a questão nacional brasileira como arcaica, ultrapassada, supostamente incompatível com o ideário de uma esquerda de novo tipo, realista, criativa, que disputa o poder com vontade de mudar realmente o país, e não apenas de obter satisfação simbólica no terreno de propaganda ideológico.
A questão de um projeto nacional, de um destino coletivamente pretendido e do qual a nação inteira seja sujeito, de metas históricas compartilhadas pelo conjunto da sociedade, não tem lugar na proposta neoliberal para os países subalternos. Aos países subalternos o neoliberalismo proíbe qualquer veleidade nacional. Pensar e agir em nome do Brasil torna-se out. O seu maior esforço é para inibir toda reflexão séria e aprofundada sobre o Brasil, seja artística ou científica. Sob o influxo da ideologia neoliberal, é considerado positivo, progressista, "moderno" somente aquilo que tenha expungido de si qualquer particularidade brasileira. Tematizar o Brasil, o destino coletivo de seu povo (e nem por ser implícita tal dogmática deixou de ser férrea, implacável) é signo de esquerdismo nostálgico e de incompreensão dos "verdadeiros" desafios da vida contemporânea, que seriam por definição transnacionais.
Essa hegemonia instaurou-se, salvo engano, porque o neoliberalismo ocupou um espaço duplamente aberto. De um lado, aquele aberto pela crise do socialismo e da social-democracia, ou seja, dos paradigmas clássicos da esquerda; de outro, aquele disponível pelo esgotamento do modelo desenvolvimentista que o Brasil adotou, grosso modo, desde 30. À crise do socialismo e, conseqüentemente, de sua visão do problema nacional, somou-se a exaustão de um projeto para o país que não dá mais conta de um cenário doméstico e mundial profundamente reestruturado.