Mundo do Trabalho

A posse da terra continua sendo fundamental para os trabalhadores rurais na luta contra a fome e a miséria

A luta pela reforma agrária, hoje no Brasil, muito além da questão social, se coloca como uma luta política e econômica que, em sua essência, questiona a forma como vem se organizando e desenvolvendo a agricultura na economia brasileira.

A questão da terra representa, de fato, a real dimensão do problema global do modelo de desenvolvimento brasileiro.

Os movimentos populares no campo não questionam apenas a forma de apropriação, mas também o uso e a gestão dos recursos naturais necessários à produção agrícola, agroindustrial e industrial.

A interpretação errônea de setores da própria esquerda, de que com a modernização no campo a reforma agrária representa um retrocesso no desenvolvimento da agricultura, fez com que os partidos políticos, inclusive o PT, se afastassem em termos de ação da luta pela reforma agrária. No entanto, diante da evidência dos perversos custos sociais da modernização conservadora da agricultura - o crescimento da concentração fundiária, do êxodo rural, da violência no campo, da superexploração dos empregados e até mesmo do trabalho escravo -, os trabalhadores rurais vêm se organizando de forma crescente nas próprias comunidades ou até em movimentos nacionais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Relegar a um plano secundário a luta pela terra no Brasil é, no mínimo, um descompasso com a própria conjuntura político-econômica do campo. É um afastamento político dos movimentos populares, que avança independentemente das análises acadêmicas, teóricas ou partidárias, em contrário.

Como o atual modelo de desenvolvimento brasileiro não se definiu a partir das necessidades nacionais, mas para atender exigências internacionais, optou-se no campo pelo apoio à grande agricultura, incentivando o seu desenvolvimento pela via da modernização tecnológica, através da intensificação do uso de implementos agrícolas (tratores, máquinas de beneficiamento etc.), insumos químicos (fertilizantes, inseticidas etc.), que compunham os "pacotes tecnológicos".

A teoria das transformações sociais no campo, defendida por algumas correntes políticas, afirma que a entrada do capital no campo tem uma função revolucionária de retirar do atraso e da miséria milhares de camponeses. Isto de fato ocorreu em alguns países, em diferentes períodos históricos. Entretanto, não é o que temos constatado no caso brasileiro.

A entrada das relações de produção capitalistas no campo, através das grandes empresas e agroindústrias, financiadas quase sempre por programas governamentais, expulsou camponeses, índios e posseiros do Norte e Nordeste, acabou com o morador e o posseiro do Sul e Sudeste, e no lugar destes surgiram não apenas relações de trabalho modernas, como o assalariamento, como também a violência e até mesmo o trabalho escravo.

É aviltante para a nossa condição de ser humano o acelerado crescimento do número de trabalhadores escravos no Brasil. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, em 1990, foram registrados doze casos envolvendo 1.559 pessoas escravizadas. Em 1991, foram 27 casos envolvendo 4.883 pessoas, em 1992, dezoito casos e 16.442 pessoas.

O mais grave é constatarmos que, além do crescimento brutal do número de trabalhadores escravizados nos últimos anos, a geografia do trabalho escravo no Brasil aponta como área de concentração exatamente as regiões de acelerado crescimento capitalista ou de fronteiras agrícolas, onde as grandes empresas contam com amplo apoio estatal, através de incentivos fiscais e se encontram inseridas numa economia "moderna" de mercado.

O fato é que o Estado patrocinou no espaço agrário brasileiro a associação do capital (grandes grupos empresariais) com a propriedade da terra, reforçando na burguesia seu caráter conservador e anti-reformista. Esta associação gerou novas atividades econômicas, vinculadas inclusive ao mercado internacional, e com isso os investimentos no campo têm agora a marca do capital, do banco, da indústria, do grande intermediário, em suma, do capital financeiro.

Perdida a oportunidade histórica de se optar por um modelo econômico e político que, de forma articulada e complementar, desenvolvesse a agricultura e a indústria, o que com certeza eliminaria a maior parte da miséria e da fome que passam milhões de brasileiros, as elites deste país ainda hoje resistem à realização da reforma agrária. Defendem a modernização econômica, sem que sejam realizadas mudanças estruturais nas questões relativas à distribuição de terra.

Os vários programas que foram desenvolvidos, em nível regional e nacional, na área agrária, não resultaram em alterações significativas da estrutura fundiária do país, porque nunca houve, de fato, decisão política para alterá-la. A apropriação de 50% das terras continua nas mãos de menos de 1% dos detentores de imóveis rurais.

Em termos de políticas agrícolas, privilegiou-se a modernização tecnológica, a implantação dos grandes complexos agroindustriais e a produção voltada para a exportação, o que excluiu milhares de famílias do acesso à terra, ao emprego e aos benefícios do progresso.

Como conseqüências mais atuais e abrangentes desta estratégia de desenvolvimento, verificamos que:

- a expulsão do campo de milhares de trabalhadores por falta de terra e de condições para sobreviverem é o concomitante incentivo à urbanização provocaram um fluxo migratório desordenado e acelerado que as cidades não puderam comportar. Foi inevitável o aumento do desemprego, da marginalidade e da violência urbana;

- a manutenção dos altos índices de concentração de terra em poder de uma minoria intensificou os conflitos e a violência no campo;

- a falta de uma política agrícola que apóie a produção de alimentos e matérias-primas para o mercado interno refletiu diretamente nos crescentes e descontrolados índices inflacionários;

- o privilégio da agricultura voltada para a exportação concentrou ainda mais a renda e o poder, levando à marginalização milhares de trabalhadores rurais em todo o país;

- o incentivo ao desenvolvimento dos complexos agroindustriais provocou o surgimento de verdadeiros bolsões de miséria e um exemplo evidente é a agroindústria sucroalcooleira que, mesmo tendo recebido enormes subsídios do Proálcool, continua mantendo com seus trabalhadores relações de superexploração e até mesmo de escravidão. Em recente trabalho de pesquisa para elaboração de um livro sobre o tráfico de trabalhadores de trabalho escravo no Brasil, constatamos que 43% dos casos denunciados, no período de 86 e 91, ocorreram em agroindústrias do setor sucroalcooleiro.

Quando defendemos a realização de uma reforma agrária efetiva e radical em nosso país, é bom explicitar que, muito além de uma luta ideológica ou por justiça social, estamos apontando uma alternativa concreta para o desenvolvimento econômico do país.

Vale ressaltar que esta proposta encerra, em si, quatro aspectos essenciais.

- que a reforma agrária seja compreendida como um fator estratégico fundamental para o desenvolvimento econômico, político e social do país e, portanto, deverá ser implementada considerando toda a estrutura fundiária nacional;

- que a reforma agrária é um processo que deve garantir aos trabalhadores rurais, além da terra, políticas agrícolas adequadas à sua realidade, acesso ao crédito, aos recursos hídricos, à assistência técnica, apoio para construção de infra-estrutura produtiva e social nas áreas e capacitação de recursos humanos;

- que o imóvel não seja parcelado imediatamente, para garantir a autonomia dos assentados na discussão da melhor forma de potencializar todos os recursos naturais e humanos existentes, a partir da compreensão de que o imóvel é uma unidade produtiva e que deve estar integrado ao processo de desenvolvimento do município e da região onde está localizado;

- que a implementação do processo de reforma agrária conte com a co-responsabilidade dos poderes federal, estadual e municipais.
Desta forma, não teremos uma reforma agrária de faz de conta, que divide terras e miséria, que resulta em pequenos proprietários isolados, descapitalizados, tornando-se impotentes diante das regras do mercado capitalista e das condições naturais de cada região.

Nesta concepção de reforma agrária, os projetos de assentamento tornam-se uma unidade produtiva integrada (internamente e com a economia de mercado), que através de uma organização cooperativa passa a ter uma identidade empresarial coletiva, com capacidade de contrair empréstimos, comercializar sua produção, firmar convênios e, o que é mais importante, reter a população ocupada e produtiva no campo, aumentando a produção para o mercado interno e/ou externo, e levando aos trabalhadores rurais a emancipação econômica de maneira muito mais rápida do que qualquer outra forma de exploração.

Feita estas considerações, constatamos que reverter o quadro de miséria de 32 milhões de pessoas e absorver no processo produtivo, via políticas de geração de empregos, mais de 1,5 milhões de pessoas que a cada ano ingressam no mercado de trabalho, é uma tarefa hercúlea, dado o contexto de uma ordem econômica que aprofunda o fosso entre pobres e ricos no planeta.

Assim, as políticas de emprego têm que ser muito bem estudadas pela tecnocracia governamental, no sentido de estimular setores econômicos,que geram mais empregos a custos mais baixos.

Em 1992, o governo brasileiro contratou os serviços da FAO (Organização de Alimentação e Agricultura) para fazer um levantamento da situação sócio-econômica dos beneficiários do processo da reforma agrária. Os resultados fornecem informações bastante interessantes, que podem ser traduzidas como recomendações para uma alternativa de política social no Brasil.

O Programa Nacional de Reforma Agrária assentou 94.026 famílias entre 1985 e 1991, compreendendo uma área de 4.713.910 hectares. Foram estudados 10% deste universo e 10% das famílias de cada assentamento participou da amostra.

Citamos alguns indicadores-chave da real situação sócio-econômica dos beneficiários da reforma agrária.

Renda familiar em salários mínimos. A renda familiar nos assentamentos no Brasil ficou em torno de 3,7 salários mínimos. Considerando-se que a linha de pobreza atualmente definida estabelece um salário mínimo por família, os beneficiários da reforma agrária ficaram muito acima deste limite, mesmo os da região Nordeste, que obtiveram 2,33 salários mínimos por família.

Fontes de renda. Os beneficiários da reforma agrária, de maneira geral, obtém 1,4 salários mínimos da venda dos seus produtos no mercado, 1,4 salários mínimos da atividade de autoconsumo e mais 0,9 do assalariamento de suas famílias e outras fontes, totalizando 3,7 salários mínimos. Verificamos, portanto, que as atividades agrícolas são as que mais contribuem para a geração da renda familiar.

Ocupação da força de trabalho. A comparação entre a força de trabalho efetivamente empregada e a força de trabalho potencial revela a existência de uma capacidade ociosa média da mão-de-obra de apenas 13%, que é muito baixa, uma vez que são consideradas na força de trabalho potencial os filhos com idade superior a dez anos. Este indicador revela a racionalização na utilização da mão-de-obra.

Capitalização nos assentamentos. Os beneficiários da reforma agrária, de maneira geral, conseguiram aumentar seu capital inicial em 206,49% se considerarmos os recursos próprios e 251,85% se incluirmos os empréstimos e doações. Mesmo nos assentamentos da região Nordeste houve uma capitalização de quase 100%, ou seja, quase duplicaram seu capital se computarmos os empréstimos e doações.
É interessante observar que a principal fonte de capitalização tem sido os recursos próprios, que foram incorporados em meios de produção, significando que houve sucesso na garantia da reprodução ampliada da pequena produção das áreas de reforma agrária.

Produção. Com base nos dados de produção individual coletados pela pesquisa em 1991, estima-se que a produção de grãos das quase 100 mil famílias beneficiárias da reforma agrária totaliza 490 mil toneladas (arroz, feijão, milho). Se comparamos com a média da produção nacional de grãos, incluindo soja e trigo, ou seja, 59 milhões de toneladas, a produção dos assentados participa com 0,8% da mesma, dados que demonstram um certo impacto na produção nacional de alimentos.

Muitos setores não justificam a reforma agrária do ponto de vista econômico porque alegam que a agricultura brasileira já produz em níveis satisfatórios ao atendimento do consumo nacional de alimentos. Todavia, há de se reconhecer que esta produção está localizada significativamente (90%) na região Sul e Sudeste e, prioritariamente, voltada para o mercado externo.

Aqueles que são ideologicamente contra a reforma agrária não podem deixar de reconhecer que com muito menos recursos dos cofres públicos este programa gera muito mais emprego e renda, se comparado a qualquer outro setor da economia.
Enquanto a geração de um emprego na área urbana no Brasil custa de US$ 15 mil a US$ 90 mil, o professor Sérgio Leite constatou, em recente tese de mestrado, que o assentamento de uma família custou ao governo de São Paulo apenas US$ 4.330, custo que o próprio estado recebe de volta em apenas duas safras, através do recolhimento do ICMS.

Podemos concluir que a reforma agrária apresenta-se como uma alternativa concreta e viável do ponto de vista técnico e econômico, capaz de reduzir em curto prazo a miséria no Brasil, notadamente na área rural.

Com estas reflexões, concluo que é impossível acreditar num plano efetivo e duradouro de combate à fome e à miséria, sem pensar em modificações no pagamento da dívida externa, sem incluir como base fundamental uma reforma estrutural do Estado, sem a reforma agrária e, finalmente, sem repensar o país em cima de uma outra alternativa de desenvolvimento, que possa tirar da marginalização milhões de trabalhadores desta imensa e rica Nação.

Eudoro Santana é deputado estadual do PSB/CE.