Mundo do Trabalho

A exploração do homem do campo só pode terminar com o estabelecimento de seu próprio domínio sobre a estrutura produtiva

O caráter do programa democrático-popular deriva de três dados fundamentais: quem o partido representa; o objetivo estratégico do partido e a estratégia geral para atingi-lo; a situação da conjuntura no momento da elaboração do programa e os objetivos parciais que com ele se deseja atingir.

Sobre quem o partido representa não pode haver dúvida. O PT apresenta-se como representante dos explorados do capitalismo brasileiro, dos assalariados do campo e da cidade e propõe uma aliança com os setores médios pobres do campo e da cidade para a construção do socialismo. Representar tais segmentos implica assumir politicamente a defesa das suas reivindicações. Estas constituem, por conseguinte, o núcleo do programa de governo, porém inseridas em uma concepção global de uma nova sociedade e em um projeto de poder correspondente.

O objetivo estratégico do PT é o socialismo, a ser atingido através da intervenção política coletiva dos trabalhadores enquanto classe social. Conseqüentemente, mesmo que se possa dizer que o atual programa de governo do PT não visará implantar o socialismo de imediato, ele deve necessariamente constituir uma etapa deste processo. Para isso, o programa deve propor reformas estruturais capazes de alterar decisivamente a configuração econômica e social do país, no sentido de gerar uma nova estrutura de poder político e social sob a hegemonia da classe trabalhadora.

O fundamento deste poder global na sociedade é o domínio da estrutura produtiva, isto é, da estrutura produtora da riqueza social. Este domínio é que fornece a base para exploração exercida pelos capitalistas sobre os trabalhadores. Assim, a exploração que estes sofrem só pode terminar com o estabelecimento do seu próprio domínio sobre a estrutura produtiva, através da propriedade social. Pode-se dizer, em síntese, que construir progressivamente o socialismo corresponde a ampliar, progressivamente, o poder econômico, político, social e ideológico dos trabalhadores, debilitando o correspondente poder dos capitalistas.

Ativar e acelerar este processo constitui a essência do Programa de Governo do PT, como etapa da luta pelo socialismo.

Seria de esperar que o PT já tivesse elaborado a sua concepção geral sobre o papel que deveria desempenhar o governo Lula na trajetória da sociedade brasileira para o socialismo. Seria então possível definir com maior consistência realizações mínimas, que constituiriam o núcleo do programa. Porém, o PT não o fez. Existe, no entanto, uma noção geral e consensual de que a conquista do governo constituirá um fator decisivo no sentido de desencadear um processo de mobilização social e de transformações estruturais de grande alcance, que impulsionariam o processo de socialização. Embora não se tenha conseguido precisar o modo pelo qual se pode esperar que isto ocorra, impõe-se concluir que a elaboração do Programa de Governo deve partir desta noção geral do papel do governo Lula, como um governo que desencadeie transformações no sentido do socialismo. Portanto, para o PT, trata-se de conquistar a delegação dos eleitores para um programa que lhe permita realizar isto.

O programa agrário resulta da aplicação destes princípios gerais à agricultura. Portanto, ele deve sintetizar as reformas estruturais que, neste setor específico, expressem as reivindicações dos trabalhadores assalariados e de seus aliados, e promovam uma alteração decisiva na estrutura do poder econômico, social e político em favor destes.

A base social fundamental do PT no campo são os assalariados rurais, divididos em dois grandes segmentos: os assalariados plenos e os semi-assalariados (ou agricultores sem terra). A reivindicação em torno da qual todos os assalariados se unem é a reforma agrária, entendida como um processo amplo e rápido de redistribuição da terra e demais meios de produção da agricultura, de modo a transferi-los das mãos dos capitalistas agrários e agroindustriais aos trabalhadores do campo. Esta é a reforma agrária concretamente reivindicada pelo movimento organizado dos trabalhadores rurais. Não se trata, portanto, da reforma agrária na sua versão burguesa, que consiste basicamente na transferência da terra de uma classe senhorial decadente para a burguesia agrária em ascensão, mas de uma reforma agrária inserida em um processo de superação do capitalismo. Neste caso, o desenvolvimento capitalista já promoveu ampla acumulação de capital produtivo associado às terras agrícolas, não havendo sentido em redistribuir a terra nua isoladamente, principalmente quando inexplorada devido à sua qualidade inferior. Deve-se notar que a chamada "reforma agrária como política social" não constitui reivindicação de nenhum segmento social organizado, mas mera elucubração intelectual que confunde e debilita a luta dos trabalhadores.

O tratamento a ser dado aos setores médios tem sido um tema tradicionalmente polêmico na esquerda socialista. Algumas definições são essenciais. No campo, estes aliados estratégicos dos assalariados são os pequenos agricultores pobres, também chamados, impropriamente, de produtores familiares, organizados nos sindicatos de trabalhadores rurais. Embora se caracterizem como produtores comerciais, eles representam uma fração minoritária e declinante da produção agrícola. Esta já é amplamente dominada pela grande burguesia agrária e agroindustrial. As propostas do PT para estes segmentos médios, tanto no campo quanto na cidade, devem levar em conta que:

- Nem todos os pequenos produtores se incluem na categoria de "pobres", pois dividem-se em dois grupos bem diferentes: num deles estão os pequenos produtores capitalistas, cuja produção é complementar, e não concorrente, à produção das grandes empresas ou às necessidades das camadas abastadas, produzindo insumos ou serviços necessários a estas. Estes integram econômica e politicamente a estrutura capitalista e constituem os verdadeiros protótipos da chamada produção familiar. O outro grupo compõe-se dos pequenos agricultores pobres que concorrem ou virão a concorrer com produtores capitalistas, como por exemplo na produção de grãos, criação de gado etc. Estes sobrevivem com grande dificuldade e estão e continuarão sendo fatalmente excluídos do mercado. Não são produtores familiares, mas famílias em processo de desagregação como resultado da expropriação capitalista. Não são eles que rejeitam o capitalismo, este é que os rejeita. Uma vez que reconheçam isto, tornam-se aliados naturais dos assalariados do campo.

- É preciso ressaltar que a possibilidade de aliança com os setores médios pobres, na luta pelo socialismo, só pode basear-se no fato de que, no capitalismo, eles estão condenados à extinção. Se não fosse assim, tais setores não teriam motivo para opor-se ao capitalismo. Este fato, curiosamente, é facilmente esquecido. Neste sentido, são inconseqüentes as propostas, freqüentes no campo da esquerda socialista, que pressupõem ser possível garantir a sobrevivência e revitalização econômica dos pequenos agricultores pobres, no capitalismo, com base na sua suposta capacidade de competir eficazmente com as grandes empresas. Tais propostas baseiam-se em concepções fantasiosas sobre a situação destes produtores e, em geral, refletem não um projeto socialista, mas uma irrealizável utopia baseada na pequena produção familiar e artesanal do passado.

São estas concepções que, no capítulo da reforma agrária, geram propostas que se limitam a reproduzir a reivindicação pela terra nua, própria do capitalismo nascente, como se esta pudesse se tornar produtiva sem a estrutura de meios de produção que o desenvolvimento capitalista já implantou. Supõe-se, absurdamente, que os pequenos agricultores pobres, desprovidos de meios de produção desenvolvidos e vinculações com os mercados de massa, possam, em terras imprestáveis desprezadas pela produção capitalista hegemônica, concorrer com sucesso com a gigantesca estrutura produtiva agrícola e agroindustrial estabelecida. Esta já concentra em suas mãos as melhores terras e os meios de produção a elas associadas, e é responsável pela maior parte da produção agrícola. Assim, os pequenos agricultores pobres só podem recuperar uma participação expressiva na agricultura por intermédio da sua reinserção na propriedade e na gestão da estrutura produtiva agrícola e agroindustrial já estabelecida. Este é o sentido da reforma agrária atualmente reivindicada pelo movimento organizado dos assalariados rurais, e constitui a única reivindicação através da qual os setores médios do campo podem escapar da proletarização inevitável.

Assim, as propostas do Governo Democrático e Popular, destinadas aos pequenos agricultores pobres, devem ter como diretriz abrir-lhes o acesso às modernas estruturas produtivas agrícolas e agroindustriais, através das reformas estruturais que alteram a estrutura do poder, em termos globais, no meio agrário.

Claus Germer é professor da Universidade Federal do Paraná e doutorando em Economia na Unicamp.