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Tempos singulares estes que o país vive. Tempos de massificação, de mitificação, de marketing político, de dominação da mídia

Tempos singulares estes que o país vive. Tempos de massificação, de mitificação, de marketing político, de dominação da mídia, de falsos valores, enfim. Neste quadro de vida política artificial, a tendência dos mais esclarecidos é de inconformismo e ansiedade diante da manipulação da opinião pública e da desenvoltura de certas figuras alçadas ao cenário nacional pelos grupos dominantes.

Fatos recentes, contudo, confirmam a sabedoria popular: a mentira tem pernas curtas e ninguém - nem mesmo a insidiosa Rede Globo - consegue enganar todo mundo o tempo todo. Primeiro, foi a queda de Collor. Em seguida, a CPI do Orçamento, com a revolução do lado pecaminoso, entre outras figuras influentes, do ex-presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, que setores de esquerda chegaram a saudar como reserva ética e como alternativa palatável para a sucessão de Itamar Franco. Depois, vieram à tona, com maior nitidez, os verdadeiros objetivos antinacionais e antipopulares do processo de revisão constitucional, aí incluído o polêmico comportamento do relator Nelson Jobim, agora conhecido por suas ligações com o patronato brasileiro.

Ainda que com certa demora, a onda de desmitificações também começa a atingir a antes radiante e badalada social-democracia à cearense, liderada pelo chefe nacional dos "tucanos", Tasso Jereissati, e pelo governador Ciro Gomes. Preservados pela fragilidade da oposição estadual e favorecidos pelos excepcionais gastos em publicidade de seus governos, a dupla, mais do que isso, tem sido beneficiária, nos últimos anos, dos estímulos e da cobertura dada por organismos internacionais comprometidos com o projeto neoliberal e pela grande mídia brasileira, igualmente envolvida nesse projeto. Agora, os questionamentos e as denúncias começam a surgir. Na edição de 02/02/94, a revista Veja registrou a presença, em Fortaleza, de 25 empresários vinculados às cem maiores companhias de capital estrangeiro instaladas no Brasil, que ali foram discutir a ampliação do lobby pró-revisão constitucional e o apoio a candidatos dispostos a defender seus interesses. Um dos líderes do grupo, o empresário Laerte Setúbal, apontou o deputado social-democrata Jackson Pereira como o intermediário das multinacionais junto à bancada cearense. Segundo a revista, as empresas estrangeiras "vão gastar US$ 2,5 milhões em campanha publicitária de estímulo à revisão e, além disso, pretendem escorar, com dinheiro, as campanhas dos parlamentares que votaram a favor das reformas necessárias para o desenvolvimento da economia do país".

Zeloso de sua imagem de defensor do contribuinte e da moralização da atividade política, o bom tucano Jackson Pereira reagiu à informação de Veja, explicando que na realidade articulou a ida dos empresários a Fortaleza, "mas para demonstrar com base na experiência dos dois últimos governos locais -, que não é preciso revisão constitucional para dinamizar a economia. O Jornal do Brasil, habitualmente generoso nos espaços dados a Tasso e Ciro , atribuiu ao deputado uma versão ainda mais reveladora: "o ponto de partida para a candidatura à Presidência da República de Tasso Jereissatti, presidente do PSDB, será um encontro com o grupo de Empresas Brasileiras de Capital Estrangeiro (EBCE) em São Paulo. Durante os três últimos dias, executivos de multinacionais instaladas no país estiveram em Fortaleza, discutindo o modelo de administração do Estado".

Esse episódio do encontro das multinacionais na capital cearense permite, na realidade, que sejam aceitas todas as versões dadas a respeito. Além do notório interesse do capital estrangeiro pela revisão, o Ceará passou a se constituir, desde 1986, com a eleição de Tasso para o governo do estado, em importante laboratório das experiências de empresários interessados em assumir o controle da atividade pública. Com esse objetivo, não é de estranhar que as multinacionais venham a conferir um tratamento privilegiado ao Ceará, nos seus gastos para a eleição de congressistas e na tentativa agora arrefecida pela opção por Fernando Henrique Cardoso - de fazer de Tasso seu candidato à Presidência da República.

Tasso é fruto de um movimento iniciado no final da década de 70 por um grupo de jovens empresários que assumiram a direção do Centro das Indústrias do Ceará, montando um projeto de controle político do estado, em confronto com as antigas lideranças dos coronéis Virgílio Távora, César Cals e Adauto Bezerra.

Um estudo feito pelo professor de Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC),Manfredo Oliveira, reconhece as preocupações sociais existentes no início da experiência dos empresários, mas assinala o fracasso do projeto, em razão do agravamento dos indicadores sociais, em contraste com a maior concentração de renda, denunciada em documento da Igreja Católica, que proclama: " ... nessa lógica, a pessoa não conta. O que importa é o lucro e a riqueza. Esta tem sido também a lógica de crescimento econômico do governo do Ceará. Apesar de a propaganda oficial camuflar a realidade, o projeto de desenvolvimento adotado pelas elites e dirigentes empresariais do nosso estado tem fortalecido de modo radical o neoliberalismo, acelerando o processo de concentração de renda e, conseqüentemente, de acentuadas desigualdades" (Isto É, de 09/02/94).

O estudo do professor Manfredo observa que, já no governo Jereissatti, passou de 80,3% para 82,4% a parcela da população que ganhava entre meio e dois salários mínimos. Em 1991, numa população de 6.512.345 cearenses, 37,8% dos habitantes com mais de dez anos eram analfabetos, 22% das crianças entre sete e quatorze anos não tinham escola; 60,9% das residências não tinham esgoto; 62,7% não contavam com abastecimento de água adequado; 71,5% dos trabalhadores do Estado não contribuíam para a previdência e 61,1% tinham renda de até meio salário mínimo".

"Numa palavra: 3.034.518 pessoas vivem no Ceará em condições de miséria, isto é, acima de 40% da população. No campo está acontecendo uma substituição da lavoura tradicional, que abastecia a mesa do pobre, pela lavoura comercial, sobretudo por aquela destinada à exportação". Assim prossegue o estudo - "as grandes plantações de caju e frutas tropicais tiram o espaço da mandioca, do jerimum e de outros produtos tradicionais da mesa cearense. Podemos dizer que a população do estado tem fome crônica. Até a seca traz vantagens políticas e econômicas para as elites agrárias. No Orçamento de 93, foram destinados 476 milhões de cruzeiros reais para a agricultura e 730 milhões para o turismo, que é uma grande fonte de renda, não tão grande fonte de empregos".

"No litoral, a pesca predatória substitui a pesca artesanal. O novo aqui são os conflitos envolvendo as comunidades pesqueiras com as imobiliárias ligadas à exploração turística. Os grandes projetos turísticos não têm beneficiado as comunidades locais por não absorverem, mão-de-obra a não ser para o subemprego".

Nessa ênfase dada ao turismo reside um dos principais segredos do "novo Ceará", que na realidade pode se resumir a uma "nova Fortaleza", que, aos menos avisados, irradia, fora do estado, a imagem de uma economia em expansão e de uma população satisfeita com esses tempos ditos social-democratas. Com efeito, salvo os gastos em propaganda, a expansão do turismo é menos resultado da ação pública e mais conseqüência da inquietação dessa indústria, que nas últimas décadas tem passeado pelas praias nordestinas, ao sabor dos modismos e de iniciativas, ousadias e até ilicitudes do setor privado. O crescimento imobiliário de Fortaleza, com expressiva participação de estrangeiros, é notório e já dá margem a indagação para além dos atrativos naturais que a cidade oferece. Se o turismo é uma indústria que freqüentemente envolve a lavagem de dinheiro, porque na capital cearense seria diferente?

Beneficiários da hospitalidade do governo estadual, ou dos empresários em torno dele reunidos, jornalistas e artistas retribuem as atenções recebidas, proclamando, nos veículos e palcos do Centro-Sul, a modernidade e os encantos primeiro-mundistas do Estado, bem como as virtudes pessoais e políticas que vêem nos anfitriões Ciro e Tasso. Na realidade, transmitem apenas a visão - assim mesmo parcial - da vitrine que lhes é apresentada, Fortaleza. Uma visita mais demorada e menos comprometida daria margem a uma avaliação mais correta. A miséria que crescentemente migra do interior calcinado para a capital pode ser vista a poucos quilômetros do centro da cidade, na periferia, onde a fome, a falta de emprego e de saneamento permitem a expansão da epidemia do cólera que faz do Ceará o estado recordista nessa doença, além de outros males da subnutrição.

Incapaz, impotente ou incompetente para resolver esses problemas, Ciro Gomes acumula ressentimentos, distribuindo acusações a adversários e críticas aos correligionários. Ele já disse que sente "nojo dos políticos", que hoje "se juntaram todos os demagogos para mistificar a idéia de retomada do desenvolvimento do país" e que "Lula não tem capacidade para governar". Qualquer semelhança não parece mera coincidência. Em matéria sob o título "O Collor do Ceará", Isto É afirma: "o perfil do governador do Ceará tem visíveis semelhanças com o do hoje rejeitado ex-presidente cassado por corrupção. Ambos começaram carreiras políticas no PDS dos governos militares e com cargos concedidos por seus pais. Se o senador Arnon de Mello presenteou o filho rebelde com a Prefeitura de Maceió, o ex-prefeito de Sobral, Euclides Ferreira Gomes, presenteou o filho recém-formado, em 1982, com o cargo de procurador da prefeitura".

Ainda segundo a revista, "já na Assembléia Legislativa, Ciro garantiu para o pai, a mãe e um irmão cargos de confiança no governo Gonzaga Mota. Quando Gonzaga Mota rompeu com os coronéis Adauto Bezerra, Virgilio Távora e César Cals, a família Ferreira Gomes, que fazia parte da cota do coronel Cals, perdeu os três empregos no governo". Um passado, como se vê, comprometedor ... para quem é tão agressivo na condenação às velhas práticas da política e tão cioso da sua imagem, cultivada, em 1993, a um custo de 2.126.000 dólares para os cofres do Ceará, quinto maior gasto de publicidade feito entre os 23 governos estaduais.

Marcondes Sampaio é editor do jornal do Inesc.