Internacional

A América Latina rural encontrou-se em Lima, no Peru, de 21 a 25 de fevereiro, no 1º Congresso Latino-americano de Organizações do Campo

 

A América Latina rural encontrou-se em Lima, no Peru, de 21 a 25 de fevereiro, no 1º Congresso Latino-americano de Organizações do Campo. Participaram do evento um total de 251 delegados, pertencentes a 84 entidades de dezessete países. Dirigentes sindicais, representantes de entidades camponesas e lideranças de organizações indígenas debateram dez grandes temas durante o período: coca; direitos humanos; reforma agrária; nacionalidades; comunicação e formação; mulher, infância e juventude; meio ambiente; educação e saúde; desenvolvimento e modernização da agropecuária; e organizações do campo.

Esse congresso resultou de uma maratona iniciada em 1989, na Colômbia, durante encontro sobre os quinhentos anos; passando pela Nicarágua, em outubro de 1992 (3º Encontro Continental dos 500 Anos), onde se tirou a comissão organizadora; e finalmente Salvador (BA), em julho do ano passado, quando ficou acertada a sua realização em fevereiro. Participante dessa maratona, Egídio Brunetto, da direção nacional do Movimento Sem Terra (MST), conta que a idéia era fazer um congresso massivo: "os países tinham que formar um comitê e este definiria quem iria. Tinham que ser entidades representativas, de luta, e o critério era levar gente de base, não só os 'capas pretas' de sempre." No caso brasileiro funcionou: a maioria dos cinqüenta delegados (quinze mulheres) era de quadros intermediários, do MST, Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais (DNTR/CUT), Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Movimento dos Atingidos por Barragens.

A Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), do Brasil, não quis participar porque o evento não seria de entidades sindicais. Esse argumento é parcialmente verdadeiro, a maior parte das organizações de camponeses da América Latina não é sindical. Mas isso não justifica a ausência. O DNTR/CUT, com a maioria de seus sindicatos de pequenos produtores (ou camponeses), não apenas foi ao congresso como participou de sua organização desde o início.

O simples fato de o Congresso acontecer, na opinião de Brunetto, foi um avanço para o movimento camponês da América Latina, porque "permitiu a realização de um intercâmbio muito grande e articular a organização no continente, com entidades de lutas." Segundo ele, contribuiu para o clima de consenso o fato de não fecharem questão sobre conceitos: "foram índios, e assalariados - trabalhamos a questão do campo."

Na América Latina hoje, pelos debates nos grupos e em plenário durante o congresso, e por suas resoluções, ficou evidente que a questão do campo vai muito além do problema da posse da terra. Engloba também a preservação ambiental (aí incluídas as questões das barragens, dos agrotóxicos, da contaminação de rios e lagos por minerações, da exploração florestal ... ); o respeito aos direitos dos indígenas à vida, aos seus hábitos culturais e territórios (reservas); o cumprimento das leis e obrigações trabalhistas em relação aos assalariados; e condições de viabilização da produção agrícola familiar, o que inclui o desenvolvimento das áreas rurais.

Toda essa movimentação de indígenas e camponeses na América Latina, desde o final dos anos 80, é resultado da pressão do aumento da miséria rural, causado pelas políticas neoliberais em vigor em todos os países do continente. O neoliberalismo arrebenta os agricultores pobres. Deixa livre a importação de alimentos; retoma terras reformadas; eleva os juros, tornando proibitivo o crédito; e estimula as agroindústrias exportadoras e os grandes empreendimentos agrícolas, florestais e de mineração, levando-os a tomarem as suas terras.

O diagnóstico da situação do campo em todo o continente, apresentado por João Pedro Stédile, do MST, do Brasil logo no início do congresso, dava conta da existência de forte concentração da terra, agroindustrialização generalizada, desemprego estrutural elevado e, conseqüentemente, concentração da população nas grandes cidades. Apontava que os capitalistas não precisam mais da reforma agrária (essa fase já teria sido superada) e que isso implicaria "a necessidade de mudanças mais profundas" nesses países.

A América Latina tem hoje 530 milhões de habitantes e uma dívida externa de US$ 450 bilhões. Mais da metade da sua população (270 milhões) é pobre - e desses, um total de 76 milhões está na área rural, de acordo com estudo realizado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), órgão das Nações Unidas, em 114 países em desenvolvimento. Chama a atenção nesse estudo ("O Estado da Pobreza Rural no Mundo"), não apenas a quantidade de pobres, mas também os "destaques": a Bolívia aparece em 1º lugar, com 97% da sua população rural abaixo da linha de pobreza; em 5º lugar, o Peru, com 75%; e em 6º o Brasil, com 73%. O Brasil destaca-se mais uma vez, ocupa o 4º lugar, entre os 114 países, onde a miséria rural mais aumentou, no período 1965-88.

As resoluções do Congresso, ricas em diagnósticos e propostas, não apresentam grandes novidades do ponto de vista político. Deverão servir pelo menos como referencial para as lutas dos próximos anos. Os destaques ficaram por conta das questões da coca, das organizações e do desenvolvimento do setor agrícola.

A cultura da coca, específica dos países andinos (Bolívia, Peru, Colômbia), está na mira dos Estados Unidos, que vem investindo para exterminá-la. Considerada entorpecente pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a coca tem a sua comercialização proibida no mundo inteiro. Essa situação coloca em risco a sobrevivência de milhões de camponeses/indígenas desses países e agride seus hábitos culturais. Não fazemos idéia no Brasil da importância que a coca tem para esses povos. A folha é utilizada, segundo eles, há 5 mil anos na região, para diminuir o efeito da altitude e da fome e como medicamento. Dizem que não utilizam-na para fazer cocaína, isso seria um "desvio" do homem branco. Ser agricultor a 4 mil metros de altitude, com temperaturas entre 18ºC negativos e 17ºC positivos, só mesmo mascando muita folha de coca.

Protesto com proposta que obtenha resultados concretos para o movimento. Assim foram definidas as formas de luta e resistência, dentro do tema organizações camponesas. E foram além, deixando claro que no contexto atual "deve-se superar a luta meramente sindical e reivindicativa, levantando projetos alternativos, iniciativas de leis e sobretudo organizar formas de gestão e desenvolvimento empresarial a partir do movimento camponês."

Mexendo na ferida, propõem renovação e capacitação (nas organizações) em todos os níveis, o que inclui renovação de lideranças, discurso e práticas. Batem no burocratismo, na separação dos dirigentes de suas bases, o descompasso entre o que dizem e o que fazem. "Deve-se democratizar e modernizar as estruturas de nossos sindicatos, abrindo espaço a novas formas de organização e representação, pondo força na presença da mulher e da juventude, ampliando a sua participação política e capacitação ( ... )"

Defendendo a agroindustrialização ("transformar antes que transporta?') em nível local, como forma de gerar empregos e agregar valor aos produtos agrícolas, "nesta nova etapa", os indígenas e camponeses tratam da autogestão conscientes de que ela "só é possível com autofinanciamento, mercado, recursos e gestão eficiente, além de uma boa e eficiente organização." São os novos tempos. Os neoliberais que se cuidem.

Apesar de existirem muitas organizações de camponeses, assalariados, indígenas e sem terra (algumas de apenas uma categoria, outras com várias) em todos os países, os delegados presentes ao congresso não demonstraram conhecer além das suas. Pouco dispunham de informações precisas sobre a estrutura fundiária, quantidade de trabalhadores no campo etc. Procuramos montar um quadro com o que foi possível obter.