Nacional

Na Caravana das Águas quem faz o relato é a população local, são seus representantes, são eles o centro e o foco principal. Tomam a palavra e ocupam a posição de atores da história

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A Caravana da Cidadania, que está percorrendo todo o país, no trecho entre Manaus e Belém ganhou o nome apropriado de Caravana das Águas. Apropriado porque na Amazônia, em forte medida, o rio continua comandando a vida. A sobrevivência da população está relacionada com os recursos provenientes das águas, em especial o peixe, que é o principal item da alimentação. Uma parte significativa dos amazonenses trabalha em contato com as águas, desloca-se através dos rios e transporta seus produtos e mercadorias principalmente de barco. A água é também o principal veículo de doenças endêmicas responsáveis pelas altas taxas de mortalidade, destacando-se a mortalidade infantil. As medidas sanitárias necessárias para mudar esse quadro dependem de modos adequados de se lidar com a água. Por todas essas razões, além das culturais que se expressam em toda a produção literária, musical, visual, plástica, cênica e arquitetônica, nada mais apropriado do que denominar esse importante acontecimento de Caravana das Águas.

Há hoje uma expressão que é cada vez mais forte e freqüente entre os movimentos e as lutas sociais e na própria imprensa: a reforma aquática. Com essa expressão seus defensores querem chamar a atenção para o fato de que a reforma agrária na Amazônia será incompleta sem a implementação de uma transformação nas formas de apropriação e uso dos recursos dos rios, lagos, paranás, igarapés etc., porque na realidade muitas riquezas e fontes de sobrevivência estão localizadas nesses elementos da paisagem regional. Isso ao mesmo tempo significa tomar consciência das características específicas que marcam, não apenas a região do ponto de vista da natureza, mas de sua relação com a sociedade regional. As mudanças necessárias para retirar o homem da Amazônia do abandono, do isolamento e aproximá-lo dos benefícios básicos da cidadania devem incluir novas formas de utilização desses recursos fundamentais que são as águas.

A viagem

Essa viagem possui uma particularidade em relação à tradição de relatos de viagem que conhecemos da Amazônia. De um modo constante, as viagens, em diferentes momentos da história da Amazônia, relatam as impressões do viajante, não havendo testemunhos das populações e dos indivíduos mencionados. As pessoas, nos relatos dos viajantes e cronistas, estão condenadas ao silêncio. Na verdade, aparecem como figurantes, como elementos cenográficos e, quando são destacados, servem apenas de exemplificação de costumes e modos de conduta nativos.

Na Caravana das Águas ocorre uma inversão dessa forma de construção do conteúdo do relato, pois aqui, quem narra é a população local. Toma a palavra e ocupa a posição de atores da história. A Caravana da Cidadania tem se realizado em todo o país exatamente para ouvir a voz de brasileiros que vivem sem meios de dizer o que sentem e o que pensam e, sobretudo, o que esperam de mudanças políticas. A partir dessas vozes das diferentes regiões tomamos consciência da quantidade de questões que são comuns a todo o Brasil e problemas que são bem particulares das regiões. A caravana serve, principalmente, para sensibilizar nossos governantes para essas particularidades e assim poderem romper com a prática de governar ignorando o que há de específico em cada situação. Nesse sentido, Lula e a caravana estão recebendo uma verdadeira aula de Brasil, o que cria uma situação privilegiada de governar com conhecimento dos problemas em suas nuances e particularidades.

Nosso relato aqui, portanto, foge forçosamente da tradição dos relatos de viagem sobre a Amazônia, nos quais a paisagem é que ocupa verdadeiramente o centro da narrativa e os homens, ocasionalmente, servem para completá-la ou, pitorescamente, diferenciá-la e matizá-la.

A Caravana das Águas conseguiu despertar o interesse de um grande número de pessoas, não apenas em cidades como Belém, Manaus e Santarém. Em todo o interior, muitos a acompanharam, especialmente pelo rádio. Todos que vivem aqui sabem da importância do rádio como meio de comunicação quase único ou único para as populações do interior.

Foi através do rádio que as localidades a serem visitadas, ou não, ficavam informadas sobre a caravana: seu deslocamento ao longo do rio e o próprio desenrolar da programação. Também graças ao rádio a caravana foi recebida sempre de forma festiva em todas as localidades percorridas e por um número de pessoas que às vezes surpreendia a própria comissão de recepção.

Houve também muito interesse de pessoas que vivem em Manaus, mas que não são das localidades percorridas. Os programas de rádio incluíam também a participação delas, convidadas a comentar a Caravana e os problemas de seus respectivos municípios, ampliando, assim, a repercussão do importante evento político que se transformou a viagem de Lula e dos demais participantes.

Essa é a forma de conferir a real dimensão da Caravana das Águas, principalmente pela demonstração da capacidade de organização do PT e do próprio empenho de importantes grupos locais simpáticos à idéia de termos Lula na Presidência da República. O PT na região, com a organização da Caravana, demonstrou que, apesar de pequeno, é uma força em capacidade organizativa, pois conseguiu em tempo limitado levantar os recursos para tornar possível a viagem. Essa também é uma ocasião única para esclarecer à opinião pública de que maneira conseguimos levantar o dinheiro necessário para financiar nossas atividades.

Manaus

A Caravana da Cidadania teve, em Manaus, alguns momentos que devem ser destacados. O primeiro foi o debate ocorrido no auditório da Associação Comercial do Amazonas, com a participação de segmentos organizados da sociedade discutindo o tema: Perspectivas de desenvolvimento para o estado do Amazonas. O auditório foi pequeno para comportar todo o público interessado. Como já era esperado, o tema mais importante do debate foi a Zona Franca de Manaus e as possíveis saídas para um novo modelo de desenvolvimento alternativo ao modelo vigente representado pela Zona Franca. Um ponto que deve ser destacado no debate é a defesa de uma política econômica que valorize a pequena e a média empresa.

Essa reunião contou com uma expressiva representação de empresários locais, sindicalistas, universitários e lideranças políticas. Os empresários presentes receberam Lula e sua comitiva, de forma bastante respeitosa e cordial, tratando-o como o provável chefe da Nação. Os empresários, representados por Carlos Souza, procuraram ressaltar a importância da Zona Franca para o desenvolvimento regional, tendo se transformado em um patrimônio da região e do Brasil, e tornando-se instrumento de implantação do setor industrial mais morno do país, gerando uma considerável quantidade de empregos diretos e indiretos. Ao mesmo tempo, reconheceram que o modelo industrial da Zona Franca tem problemas e que chegou o momento de avaliar rigorosamente seus resultados e, portanto, seu futuro. Um destaque especial deve ser dado à participação de Samuel Benchimol. Além de empresário conhecido, é professor universitário e um dos principais pesquisadores da região, autor de vários livros sobre a Amazônia. A posição de Benchimol foi corajosa em relação ao exame crítico do modelo de desenvolvimento regional representado pela Zona Franca de Manaus, que após todos esses anos não conseguiu desenvolver uma estrutura de produção baseada em pesquisa própria e com autonomia tecnológica. Para ele, é possível que estejamos chegando no momento de buscar um novo modelo de desenvolvimento nessa direção e que um novo governo, uma nova concepção de governo relacionada ao desenvolvimento regional e nacional, represente a possibilidade de ingressarmos em um novo momento da vida regional.

Lula conseguiu, através de um gesto, posicionar-se com clareza. Para expressar de que modo a Zona Franca aparece na opinião pública, ergueu dois conjuntos de documentos. Em uma mão documentos a favor, em outra, documentos contrários. Os primeiros eram artigos publicados nos jornais locais sobre o êxito financeiro e econômico da Zona Franca, de seu faturamento em milhares de dólares e da correspondente arrecadação. Como disse Lula, se o leitor for se basear nesse conjunto de artigos da imprensa, a Zona Franca é uma maravilha. Mas, infelizmente, essa mesma imprensa também publicou artigos e reportagens que mostram a outra face da Zona Franca, em que aparecem os problemas da cidade, com seu crescimento explosivo, sua ausência de urbanização, a multiplicação de favelas, o desemprego que colocou na rua mais da metade dos trabalhadores do Distrito Industrial em poucos meses, as condições de vida do povo da cidade, o abandono do interior, a crise da agricultura e do abastecimento, a dependência quase completa de Manaus, que compra fora praticamente tudo o que sua população consome.

Para Lula, é necessário que a própria região use inteligência e vontade para encontrar alternativas com o objetivo principal de melhorar as condições de vida de sua população.

A visita de Lula e sua comitiva ao Comando Militar da Amazônia, por outro lado, possui um particular destaque na redefinição de papéis das Forças Armadas no âmbito de um governo que transformará a idéia atual de fronteira.

A Amazônia em sua história mais recente tem sido objeto de um forte movimento de militarização, pois como área de fronteira, representa para o Estado uma questão de segurança nacional, um espaço de posição estratégica na geopolítica de conteúdo militar. A transição democrática não tocou nesta questão. Portanto, um novo projeto político para o Brasil e para a Amazônia deve enfrentar a questão da fronteira de modo a desmilitarizá-la e considerá-la espaço aberto e não mais espaço vigiado em função de eventuais movimentos de guerrilha e tráfico de drogas em países vizinhos. A fronteira para um Governo Democrático e Popular deve ser um campo de aproximação e de convivência com os povos e países vizinhos.

A expectativa que estamos alimentando em relação ao diálogo com os militares é de estabelecer uma nova compreensão do papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas na Amazônia e demais áreas de fronteira. O momento da história mundial é de uma crescente diminuição de fronteiras nacionais que se transformam em porta aberta, ponte que facilita e convida os povos a aproximação com países vizinhos.

Por outro lado, a Amazônia é a região mais atrasada e esquecida do país. Há, portanto, muito o que fazer para melhorar as condições de vida de sua população. Há déficits significativos na área das comunicações, transporte e abastecimento para pontos de difícil acesso. Certamente, as Forças Armadas poderão servir de importante apoio logístico na implementação de programas sociais e de desenvolvimento que busquem diminuir o atraso em que estamos mergulhados. Em algumas atividades, os militares acumularam experiência e conhecimento, trata-se, então, de redefinir suas ações para que se tornem instrumento de construção da cidadania.

A visita da caravana ao Zumbi, bairro da periferia de Manaus, foi a oportunidade de testemunhar a forma irresponsável pela qual têm sido implementadas as políticas públicas na Amazônia. Não apenas Manaus, mas todas as capitais da região têm apresentado um incremento de população que está muito acima dos níveis aceitáveis em qualquer parte do mundo. O resultado é que essas cidades transformam-se em um verdadeiro caos, inviabilizando sua administração. Por outro lado, os métodos políticos locais notabilizam-se por fomentar esse grau de desorganização social, de perda da dignidade das pessoas, de desemprego e subemprego, pois dessa forma a população torna-se mais facilmente presa às técnicas eleitorais de clientela que dão o tom da política local.

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Universidade da cidadania

Foi possível ver de perto o que está por trás das taxas de crescimento populacional de capitais como Manaus, Belém, Porto Velho e Rio Branco. O quadro completa-se com o esvaziamento da maior parte dos municípios do interior que não dispõem de ocupação econômica para suas populações, particularmente para aqueles que chegam em idade de ingressar no mercado de trabalho. Além disso, as cidades e vilas da Amazônia não dispõem de serviços básicos, indispensáveis à vida urbana, o que estimula e força o êxodo para centros urbanos melhor estruturados.

Um ponto que distinguiu a Caravana das Águas foi aquilo que chamamos de "universidade da cidadania". Tivemos a bordo ao longo de todo o trajeto vários cientistas, especialistas e estudiosos de diferentes campos de investigação na Amazônia que discutiram e trocaram idéias com os demais participantes da viagem. Eles foram importantes também no momento de passar informações para a imprensa, de responder aos repórteres de rádio e televisão que estiveram cobrindo a caravana, tomando possível o acompanhamento e a avaliação da opinião pública.

A idéia do convite feito a esses pesquisadores coincide com o próprio sentido da Caravana da Cidadania de buscar conhecer melhor o Brasil, as suas extremas desigualdades, os problemas particulares de cada região, de cada parcela de seu povo. As atividades encerravam-se com uma reunião à noite no convés do barco, onde se trazia para a discussão as questões mais relevantes e mesmo as mais polêmicas, de modo que fosse possível produzir sugestões para o Programa de Governo. Uma parte desse grupo que também havia trabalhado em uma primeira proposta com pontos a serem discutidos para o Programa do Governo do PT, distribuiu cópias do documento para que fossem feitas críticas e sugestões durante as reuniões da "Universidade da Cidadania".

Uma das posições defendidas nessa ocasião foi que um programa de governo, na parte relativa à Amazônia, deveria dar um tratamento especial a duas questões de âmbito internacional que afetam a região: a questão ambiental e da biodiversidade, e a questão do destino das etnias. Outra convicção, expressa na Carta da Caravana das Águas, é que "as soluções para a Amazônia estão na própria Amazônia".

Abandono
A Caravana da Cidadania, ao percorrer todas as regiões brasileiras, pôde sentir o quanto o país está envolvido em incompetência e descaso. Certamente, nenhuma região apresentou um quadro semelhante de populações esquecidas e abandonadas como a Amazônia, especialmente o interior. Lá estão os brasileiros mais esquecidos e mais entregues à própria sorte. Essa situação tem se agravado a cada década, pois, de qualquer modo, temos o parâmetro de um país que passou por um processo de desenvolvimento que se traduziu em mudanças significativas, tanto no campo quanto nas cidades. O desenvolvimento brasileiro foi o crescimento das desigualdades, de profundos desequilíbrios entre regiões e populações.

Percorrer o interior da Amazônia como fez a Caravana das Águas, conversar com seu povo, conhecer suas penosas condições de vida, é tomar consciência dos contrastes que existem no Brasil em relação à modernidade e o atraso. E aqui de uma maneira da do que em qualquer outra parte do país.

Esta é uma caravana de sensibilização. Com certeza, Lula foi tocado pelo que viu e ouviu em todo o país, mas deve ter ficado atento para o fato de que, além de esta ser a região do Brasil mais esquecida, há uma tragédia humana de miséria e abandono, e ao mesmo tempo, abundância de recursos e riquezas que pisamos e vemos, mas que percebemos, não estão relacionadas com a solução dos problemas.
A caravana ouviu relatos de professores que remam duas, três horas numa canoa para chegar até à escola. De trabalhadores que morrem ou ficam mutilados por picada de cobra porque não têm como se deslocar até um posto de saúde que disponha de soro antiofídico, situação bastante freqüente na Amazônia, mas que dificilmente ocorre em outras regiões.

Percorrendo esses trechos da Amazônia a caravana esteve em contato com sua área mais populosa e de mais concentrada atividade econômica e, no entanto, é bastante patente que estamos no Brasil mais esquecido. Os brasileiros que aqui vivem, tendo uma noção clara de seu próprio abandono, compreendem as necessidades de mudanças profundas no modo de governar e mantém uma expectativa bastante aguda em relação às possibilidades de um modo mais justo de administrar os assuntos públicos. As denúncias e os documentos entregues à caravana ao longo de toda a viagem dão um testemunho dramático dessa consciência dos problemas e de caminhos para as suas soluções.

Uma das questões críticas da Amazônia é o transporte. As grandes distâncias e o fato de ter nos rios as vias de deslocamento naturais põem o transporte fluvial como um fator do qual passa a depender praticamente tudo.

Mudar as condições atuais de vida da população, reduzir o atraso e estagnação econômica em que se encontra todo o interior da Amazônia, implica uma modificação substancial nos padrões de transporte atuais, para meios modernos, seguros e baratos.

É possível constatar também que em vários sentidos o transporte fluvial da Amazônia é de qualidade inferior ao da navegação dos fins do século passado e início deste. Assistimos à população ser transportada nessa virada de século em condições inaceitáveis do ponto de vista da segurança, dos padrões sanitários, da rapidez, dos preços e, sobretudo, de respeito à dignidade humana e ao direito de todos os cidadãos de serem tratados como tais. A cidadania e a implantação de um padrão de existência mais digno para a população regional estão estreitamente relacionados a uma transformação radical dos meios de transporte utilizados, que na verdade podem ser tomados como símbolo de atraso e do primitivismo em que está mergulhada a Amazônia. A caravana conheceu de perto a situação dos transportes também como um elemento responsável pela crise da produção e do abastecimento. A região é campeã em naufrágios e acidentes com embarcações, provocados pela falta de segurança, superlotação e excesso de cargas. Essa situação já está presente no próprio imaginário popular e ressoa na criação artística. Elson Farias, um dos poetas mais representativos da literatura regional, apreendeu de forma surpreendente em Romanceiro a tragédia das águas nesse trecho de um de seus poemas:

Muita família perdida
destroçou-se nessa viagem
muitos planos de riqueza
se esfumaram na miragem!
A tolda toda alagada
navio vencido de andar
rio abaixo acima
Os mastros nus de bandeiras,
alegria dos meninos
perdidos nas ribanceiras.

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Saúde: tudo por fazer

As condições de abandono e de baixo exercício da cidadania expressam de forma mais completa no campo da saúde. Os profissionais da área, mais identificados com projetos de mudança do quadro atual, afirmam que a situação é grave, mas pode ser radicalmente modificada com um conjunto relativamente limitado de ações. A primeira seria cobrar a efetiva implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) com todas as suas características, o que resolveria cerca de 90% dos problemas de saúde da população brasileira. Trata-se de um caso em que o simples cumprimento das leis referentes à saúde já representaria um grande passo.

O outro princípio é que a saúde não depende apenas das ações específicas de sua área, ou seja, é necessário articular suas mudanças com o conjunto das mudanças necessárias para promover a sociedade à condição de normalidade da cidadania. Medidas de caráter concreto são: manter um braço assistencial em conjunto com um braço preventivo e racionalizar os atendimentos, sobretudo em razão da escassez de recursos, instituindo a referência e a contra-referência de modo que os doentes encaminhados para um centro de maior complexidade retornassem ao ponto de origem.

A questão da saúde na Amazônia está relacionada de forma evidente com as maneiras de se lidar com a água. Existe um alto percentual de mortalidade infantil causada por veiculação hídrica. Exemplos são as gastroenterites e as parasitoses intestinais e as imunopreveníveis, isto é, que podem ser prevenidas com vacinas, como é o caso da difteria, coqueluche e sarampo. Numa região com as características da Amazônia, além da questão preventiva, existe a do acesso aos serviços de saúde.

Cidadania limitada

A caravana teve uma aceitação constante por onde passou, sobretudo porque parecia representar uma chance de exercício da cidadania que é muito limitado e muitas vezes inexistente nas áreas rurais e nas periferias das cidades.

Então, poder discutir com pessoas como as que estavam presentes na caravana, fazer denúncias e tirar dúvidas sobre questões da atualidade política do país, fez aparecer o forte sentimento de participação latente entre esses brasileiros anônimos, que muitas vezes são herdeiros e defensores de bandeiras de lutas seculares, como foi o caso de remanescentes de quilombos apresentados à caravana. De modo geral, o que se pode perceber é que as comunidades humanas do interior estão excluídas da cidadania. A pouca participação, em parte, pode ser explicada pela cultura política regional, fortemente impregnada de violência, intolerância e demais formas primitivas de controle e intimidação, articulada com o lado "moderno" do populismo, do empreguismo, do clientelismo governamental e privado. O próprio crescimento de partidos de perfil progressista e popular encontram sérios obstáculos para traçar alternativas a essa cultura política constantemente realimentada por interesses de todo tipo. Vivemos, por assim dizer, um processo de folclorização da política, que expressa com toda força essa cultura que tem no povo seu campo de ação, sobretudo de elites predatórias e de oportunistas que encontram na política eleitoral um terreno favorável para comportamentos que vão do pitoresco ao criminoso.

Vontade de mudar

Um governo com perfil diferente dessa tradição de fazer política desperta nos brasileiros - e na Amazônia não tem sido diferente - novas expectativas e um entusiasmo novo em participar da discussão política e em vislumbrar um resultado favorável a Lula nas próximas eleições presidenciais. Mas há também aquelas manifestações mais fortes de desejos de mudanças, como foi a reunião da caravana com as lideranças indígenas em Barreirinha e a permanente participação das mulheres em praticamente todas as cidades e localidades percorridas. A caravana em muitos momentos nos pareceu representar essa antevisão de um país caminhando para tão esperadas mudanças.

Renan Freitas Pinto é sociólogo e professor adjunto da Universidade do Amazonas.

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