Mundo do Trabalho

Os grandes desafios do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

Neste ano, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está completando dez anos. O 1º Encontro Nacional, realizado em Cascavel, Paraná, em janeiro de 1984, reuniu dezenas de lideranças da luta pela terra de todo Brasil: sindicalistas, agentes de pastoral e militantes do campo em geral, que resolveram, numa decisão histórica, organizar a luta pela terra em forma de um movimento.

Os militantes e lideranças que atuavam nos sindicatos, nas igrejas etc., avaliavam que era necessário criar um novo instrumento de luta dos camponeses que permitisse articular, mobilizar e conquistar com maior facilidade os latifúndios.

Antes do encontro, já se acumulava uma enorme experiência de lutas. Tínhamos as referências históricas do que haviam sido as lutas de Canudos, Contestado, Porecatu etc. A organização das lutas das ligas camponesas, lutas sindicais e a luta de resistência dos posseiros no Norte. E tínhamos experiência concreta em dezenas de ocupações de terra que foram realizadas no período de 1978-84.

O Encontro serviu para sistematizar essa experiência e formalizar o movimento em nível nacional, precisando seus objetivos e sugerindo formas de lutas mais eficazes.

Nesse sentido, foram definidos oito objetivos, destacando-se: lutar pela terra, por uma reforma agrária ampla e por mudanças sociais. Em relação às lutas, o elemento principal que diferenciava de outras correntes reformistas que atuavam no campo era a compreensão de que apenas a ação de massas poderia trazer avanços e a conquista de nossos objetivos. E a ação das massas camponesas poderia se dar de múltiplas formas: caminhadas, passeatas de protestos, ocupações de órgãos públicos, assembléias massivas, concentrações e, sobretudo, entendíamos que a ocupação dos latifúndios se revelava como a forma mais eficaz de pressionar os latifundiários, o governo e o aparato do Estado em geral.

Com o transcorrer dos anos, aumentando a experiência organizativa e os embates político-ideológicos, foi possível se ter uma idéia mais clara da natureza e do caráter desse movimento.

No 5º Encontro Nacional, realizado em 1989, o MST se autocaracterizou como um movimento de massas, com base social camponesa, mas não apenas de camponeses. Havia um caráter sindical, pois em certos aspectos a luta pela terra é corporativa e, portanto, sindical. E também um caráter popular, pois em nossas lutas envolviam-se todas as pessoas e não apenas uma categoria. Tínhamos objetivos e reivindicações típicas de um movimento popular, um caráter político, na medida em que lutávamos contra a classe dominante como um todo (latifúndios, banqueiros, burgueses em geral, proprietários de terra) e contra o Estado, por mudanças sociais.

Muitos companheiros tiveram dificuldades de compreender a natureza do MST. Alguns nos acusavam de "igrejeiros", outros gostariam de nos ver dissolvidos dentro dos sindicatos e da CUT, e outros, menos conhecedores das lideranças do campo, nos acusavam de ser uma espécie de partido político. No entanto, a experiência histórica nestes dez anos tem demonstrado o acerto da natureza de nosso movimento. E hoje, não só podemos colher bons frutos organizativos, com vitórias concretas em relação aos nossos objetivos, como podemos nos orgulhar de que, como um setor organizado do campesinato, também contribuímos para o avanço e organização de outras entidades, como os sindicatos, a CUT, os movimentos semelhantes (dos atingidos por barragens, das mulheres agricultoras) e a organização partidária no campo.
Nestes anos, temos enfrentado alguns momentos históricos cruciais na luta de classes no campo. De 1985 a 1989, passamos por um processo de ofensiva, com a realização de muitas ocupações massivas e históricas. Havia um clima de democratização e de ascenso dos movimentos sociais e de certa euforia, em função da derrocada da ditadura e do clima de agitação política. O governo Sarney, pressionado por esse avanço, realizou muitas desapropriações e, praticamente, todas nossas ocupações foram vitoriosas. Paralelamente, no entanto, os latifundiários organizaram seu braço armado, através da União Democrática Ruralista (UDR) e passaram a exercer a repressão direta, acobertados pelo Estado. Perdemos muitos companheiros. Mas nossa tática de realizar sempre ações massivas anulava a ação dos pistoleiros e da UDR. Por outro lado, a arrogância, terratenente de lançar um candidato às eleições (Ronaldo Caiado) e a certeza da impunidade que os levou a assassinar Chico Mendes serviram como sepulcro político da UDR. Hoje ela foi execrada publicamente. Derrotada. E os latifundiários fazem suas articulações com outros mecanismos.

A derrota eleitoral de 1989 da candidatura Lula e o ascenso do governo Collor representam uma derrota para toda a classe trabalhadora e nos atingiu duramente no campo. O governo imprimiu medidas anti-reforma agrária. Não houve nenhuma desapropriação, nenhuma família assentada. A falta de conquistas concretas desmotivou e levou as massas ao desânimo. Por outro lado, acionou todo aparato repressivo do Estado, através da Polícia Federal, das polícias militares e do Poder Judiciário para aniquilar qualquer organização de camponeses, em especial nosso movimento. Tivemos, em média, 120 lideranças presas por ano e por muitas semanas, muitos torturados, muitos processos, perseguição e vigilância permanente. Criou-se um departamento dos sem terra dentro da Polícia Federal (que, aliás, ainda deve existir).

A queda do governo Collor foi uma luz no fim do túnel. E no governo Itamar conseguimos recuperar algumas vitórias, mais políticas do que práticas, como a aprovação de duas leis regulamentando a Constituição - Lei Agrária e do Rito Sumário -; a indicação de um presidente progressista para o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra); a retomada, embora lenta, das desapropriações e a volta da liberação de recursos de crédito para os assentamentos (Procera).

Estamos numa fase de reanimação, de preparação para as grandes jornadas que virão.

Em dezembro de 1993, realizamos nosso 7º Encontro Nacional, em Salvador, Bahia. Fizemos um balanço político e organizativo de nosso movimento. Enfrentamos muitas deficiências internas. E entre elas definimos três grandes prioridades para os próximos anos:

- formação de quadros - nenhum movimento ou organização vai para frente sem ampliar o número de militantes (quadros) que, imbuídos dos objetivos da organização, consigam levar adiante as grandes tarefas de multiplicar o movimento de massas. Toda nossa força é oriunda das massas, de sua mobilização e ação. Mas as massas não se mobilizam espontaneamente, é necessário o trabalho sistemático, militante, voluntarioso, generoso, utópico, diário, de um enorme contingente. E nós enfrentamos dificuldades ainda maiores pelas características de nossa base social;

- massificação das lutas - precisamos retomar as grandes mobilizações, as grandes ações de massas. As pequenas ocupações de terra, os pequenos acampamentos esgotaram seu potencial de conquista e representam hoje mais problemas organizativos do que pressão sobre o governo e sobre os latifundiários. É necessário transformar a luta pela terra e pela reforma agrária em amplas ações de massas. Levá-las aos centros urbanos e transformar, finalmente, a luta pela terra e pela reforma agrária numa questão política de todos os trabalhadores e não apenas dos trabalhadores rurais e dos sem terras. Nesse sentido, também estamos imbuídos da necessidade de que os trabalhadores rurais realizem lutas não corporativas, que se engajem em lutas políticas de toda sociedade. Como é, desde logo, nossa participação na luta contra a revisão, contra o plano econômico do governo e como deverá ser no embate eleitoral, participando ativamente, organizando comitês, indicando comprometidos com a classe trabalhadora. Por isso, também mantendo nossa autonomia em relação a partidos, igrejas, ONGs etc. No último Encontro Nacional, o MST decidiu mobilizar-se, apoiando com todos os meios possíveis a candidatura de Lula;

- organização da produção nos assentamentos -já conquistamos muitas áreas. Já temos um enorme potencial de produção, embora o número de famílias seja relativamente pequeno em relação ao total. Temos uma linha política clara. Propostas pontuais para o desenvolvimento da produção e do meio rural. Queremos estimular todas as formas de cooperação agrícola. Queremos desenvolver tecnologias adequadas à nossa realidade, que representam um aumento da produtividade do trabalho e da riqueza gerada nos assentamentos. Queremos implantar agroindústria, cooperativas que permitam maior valor agregado e, no geral, representem maior renda. Temos boas experiências, mas muitas dificuldades. Falta quase tudo nos assentamentos.

Precisamos nos próximos anos dar um salto de qualidade na organização da produção e na implantação de nossa visão de desenvolvimento rural. E para isso será fundamental a ação do Estado.

Muitos companheiros têm nos questionado sobre qual será a participação do MST nas propostas de programa de governo e num governo Lula. Muitos nos provocam, pela esquerda, perguntando se deixaremos de lutar para servir ao governo. Outros, pela direita, nos dizem que devemos deixar de ser radicais para não servir à direita e desestabilizar um governo popular.

Felizmente, não estamos preocupados com nenhuma destas questões. Interpretamos isso como provocações amigas. No Encontro Nacional, realizado recentemente, elaboramos a proposta "A reforma agrária que queremos", que contém oitenta medidas concretas que os trabalhadores rurais sem terra esperam ver implementadas por um governo popular. Já foi entregue ao Lula e à equipe para elaboração do programa. Vamos também entregar a outros candidatos progressistas, que por ventura surgirem. Portanto, estamos apresentando propostas concretas, viáveis e necessárias, que nossa experiência de relacionamento com governos, desde a ditadura Geisel e Figueiredo, indica serem possíveis em um governo democrático, desde que esteja comprometido com os trabalhadores.

A grande imprensa tem nos provocado, pois consta de tal documento, a necessidade de assentamento de 500 mil famílias por ano. E contrapõe com declarações de Lula, de que esta meta é impossível de se alcançar. Não estamos preocupados com números. Assinalamos no documento uma necessidade, um alerta sobre a demanda potencial social que existe, mas temos consciência de que o número de famílias a serem assentadas por um governo democrático e popular não depende de promessa de campanha ou de parágrafo bem escrito no programa de governo.

Depende, fundamentalmente, da correlação de forças políticas na sociedade (na luta de classes) naquele momento. E essa correlação estará determinada pela vontade política do novo governo, por nossa capacidade de organização e de reação aos latifundiários.

De nossa parte, teremos que fazer enormes esforços para avançar a organização dos camponeses. Esperamos que o novo governo popular cumpra sua parte. Se juntarmos essas duas, poderemos então imprimir derrotas históricas aos latifundiários e conquistar muito mais assentamentos do que prevíamos.

Finalmente, é necessário que se ratifique a natureza e os objetivos de nossos movimentos que são de organizar e mobilizar os camponeses sem terra e lutar por terra e pela reforma agrária.

Mesmo num governo Lula, nosso movimento só terá razão de ser se continuar organizado, lutando. Lutaremos contra os latifundiários e contra as injustiças sociais. Não contra o Lula.

Imaginar que a classe trabalhadora deve parar de lutar num governo democrático e popular é assinar desde logo o atestado de óbito dos interesses históricos da classe trabalhadora. Ao contrário, num governo democrático e popular devemos lutar e nos organizar ainda mais para,inclusive, poder viabilizá-lo politicamente.

Estamos convencidos, mais do que nunca, de que a reforma agrária e as mudanças estruturais de nosso país, somente acontecerão por obra da classe trabalhadora organizada. A existência de um governo democrático e popular poderá facilitar essas conquistas.

João Pedro Stédile é membro da direção nacional do MST.