Economia

Plano FHC ainda não recebeu do empresariado o apoio imprescindível para alcançar seus objetivos
 

No momento em que Fernando Henrique Cardoso assume plenamente sua candidatura, o futuro do plano é incerto e a equipe econômica dá sinais de indecisão quanto aos próximos passos. Tudo isto sem que a oposição à direita e à esquerda consiga apresentar propostas alternativas, um dos fatores que explica a baixa repercussão de suas críticas.

Um indicador dos problemas que o plano enfrenta é a lentidão e as dificuldades que vêm marcando a pretendida adesão voluntária das empresas à Unidade Real de Valor (URV), aspecto essencial da estratégia adotada. Para discuti-la, convém rever o diagnóstico que a fundamenta.

O plano FHC admite que a inflação brasileira tem causas variadas: forte componente inercial, dado pela indexação generalizada (aumentos de preços seguindo aumentos ocorridos no momento anterior); intenso conflito distributivo, com empresas e indivíduos tentando aumentar sua parcela da renda nacional pela elevação de seus preços acima dos outros ou pelo encurtamento dos prazos de reajuste; crise financeira do setor público, com o governo obrigado a gastar mais do que arrecada sem fontes de financiamento adequadas ou a conter seus gastos de forma artificial; crônica falta de credibilidade do Estado e da moeda.

Outro problema deveria ter sido equacionado na primeira fase do plano, com o pacote fiscal que Fernando Henrique Cardoso acabou arrancando do Congresso. A última etapa seria quando a nova moeda, o real, passasse a ter lastro ou conversibilidade em dólares.

A URV foi criada para ser uma espécie de superindexador. Parte-se da teoria da inflação inercial: os preços sobem porque indivíduos e empresas querem sempre recuperar a renda que tinham em momentos anteriores à elevação de outros preços. Seguem-se novos aumentos, que levam a outros tantos. Por inércia, todos incorporam a inflação passada nos seus preços e ela se perpetua.

Os planos anteriores tentaram romper a inércia com o congelamento e com o fim da indexação formal (possibilidade ilegal de se vincular a variação de algum preço à variação passada de outros preços ou de um índice de preços).

A URV propõe um caminho inverso: se todos os preços forem vinculados a um mesmo índice, eles passam a variar em conjunto e de forma instantânea. Num exemplo grosseiro, todos os preços aumentariam a cada dia, com salários, aluguéis e impostos sendo pagos diariamente e reajustados na mesma proporção do conjunto dos preços. Algo parecido com uma inflação zero ou muito baixa, já que as variações entre os diferentes preços seriam desprezíveis, por mais alta que fosse a variação de todos eles frente à moeda nacional.

Só que a inflação não é apenas inercial, como foi comprovado pelo fracasso de planos anteriores. Existe também a luta distributiva: quem aumenta seus preços mais que os outros e mais depressa consegue se apropriar da renda daqueles que não conseguem fazer o mesmo. O caso mais conhecido é o dos salários, corroídos pela inflação em proveito dos lucros das empresas. Mas isto acontece também entre as empresas e seus fornecedores, entre o governo e o público, entre bancos, empresas e indivíduos, entre a indústria e o comércio.

Se a inflação acaba de repente, quem ganhava à custa dela deixa de ganhar e tenta reagir. Quem perdia, aumenta sua renda. Surgem novas pressões sobre os preços, independentes da inércia. Assim, para que se possa sincronizar o aumento de todos os preços (ou estabilizar todos) é preciso que eles sejam alinhados numa posição que todos aceitem.

No caso de congelamento, primeiro se fixam em tabelas os preços finais ou ao consumidor. Depois se negocia com o comércio e com as empresas envolvidas quais os preços a serem cobrados em cada etapa da cadeia produtiva para viabilizar o preço tabelado. A crítica aos planos anteriores diz que este processo sempre gera insatisfações de tal magnitude que o congelamento logo se inviabiliza.
O plano FHC trouxe estas negociações para uma fase anterior, a fase atual, dando liberdade de adesão à URV, sem interferências do governo. Cada setor produtivo deve acertar os preços em URV que julgar adequados e só então começar a praticá-los. As tensões seriam resolvidas antecipadamente, com calma, garantindo que os preços assim definidos poderiam ser mantidos.

Aqui aparece a inspiração nitidamente liberal do plano: o governo propõe que, negociem e se acertem "livremente", setores da sociedade com níveis muito diferenciados de força econômica, social e política.

Foi definida apenas uma regra muito genérica: devem ser feitas conversões pela média dos últimos meses, de forma a não se alterar a distribuição de renda que prevalecia antes do plano. Mas não há regras claras para definir como se faz o cálculo da média no caso dos preços entre empresas: depende do número de reajustes a cada mês, da concessão de descontos, do nível dos juros embutidos nos preços a prazo, e por aí adiante. A indefinição não é gratuita: deixa espaço para o arbítrio, para a imposição da vontade dos mais fortes.

Na maioria dos segmentos produtivos, algumas empresas líderes têm força para definir o preço em URV e induzir os demais a se adaptarem a ele. Na indústria automobilística parece ter sido fácil, pois o setor é muito concentrado e já vinha operando com reajustes diários. Em outros setores está sendo mais complicado. Os supermercados não aceitam os preços da indústria, como nos produtos de higiene e limpeza, da mesma forma que os pecuaristas em relação aos frigoríficos. Nestes casos, as empresas mais fortes querem fixar preços em URV com uma margem extra de garantia, à custa das demais.

A aposta da equipe econômica no sucesso desta estratégia inclui a expectativa de que acabará havendo acordo, principalmente pelo poder de mercado das empresas líderes, mas também pela capacidade das empresas mais frágeis e do comércio de recorrer a importações e a estratégias que explorem as contradições entre as mais fortes.

Aceita-se como inevitável um aumento da inflação em cruzeiros, por conta das acomodações decorrentes dos conflitos e acordos para a definição dos preços em URV. Mas a alta não pode ser muito grande, sob risco de se criarem novas tensões entre as empresas que iriam perturbar os momentos seguintes do plano.

A lógica do plano não recomendaria uma regra de conversão dos salários pela média logo de início. Seria mais coerente com o conteúdo liberal permitir que os setores empresariais mais frágeis fizessem a conversão dos salários abaixo da média. Com isto, poderiam recuperar sobre os trabalhadores as perdas em que tivessem incorrido nos acertos com as empresas mais fortes. Isto permitiria também reduzir a massa de salários e a demanda global da economia.

A conversão de salários pela média é a cristalização do arrocho que o capital conseguiu impor com a inflação, mas tenta impedir que ele se agrave na passagem para a URV. Com reajuste mensal pela inflação plena do mês anterior, se o ritmo de reajuste de preços não se acelerar os salários não sofrem novas perdas. Diversos segmentos do capital podem não estar dispostos a suportar este ônus.

Para a empresa recuperar imediatamente o lucro extra sobre os salários só há um caminho: aumentar preços bem acima da média. Os índices de preços medem de fato a inflação de quinze ou trinta dias antes, devido ao cálculo pela média de preços de um período contra igual período anterior. Com isto, se a inflação se acelera, os índices que são divulgados a cada momento subestimam a inflação corrente daquele momento. Mesmo que a URV siga fielmente estes índices, os salários serão corrigidos abaixo dos reajustes de preços que as empresas estarão fazendo.

As empresas que desejarem recuperar os ganhos que a inflação permitia sobre os salários terão portanto que acelerar a remarcação de seus preços, até atingir um patamar bem superior ao que vinha sendo praticado antes de se instituir o reajuste mensal.

Se isto não ocorrer, com os salários reajustados mensalmente pela URV, e depois com a inflação bem mais baixa em reais, a tendência de aumento do consumo é muito grande. A violenta queda dos rendimentos nominais das aplicações financeiras também induz a este aumento de gastos. Com isto, os empresários insatisfeitos com a conversão dos preços para URV que lhe tenha sido imposta terão espaço para tentar recuperar as perdas que acreditem ter sofrido.

Para evitar isto, o governo irá apelar para juros reais muito altos, mesmo com a nova moeda supostamente estável. Como não se sabe quão altos serão estes juros nos próximos meses, aumentam os riscos das empresas para definir agora seus preços em URV, já que principalmente as empresas líderes formam seus preços considerando as taxas de juros esperadas.

Todas estas tensões e problemas são comuns a qualquer processo de estabilização na seqüência de uma inflação muito alta e prolongada como a brasileira. A novidade do plano FHC é transferir este ajuste para uma fase anterior à estabilização propriamente dita, mas sem que isto elimine os problemas de fundo, conforme já comentado. A novidade se resume, portanto, a conferir ampla liberdade ao capital para fazer os ajustes necessários, com a única restrição de ter que converter os salários pela média do período mais recente.

Daí a conclusão de que o plano pressupõe a capacidade do capital de se entender e de chegar a acordos sobre preços estáveis. É o que se dá nas principais economias desenvolvidas, em que a exploração do trabalho e a acumulação de capital ocorrem com inflação muito baixa.

O receituário econômico ortodoxo aponta uma fórmula tradicional para chegar a isto: recessão cavalar, na medida necessária para obrigar os setores mais frágeis a ceder ou desaparecer. Só não foi assim nas situações em que havia clara predominância de frações do capital fortes o bastante para impor regras estáveis aos demais segmentos sem sufocá-los (como nos países desenvolvidos hoje); ou nas situações em que uma forte ameaça política e social dá autoridade a uma corrente política ou ao governo para fazer esta imposição (como na reconstrução da Europa nos anos 50).

No Brasil de hoje não há nem uma coisa nem outra. Todos falam mal da inflação, mas o capital continua ganhando dinheiro com ela e não se mostra disposto a sacrifícios sérios para ter preços estáveis. O risco de ter um governo do PT é grande, mas não parece suficiente para levar os grandes empresários a aceitar perdas para viabilizar FHC.

Diriam os liberais extremados que isto só não ocorre no Brasil porque o Estado é perdulário, ineficiente e descontrolado. Sempre se pode responder, porém, que isto ocorre em boa medida porque não há acordo entre os capitalistas sobre o Estado que desejam, nem sobre a necessidade respeitar regras minimamente necessárias, como o pagamento de impostos.

Fazendo uma certa caricatura, pode-se dizer que o plano FHC pede aos empresários que tenham "generosidade" e "compreensão" e aceitem algumas perdas como o preço para viabilizar uma economia sem inflação. Em troca, acena com algumas garantias.

Haverá juros reais altos, o que mantém os ganhos financeiros dos rentistas e das grandes empresas. O câmbio seguirá favorável aos exportadores, evitando-se os riscos de uma valorização no estilo argentino. Será perseguido o equilíbrio fiscal sem novos aumentos de impostos.

São garantias confiáveis? Apenas em parte. O cenário externo é o mais tranqüilo, apesar das turbulências recentes. O equilíbrio fiscal que deveria ter sido viabilizado na fase inicial do plano é discutível. O Tesouro necessitou de emissão de moeda nos dois primeiros meses do ano e não é possível prever com segurança qual será o efeito de uma inflação bem mais baixa sobre as receitas e despesas do setor público.
Será possível manter inflação baixa, pelo menos até as eleições, de forma a melhorar as chances de derrotar Lula? Não dá para ter certeza. A inflação cairá bastante na passagem para o real, ao menos pela eliminação do componente inercial acumulado. Porém, se houver sinais de alta, logo nos primeiros momentos da nova moeda, a equipe econômica provavelmente será levada a adotar medidas mais dramáticas, como a dolarização com conversibilidade plena do real, algo provavelmente ainda em discussão, face aos riscos que encerra.

As forças políticas de esquerda e o movimento sindical não conseguiram reagir com presteza e eficácia ao plano. Desde fins do ano passado suas linhas gerais já eram conhecidas, inclusive no que se refere à conversão dos salários pela média. Era evidente que havia uma delicada questão política envolvendo a fixação do salário mínimo, tanto assim que a equipe econômica hesitou por um ou dois meses até divulgar a posição que afinal prevaleceu. Não se preparou uma contra-ofensiva capaz de inibir a ação de Fernando Henrique, inclusive explorando as divisões dentro do governo.

Anunciado o plano, além da conversão dos salários pela média, as críticas concentraram-se na ausência de uma ação reguladora do Estado e de negociações mais amplas com os diversos segmentos envolvidos.

O plano recusa de fato qualquer possibilidade de negociação ampla e aberta. É verdade, mas pressupõe negociações e acordos. Pode-se denunciar o caráter fechado e excludente deste processo. Mas parece difícil reunir força política para mudá-lo apenas apelando para isto, sem que se coloque de público propostas concretas para as negociações. Especialmente em relação às questões mais gerais, como política cambial, monetária e fiscal, que afetam o conjunto da economia e sobre as quais as câmaras setoriais isoladamente pouco podem fazer.

Carlos Eduardo Carvalho é membro do Conselho de Redação de T&D.