Teoria & Debate está reunida com o comandante da Escola Superior de Guerra, tenente-brigadeiro-do-ar Sérgio Xavier Ferolla, um fluminense de Bom Jesus de Tabapoã, para uma entrevista. Este é o Brasil, trinta anos depois dos acontecimentos de 1964. Da ruptura institucional de 1964. Golpe ou revolução? Para T&D, golpe. Para a ESG, um momento da história recente do Brasil, tema sobre o qual iriam se debruçar no dia 31 de março, para avaliar os erros e as virtudes. Sobre os mortos e "desaparecidos " durante o regime militar, o brigadeiro Ferolla não tem ainda informações suficientes para falar a respeito, "era um jovem oficial à época daqueles acontecimentos". Para nós esta é uma questão essencial da construção democrática, uma vez que acreditamos que democracia envolve direitos e responsabilidades. E todo povo tem direito à sua memória. Enfim, o Brasil se repensa e busca seu caminho. Em todas as suas instâncias.
A busca do Partido dos Trabalhadores de se informar claramente sobre a questão militar tem gerado muitos desentendimentos. Em pelo menos 99% dos casos, tolices. E a tolice parece fazer parte da nossa cultura.
Preparamo-nos para governar o país. Isto é o suficiente para explicar a dimensão exata do fato de querermos nos informar e informar sobre o que pensam as Forças Armadas, constitucionalmente responsáveis pela defesa do país, sob o comando da Presidência da República.
E, "o mais importante - como afirma Luiz Dulci em seu ensaio 'A aldeia e mundo', à página 73 desta edição - é dar-lhes (aos militares) um papel definido em nosso projeto de desenvolvimento".
Sermos acusados de trazer os militares outra vez à cena política é um equívoco.
Os militares, como todos os setores e segmentos da sociedade brasileira, discutem, têm propostas, elaboram e reelaboram conceitos. A ESG é o grande núcleo de produção de suas políticas e doutrinas. Os militares não existem imobilizados nos seus quartéis. Como não existem jornalistas imobilizados atrás dos seus micros. Nem metalúrgicos ao pé dos seus tornos. Ou sacerdotes frente a seus altares. Sempre estamos a serviço de objetivos e a cena social é dinâmica. A não ser que acreditemos na maldição da Bela Adormecida. Esta não existe. Do mesmo modo, o infante D. Sebastião não ressurgirá das brumas de Alcácer-Quibir, pilotando a sua nau Catarineta para nos redimir. (AF)
Estamos todos aqui, na Escola Superior de Guerra: a revista de esquerda Teoria & Debate e o senhor, tenente-brigadeiro-do-ar, dando uma entrevista. O que mudou nestes trinta anos?
Mudou tudo. O mundo hoje é completamente diferente. A polaridade daquela época desapareceu. A situação econômica evoluiu de maneira surpreendente. Os problemas regionais, étnicos, econômicos e de fronteira, principalmente em regiões como a Europa, estão muito conturbados. E a sociedade brasileira está muito mais madura, muito mais consciente dos seus direitos e deveres. Isto se reflete no próprio conceito de cidadania e cria horizontes completamente diversos dos que tínhamos.
Como a Escola Superior de Guerra avalia a participação das Forças Armadas no episódio 64?
Em 64, o país estava sujeito a uma série de Imposições. Primeiro, havia um conceito arraigado de alinhamento automático. Logo após a 2ª Guerra Mundial, alguns brasileiros resolveram fazer a Escola Superior de Guerra (ESG), porque naquela época entenderam que guerra não era mais um problema de militares na fronteira, mas um problema de nações que se engajavam em todas suas expressões, que chamamos em nossa doutrina de "expressões do poder nacional". Graças a esse tipo de idéia, a guerra era um engajamento global. Assim, não havia mais possibilidade de imaginar um exército alijado, que fazia treinamento num determinado sítio e se armava para enfrentar uma guerra global, da qual toda a sociedade participasse. Surgiu, portanto, a necessidade de se fazer uma análise do país, preparar elites que pudessem pensar esse aspecto. Por isto, falávamos em segurança e desenvolvimento: é preciso desenvolver o país pensando em segurança, pois já imaginávamos evoluções geopolíticas. Havia, assim, o interesse de formar um conceito de segurança, de desenvolvimento e de poder nacionais, para que a sociedade pudesse entender aquele engajamento, no qual poderia se envolver. Mas também como conseqüência da 2ª Guerra, surgiu a bipolaridade. E como nós estávamos do lado de cá do mundo e tínhamos participado de uma guerra ao lado dos Estados Unidos, automaticamente se estabeleceu que o nosso lado era este, e que o grande inimigo era o outro. Esse engajamento automático, de reação contra a política do outro lado, levou as FFAA a cerrar fileiras contra "o inimigo". O "inimigo comunista". Nessa lógica, as Forças Armadas tinham que combatê-lo e, como conseqüência do entendimento do engajamento global, era necessária a participação de toda a sociedade. E grande parte participou. Os empresários participaram porque tinham medo do comunismo e desse medo surgiu o movimento de 64, que não tinha a intenção de se perpetuar. Havia simplesmente uma intenção de limpar a área. Colocar as coisas no trilho. Mas, vieram as distorções. Revolução é aquilo que sempre se diz: todo mundo sabe como começa, mas não sabe como termina.
Pela resposta, concluímos que o conceito de segurança nacional, vigente em 1964, está superado. Então, hoje, como os senhores vêem a questão da segurança e a questão social a ela ligada?
A partir do governo Geisel, a concepção já começou a mudar. O governo Geisel, bem ou mal, definiu um projeto nacional. Tínhamos um planejamento macro, coisa que hoje em dia faz falta. Este foi um dos itens que a Escola pregou e foi utilizado. Era necessário definir um projeto nacional que articulasse e desse coerência às diversas ações. Havia uma idéia de planejamento. Se foi investido dinheiro errado, se foi feito empréstimo indevido, é outra discussão... Na verdade no governo Geisel, principalmente, houve uma modificação: o Brasil começou a se preocupar consigo mesmo. Decidiu-se fazer um programa nuclear. E, sem consultar ninguém, se fez. Eu concordo que foi malfeito, mas havia uma intenção, uma lógica. Decidiu-se criar uma indústria pesada, industrializar tal ou qual área, reformas em áreas e setores etc. E as coisas foram feitas já dentro do novo enfoque de não sermos totalmente dependentes do Hemisfério Norte. Criou-se então uma abertura para a África, uma abertura para a Europa. Tudo isto porque já havia uma grande preocupação com o nosso vizinho do Norte. Com a queda da URSS, a situação evoluiu ainda mais. Os EUA são cada vez mais hegemônicos econômica e militarmente e o Hemisfério Norte hoje considera que o Sul começa a atrapalhar: explosão social, tóxicos e uma série de outros problemas. É uma situação bem diferente. Vejo isto com preocupação, porque estamos muito despreparados para enfrentar uma possível interferência. E elas têm acontecido. Acredito que deveríamos estar preparados para, no mínimo, dizer para o fulano: tudo bem, você é mais forte. Mas se entrar na minha área, pelo menos alguns caras da tua área vão morrer... Vamos reagir violentamente, vai ter briga.
De quais interferências o senhor está falando?
Interferências como as que tem havido no Panamá. Como as chamadas pressões internacionais. Pressão armada. Pressão em defesa, por exemplo, da ecologia na Amazônia... das nações indígenas... Eu acho que as fronteiras têm que ser muito bem discutidas. Porque muitas dessas campanhas são comandadas de fora. Temos que ter uma capacidade no mínimo de dizer: espera aí, vamos ter que conversar. Caso contrário, acontece o que aconteceu no Panamá e em Granada. Já no Haiti, apesar de todas as dificuldades, eles não entraram. Porque os haitianos reagiram: se vierem vai morrer gente aqui. Daí, eles pararam para pensar. O fato é que os países têm autonomia, são soberanos.
Nas décadas de 50 e 60 tivemos a interferência dos EUA na Guatemala, República Dominicana e Baía dos Porcos (Cuba), para não falarmos dos reforços norte americanos durante o movimento de 64 no Brasil. Sabemos também como nosso país serviu de ponta de lança para os EUA em golpes como o do Uruguai, da Argentina e do Chile. Essa "interferência " sempre foi uma constante na América Latina. No entanto, elas eram vistas com menos preocupação?
No movimento de 64, não sei se houve reforço americano. Acho que não. A atuação de bastidor deve ter havido. Sim, sem dúvida houve.
Refiro-me ao deslocamento de uma força naval norte-americana que teria ficado estacionada num certo ponto da costa brasileira... isso é uma coisa posteriormente comprovada...
Mas não em apoio a 64. Talvez tenha ficado de sobreaviso, porque podia talvez dar o contrário ... Mas não houve apoio externo. O Brasil nunca aceitou. Nunca aceitamos isso, pelo menos que eu saiba. Agora, a interferência de bastidor, não tenho dúvida. Na época, eu era tenente novinho, mas lembro. E, garantidamente, o Brasil deve ter participado de interferência em outros países. Mas é o que eu falei: naquela época tinha a política do alinhamento automático, pelo menos em termos de ideologia, de pensamento, de política. Hoje a interferência é mais econômica.
Esse projeto nacional de que falavam as FFAA, em 64, levou a uma "interferência" econômica muito grande dos EUA. E isto também diz respeito a nossa soberania. Como fica a nossa definição estratégica com relação aos países do Hemisfério Norte? Quais são os países que representam maior ameaça para o Brasil?
Eu não diria que existe ameaça. O problema hoje situa-se muito mais na esfera econômica. Nesse aspecto existe uma tentativa de alinhamento em termos de mercado. Sempre digo que não devemos nos alinhar com ninguém.
Temos, por exemplo, muito bom relacionamento com o Japão, que considero importante, assim como a China. Mas, sobretudo o Japão, porque é um país totalmente complementar ao Brasil: não tem alimentos, não tem energia. E eles têm tecnologia que podemos aproveitar. A Europa também, porque é um continente muito mais maduro, já sofreu muito... É um continente onde nós temos grandes oportunidades. O lado oriental tem um mercado totalmente aberto. Vejo grandes chances na área da Rússia, que também tem tecnologia e precisa de coisas que temos aqui. Por sua vez, os EUA são um grande comprador. Tudo bem, precisamos do mercado deles, e temos o que vender. Também temos interesse em produtos deles. Não vejo nisso ameaça. No entanto, vejo uma tentativa de domínio. Nem sempre o que é bom para o Hemisfério Norte é bom para o Hemisfério Sul. O Brasil tem grandes espaços. A nossa política de defesa tinha que imaginar primeiro a proteção do litoral, 8 mil quilômetros. De litoral desguarnecidos e com petróleo a 200 milhas da costa. Temos uma Amazônia inexplorada e com todos os problemas de vizinhança, narcotráfico, problema de eventuais desentendimentos de fronteira, em conseqüência de grupos que estão se desenvolvendo e que nem os próprios países controlam. Precisamos guarnecer a Amazônia e o litoral. A retaguarda, não. Nenhum problema com qualquer país. O Brasil não tem porte de guerra. Mas ele tem que se preparar para aplicar o que chamamos de "dissuasão estratégica".
E os problemas da Amazônia e o Projeto Calha Norte? Como se vê a questão ambiental, dos povos da floresta e das nações indígenas?
O Projeto Calha Norte é muito amplo e foi distorcido quando começaram a chamá-lo de "militarização da Amazônia". Entendo que essa interpretação deriva do fato de ele se opor a interesses de certos países do Hemisfério Norte, que não querem que o Brasil ocupe a Amazônia. Porque o projeto não é a militarização da Amazônia. Prevê até a participação militar, mas sua filosofia básica é desenvolver núcleos habitacionais ao longo da fronteira, de maneira que seja ocupada populacionalmente, como fizemos no passado com as fronteiras do Sul. Isto porque a melhor defesa de um país é balizar a fronteira com populações locais. Mas primeiro é preciso dar um ambiente para essa população morar; segundo, tem que ter uma certa segurança. E esta segurança implica transferência de pessoal das FFAA, criação de instalações novas na região, abandono de velhas instalações em outras áreas, construir residências, montar hospital, instalar linha de suprimentos. Tudo isto deve ser feito a médio prazo, de maneira programada. O Calha Norte é, portanto, um projeto militar, social, desenvolvimentista, em termos de economia e de ocupação. Se há distorção, vamos corrigi-la. Mas a propaganda internacional vai continuar: "militarização da Amazônia", porque ninguém quer que ela seja ocupada, querem que fique como está, intacta, preservada, para um dia ocuparem. Vamos ocupar antes. Certamente temos o problema das nações indígenas. Nós vemos essa questão com bastante preocupação. Na época do presidente Sarney, o governo fez uma série de demarcações conforme prevê a lei das populações indígenas. Isto não causou qualquer impacto. Todo mundo aceitou. Mas duas áreas foram defendidas por organizações internacionais com um lobby em Brasília terrível. A área dos ianomâmis e a área de Raoni. Coincidentemente, as duas sobre grandes jazidas minerais. Eu assisti uma palestra do general Dennis que era chefe da Casa Militar da Presidência da República do governo Sarney, em que ele afirmava ter constatado in loco e em análises técnicas, que os índios ianomâmis habitam regiões onde há água e peixe, nunca de morros, das grandes escarpas. A idéia do governo, na época, era que a região fosse considerada floresta nacional, ecologicamente protegida, com a área indígena limitada às regiões onde os índios vivem. Mas o lobby internacional exigia o contrário. Que toda a área fosse considerada ianomâmi e que nesta ainda se incluísse e juntasse parte da Venezuela. Isto nenhum país do mundo aceita, pois, de repente, surge algum interesse internacional por essa área, cria-se na ONU uma política de minorias étnicas, estabelece-se um governo, e o Brasil vai ficar com cara de bobo porque haverá um reconhecimento internacional que permitirá às nações mais fortes aparecerem para a defesa militar do "pobre povo Ianomâmi que está sendo destruído", ou do "pobre povo Xavante" ou do pobre povo não sei das quantas.
Qual a visão da ESG e, em particular a sua, sobre a questão das empresas estatais?
Tenho manifestado muito claramente meu ponto de vista, e a Escola vem estudando a questão do monopólio estatal do petróleo. Consideramos o petróleo um produto indiscutivelmente estratégico, o que os acontecimentos internacionais só têm comprovado. Ainda há pouco tempo, tivemos oportunidade de ouvir uma palestra do dr. Luiz Pinguelli Rosa em que ele coloca que sem energia não há vida. No Hemisfério Norte, portanto, o petróleo é condição sine qua non de sobrevivência, a curto e a médio prazos. Hoje as reservas de petróleo estão praticamente localizadas no Oriente Médio, uma região que foi ocupada militarmente pelos EUA, apoiado pelo Grupo dos 7, para garantir o fluxo do petróleo para o Hemisfério Norte. Por outro lado, as jazidas de petróleo existentes nos EUA têm uma sobrevida de uns cinco anos, no máximo. O Japão, por sua vez, não tem petróleo. Assim, esses países têm que buscar outra alternativa para enfrentar o problema. O Brasil tem jazidas já descobertas e muitas a descobrir. Por isto, afirmo que a intenção real que existe não é a de privatização da Petrobrás, mas de tomar conta das jazidas de petróleo do Brasil, como fizeram na Argentina. Então, achamos que o petróleo é estratégico. Somos o único país do mundo que desenvolveu uma alternativa viável,ao petróleo, o álcool. Existe ainda a possibilidade do óleo vegetal. Precisaríamos ter um pró-óleo como tivemos o Pro-álcool.
E a questão das comunicações?
Na questão das comunicações o enfoque é diferente. Como é que vai se quebrar uma Embratel? Impossível. Ela é o tronco nacional que vai, fornecer telecomunicações para todo o país, do Oiapoque ao Chuí. A Telebrás, por sua vez, é uma empresa normativa e controladora, holding do sistema. Ela deveria participar, até minoritariamente, de empresas periféricas, que surjam no setor e tenham participação do capital privado. Mas a Embratel não tem como. Do contrário, vamos sair de um monopólio estatal para um monopólio privado, o que sabemos ser muito pior. O monopólio estatal tem um objetivo social e o privado, o lucro.
No caso da privatização da Embratel e/ou Telebrás, valeria o mesmo raciocínio que o senhor fez para a Petrobrás? Ou seja, não se trataria de uma discussão sobre a privatização, mas sobre o controle, a dominação dos meios de comunicação, da informação?
O controle da informação é um aspecto um pouco diferente. Ele é muito importante, mas o que está faltando aqui no Brasil são leis. Basta ter aqui a legislação norte-americana para não acontecer o que tem acontecido, o domínio das telecomunicações por alguns grupos. É importante o grupo privado desenvolver as telecomunicações. Mas ele não pode ter o monopólio da informação. E isso só é corrigido através de uma lei. E chega-se a essa discussão hoje tão em voga, sobre o tamanho do Estado, que tem que ser mínimo, cuidar de habitação e saúde. Bem, o Estado não tem que ser mínimo nem máximo. O Estado tem que ser suficiente. Não se trata do tamanho, e sim da natureza do Estado. Ele tem que ser politicamente forte. Todas as distorções que temos assistido no Brasil advêm do fato de o Estado ser politicamente fraco. O que a sociedade deseja? É tal caminho? Ele vai ser seguido, por empresas privadas e estatais. A Petrobrás é a executora do monopólio estatal e deve permanecer assim. Porém, nós devíamos legalmente dar a essa empresa capacidade de flexibilização. Deveria, como agente do Estado, trazer capitais estrangeiros e nacionais privados para os seus investimentos. Como a Braspetro já faz no exterior, onde trabalha associada a diferentes capitais. E em termos, por exemplo, do programa do álcool, a presença da Petrobrás é o elemento estabilizador. Ela realmente tem uma responsabilidade muito grande de recolher todo esse material, distribuir pelo país, garantir os preços equilibrados, o suprimento e importar se for necessário. Sua atribuição deveria se ampliar, transformando-se numa empresa de energia, que pensasse em combustíveis, inclusive alternativos.
O exemplo descrito ilustraria também a necessidade de parceria entre Estado e iniciativa privada?
Sim. Um dos exemplos foi o auxílio que demos diretamente às empresas automobilísticas com o Proálcool. Uma empresa automobilística que está produzindo carros aqui e dando milhares de empregos tem que ser resguardada. Entendo que até sob esse aspecto a tal da doutrina neoliberal tem que ser muito bem analisada. Porque eu não posso abrir uma competição desigual com produtos importados em detrimento do produto nacional, uma vez que está empregando milhares de trabalhadores e o produto importado vai satisfazer apenas meia dúzia de ricaços. A doutrina neoliberal precisa ser analisada com cuidado, porque senão destrói-se a indústria local, brasileira ou estrangeira aqui sediada, que está trabalhando em benefício do país.
Como o sr. ou a Escola entendem este país? Entendem um país dividido entre uma minoria que se apropria de todas as riquezas e uma maioria excluída? Ou falamos de um país em que essas diferenças não aparecem?
Não, temos que falar de um país em que todos participem. Não tem cabimento um país com mais de 30 milhões de miseráveis e mais de 60 milhões de pessoas que ganham próximo ao salário mínimo. Ou seja, 90 milhões que não usufruem daquilo que a gente chama de direito à cidadania. Essa é uma situação que afronta qualquer direito internacional, qualquer análise mais lógica, do que deve ser uma sociedade. É exatamente refletindo sobre esta questão que eu defendo muito a necessidade de criarmos o nosso modelo. Quando se fala em projeto nacional, há uma série de coisas que precisam ser feitas. lá falei anteriormente no espaço nacional suficiente. Dentro desse espaço está incluído o nosso mercado interno. É muito importante que a gente dê ao povo brasileiro capacidade de comprar alguma coisa. Esse monstruoso mercado interno tem que ser considerado um dos maiores patrimônios do país. Quando a gente fala em Brasil potência significa grande economia, grande população, grande capacidade. Um país que se iguale aos outros em termos de condições de dialogar no contexto internacional. Para isto, temos que resgatar a população excluída, e o mercado interno deve ser o grande objetivo do Brasil. Além disto, podemos também ter produtos para exportação. Não acho que temos que nos isolar do mundo. Hoje existe essa conversa de inserção na economia internacional, o que eu considero uma falácia. Primeiro, temos que fazer inserção na economia nacional. Isto significa melhorar a distribuição de renda, o salário e permitir que essa população alijada do processo de desenvolvimento tenha capacidade de adquirir bens e serviços. Em benefício até dos empresários nacionais e estrangeiros que aqui trabalham. Pela própria origem da doutrina da ESG, a Nação tem que se engajar como um todo. Observe: hoje, o Brasil é um país que pode ter FFAA um tanto quanto sucateadas, mas tem uma indústria com grande capacidade.
Brigadeiro, quando nós dizemos hoje que segurança nacional está ligada intimamente à questão social e portanto a distribuição de renda e à criação de um mercado interno forte, estamos fazendo um giro de 180º com relação a 1964, quando um projeto com características semelhantes a esse que o senhor descreve foi derrubado pelas FFAA. O sr. acha que hoje teremos resistência no plano internacional para a implantação de um projeto com essas características, ou mudou alguma coisa?
Não, não ... o que eu acho que tem é a incompetência nacional mesmo. O mundo hoje, com o desaparecimento da URSS, do mundo comunista do Leste europeu, nem está pensando no Brasil. Eles querem o Brasil produzindo soja, fazendo commodities que interessem a eles Então, podemos perfeitamente definir o nosso projeto. E eu não tenho dúvida que é até bom para eles, porque se eliminamos a pobreza aqui, não vamos ter essas migrações malucas, gente querendo entrar escondido nos EUA e na Europa. Quanto a 64, não é que isso não preocupasse. O problema é que houveram distorções. Chamo de distorções exatamente o cerceamento do movimento reivindicatório. E a ausência deste, levava à falsa conclusão de que estava tudo bem, de que ninguém reclamava. Mas, havia também a pressão ideológica do Leste europeu. Aí esse negócio distorceu, é por isso que eu digo que nós não podemos hoje dizer que estava tudo errado. Na minha opinião essa abertura que estamos vivendo é conseqüência do desaparecimento do estigma que fazia com que as idéias divergentes implicavam estar do lado da URSS. Hoje, podemos discutir os problemas nacionais livremente. Quem tem medo do comunismo, este sim é dinossauro (risadas).
A segurança nacional, hoje, passa, então, necessariamente por uma sociedade profundamente democrática, pela defesa das instituições democráticas?
Sim. Sem dúvida. E pode ter certeza que esse é o pensamento das FFAA. Não existe dentro das FFAA nenhuma maioria pensando em fugir das estruturas constitucionais vigentes e do sistema democrático de governo. Opiniões isoladas existem. Mas são mais freqüentes no meio civil. O que acontece é que os militares se revoltam, se rebelam contra algumas atitudes tomadas pelo mundo político, jurídico e econômico. Mas não existe qualquer intenção de romper com as instituições democráticas.
O sr. acredita que para a defesa do Brasil ser efetiva, para que a soberania nacional possa ser garantida militarmente em caso de necessidade, é indispensável o serviço militar obrigatório?
A ESG não tem estudado especificamente esse assunto, mas eu posso lhe dar uma opinião de discussões que existem no seio das FFAA. Indiscutivelmente, a maior eficiência seria com o soldado profissional. Nós temos o exemplo, na Marinha, dos fuzileiros navais. São soldados profissionais. No Exército temos o corpo de pára-quedistas que são mais profissionalizados. Este é um ponto que talvez haja diferença com aquilo que o PT vem pregando. O serviço militar obrigatório é obrigatório entre aspas. Ele é obrigatório para uma meia dúzia, uma vez que a maioria que é convocada não pode ser engajada porque não temos nem dinheiro. Assim, existe muito mais dispensa do que convocação. E este é um problema social muito sério, pois recebemos muitos pedidos, uma forte pressão de famílias que querem que seus filhos entrem para as FFAA, pois o povão está vivendo na miséria. Assim, o serviço militar obrigatório tornou-se uma vantagem social. Eu diria que a solução seria, se houvesse dinheiro, profissionalizar soldados. Mas lentamente, porque senão poderemos ter uma minoria privilegiada e uma grande maioria excluída, aumentando, então, o apartheid social.
Como o sr. vê a questão da criação de um Ministério da Defesa capaz de articular as três forças, impedindo uma concorrência corporativa entre elas. Também o peso disso dentro de um ministério civil diminui o peso da presença militar dentro do ministério...
Acredito que, para o futuro, estamos caminhando para uma unificação. Podemos chamá-la de Ministério da Defesa. Ele foi criado nos EUA, particularmente, para fazer guerra à distância, as operações conjuntas e combinadas. Quando acabou a 2º Guerra, vários países que participaram do conflito ao lado dos Estados Unidos ou que foram derrotados, criaram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e um Ministério da Defesa, por uma questão de adaptação a esse sistema. Não por necessidade, porque não mudou nada. Simplesmente criaram mais um ministério. E se aumentou a burocracia. Agora, o EMFA (Estado Maior das Forças Armadas) é um ministério importante. Uma grande solução talvez fosse suas atribuições serem reforçadas. Um Estado Maior conjunto, da Presidência da República, que coordene as FFAA. Essa história de trocar nome de ministério, na minha opinião, deveria estar na Constituição. Muda-se nome, organização, prédio, secretária, telefone e papelada de três em três meses. Como é que pode funcionar uma estrutura dessas? Na área militar temos um sistema tradicional há dezenas de anos.
E quanto aos grandes projetos?
Os grandes projetos estão sob uma ótica de um projeto nacional, assim como o tecnológico. Porque o projeto tecnológico tem que ser um alavancador, estabelecido pelo governo, FFAA e mundo científico como um todo. O Ministério da Ciência e Tecnologia tem um papel muito importante: definir grandes metas que promovam o desenvolvimento tecnológico do país. Pequenos projetos não resolvem. Pequenos projetos acontecem como conseqüência do projeto maior. A Aeronáutica, na década de 70, definiu que deveríamos aprender a fazer radar e casualmente fui gerente desse projeto. Quem nos deu o dinheiro a fundo perdido foi o BNDES. Eu depositei num banco no meu nome. Naquela época não havia nenhuma dúvida da honestidade das pessoas. Hoje foi criada uma burocracia que nos impede de trabalhar. Foi criado tanto controle que o funcionário público não trabalha mais. Com o dinheiro, modéstia à parte, fizemos um radar que está gerando toda uma tecnologia nesta área. No CTA, por exemplo, foi desenvolvido, pelo Ministério da Aeronáutica, o projeto do avião Bandeirantes que gerou uma indústria: a Embraer. No campo dos materiais, o BNDES financiou um grande projeto de aço especial. No momento, a grande bandeira tecnológica que temos é a missão espacial completa, com um programa integrado, que tem o satélite, feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o foguete, desenvolvido pelo CTA em São José dos Campos, e a base de lançamento de foguete em Alcântara. A Eletrometal também fez o aço para o sistema de centrífuga que a Marinha está usando no campo nuclear, que é outro grande projeto, de enriquecimento de urânio. E aí vem a discussão: mas o Brasil tem que ter usina nuclear? Não sei, mas que tem que enriquecer urânio, tem. Inclusive para vender urânio enriquecido. O que não pode é vender minério. Então desenvolvemos a tecnologia e continuamos a trabalhar em enriquecimento de urânio a laser em São José dos Campos. É um trabalho mais científico, tivemos também que desenvolver o laser. Na aeronáutica, o exemplo é o MX. Sentamos com os italianos em condições de igualdade para discutir o projeto. Então, a filosofia era não haver troca de dinheiro. Quer dizer, eu faço asas, trem de pouso e tanque de combustível e mando para Itália; de lá vem a fuselagem. Este é um projeto muito mais tecnológico. Porque, com base nele, desenvolvemos o Programa Industrial Complementar, que capacitou uma dezena de indústrias brasileiras a produzirem equipamentos eletrônicos e mecânicos para o MX, inclusive para exportar para a Itália. Desenvolvemos também a Companhia Eletrônica Selma, em Petrópolis, para produzir motores. Investimos dezenas de milhões de dólares e hoje ela produz, além de motores, palhetas de turbina e peças de turbina para a Petrobrás e para o mercado internacional. Então, a tecnologia de defesa não é fazer armamento. É fazer tecnologia de ponta. Invisto numa tecnologia e não estou interessado em lucro. Dizem que quem investe em tecnologia no Primeiro Mundo é a iniciativa privada. Mentira. A iniciativa privada investe no interesse dela. Quem paga a tecnologia de ponta é o governo, em qualquer lugar do mundo. E paga a fundo perdido.
E em relação à tecnologia nuclear? Qual a posição das FFAA?
Posso assegurar que não há o menor interesse em armas nucleares. Quando se fala em propulsão de submarinos, por exemplo, estamos nos referindo a uma tecnologia sofisticada de reatores, que poderão subsidiar a nossa engenharia no futuro, até sabermos especificar melhor quais são os reatores de interesse para o Brasil. Mas é uma capacitação nacional que poderá ser ou não usada no futuro. Isto é, se nós como sociedade autônoma e capaz de tomar decisões queremos usar ou não reatores nucleares. Mas não podemos abandonar a idéia de conhecer.
O sr. gostaria de acrescentar algo...
Só queria agradecer esta oportunidade, acho muito importante discutir esses assuntos. Acho que já existe uma consciência bem avançada a respeito dessas posições e é muito importante trazer para o público, porque ele tem que opinar. Inclusive para que nossos representantes façam aquilo que a sociedade deseja e não aquilo que eles desejam ou o que os lobbies dizem para eles fazerem. É por essa razão que estamos procurando aqui na ESG abrir o diálogo, discutir problemas, às vezes assuntos polêmicos, mas com a intenção de formar uma consciência e ter uma opinião nacional a respeito dessas questões.
Alípio Freire é editor de T&D e Luiz Pinguelli Rosa é professor de Planejamento Energético na UFRJ.