Política

Os programas políticos na TV tornaram-se tão parecidos que pasteurizam as ideologias e as políticas, afastando o público e diluindo os conteúdos

Já se tornou lugar-comum, na mídia, a crítica ácida aos programas políticos na TV, sejam eles do horário gratuito ou de campanha eleitoral. É claro que parte dessa má-vontade tem origem na gratuidade do horário, que diminui faturamentos, e no fato de a legislação permitir o acesso a todos os partidos, o que cria um evidente mal-estar para as elites tradicionais. No entanto, é necessário considerar que a grande maioria do público também rejeita a propaganda política, incluindo-se nessa atitude um grande número de militantes e pessoas com razoável interesse político. Para o senso comum, a propaganda política na TV é chata e desagradável. Sobretudo, considerando o baixo grau de politização do público brasileiro, esta constatação é preocupante.

A questão torna-se mais grave quando se percebe que, de alguns anos para cá, os programas políticos na TV tornaram-se muito parecidos, mesmo quando os partidos que os produzem pertencem a espectros políticos opostos. É lógico que eles se distinguem em função do volume de recursos mobilizados (custo de produção, recursos técnicos, habilidade narrativa) e da direção de seus ataques - isto é, da aparência de seu conteúdo político. No entanto, a linguagem visual utilizada é tão semelhante, que se torna difícil distinguir quem é quem, pelo menos até aparecer um rosto conhecido ou uma sigla. À medida que a propaganda política na TV pasteuriza as ideologias e linhas políticas, tornando todas as tendências muito semelhantes, ela se afasta do público, passando uma sensação de falta de novidade, de inutilidade e de inoperância.

Se consideramos que a linguagem está indissociavelmente relacionada ao conteúdo que expressa, vamos perceber que a pasteurização dos programas corresponde a - ou pelo menos denota - uma equalização populista das propostas políticas, sejam elas de esquerda ou de direita, socialistas ou neoliberais. Quando tudo acaba se expressando através da mesma linguagem, as diferenças de conteúdo se diluem. Para o público, tudo não passa de um espetáculo de grupos que se atacam sem outro motivo mais profundo que não a conquista ou permanência no poder e a fruição das benesses que isto implica. Conseqüentemente, o interesse diminui - ou mesmo desaparece - e a audiência cai, tornando ineficaz a utilização do horário político gratuito.

No que consiste essa linguagem pasteurizada e qual a sua origem ?

Antes de tudo, dois padrões: a "fala do trono" - ou seja, o talking head do político geralmente em enquadramento 3x4, falando para a câmera por intermináveis minutos; e o assim chamado clipe, em que imagens variadas são costuradas por alguma música composta para o efeito - eventualmente jingles de campanha. São dois padrões-chave, sempre presentes e ocupando, de modo geral, mais da metade dos horários disponíveis. Outras formas, com participação menor, também marcam presença: reportagens dirigidas, geralmente misturadas ou confundidas com seqüências de "povo fala", formatos de telejornal com apresentadores tipo Rede Globo e, eventualmente, sketches de alguma comicidade e interferências do gênero comercial de TV.

Tentativas de incorporar a linguagem da telenovela e números musicais de coreografia hollywoodiana falharam notavelmente, devido ao extremo amadorismo de suas realizações e à perceptível inadequação de seu uso na linguagem política.

A primeira constatação possível no exame dessas formas é a de que todas elas, sem exceção, foram copiadas, importadas de outras áreas da criação televisiva. Nenhuma delas é produto de uma criação original para a propaganda política.

A "fala do trono" é a forma mais óbvia e primitiva de se dar um recado na TV: o enquadramento em primeiro plano cria a aproximação desejada, a intimidade entre quem fala e quem ouve; o olhar direto para a câmera pretende transferir ao telespectador o papel de interlocutor direto. O resto vai por conta do talento, ou falta de, do político que fala. Ganham pontos aqueles que sabem dar à sua fala um caráter coloquial e verídico. Perdem pontos os que só sabem discursar, os que hesitam em demasia ou os que são incapazes de transmitir veracidade em sua fala. De qualquer modo, nada que um treinamento intensivo não seja capaz de resolver. O que nenhum treinamento resolve é o efeito cumulativo desses discursos, afastando espectadores e distanciando-os dos conteúdos políticos em discussão.

Embora óbvia em TV (pelo tamanho do vídeo e de seu posicionamento dentro da casa do telespectador) e de uso quase universal, a "fala do trono" ganhou alguns reforços na cultura política nacional: a Lei Falcão, do período da ditadura, e os pronunciamentos dos presidentes e ministros através da Agência Nacional.

A Lei Falcão obrigava o uso de fotos 3x4 dos candidatos a cargos eletivos, reforçando, durante anos, um padrão de enquadramento no horário gratuito. A cabeça assim exposta ganhou movimento e voz nos anos seguintes, mas continuou fiel à sua origem. Por outro lado, o padrão da Agência Nacional, transmitindo as falas presidenciais, sempre neste formato, permite a associação do tipo de enquadramento à autoridade e à solenidade do cargo.

É evidente que, por se tratar de algo quase "espontâneo" em TV, não se pode eliminar esse tipo de padrão narrativo da linguagem da propaganda política na TV. O uso da "fala do trono" precisa ser, no entanto, comedido. A superexposição do candidato, ou de seus apoiadores, torna os programas arrastados e chatos. A partir do segundo minuto de exposição, a maior parte da informação se perde e a empatia se desfaz. Em todo caso, é preferível a opção por entradas curtas e objetivas, comentando ou desenvolvendo assuntos expostos por outros meios, do que os longos discursos verborrágicos e retóricos.

O outro padrão da propaganda eleitoral na TV é o clipe. O nome, emprestado do videoclipe, abrange, na verdade, várias formas de editar. Numa primeira abordagem, ele seria referente a todas as edições de imagem unidas por música. No entanto, há edições que guardam exatamente as mesmas características e que são mantidas de pé por um texto off, eventualmente com música em BG (BG: segundo plano sonoro; música ou ruído mais baixos que a fala para sustentá-la ou enfatizá-la). Num caso é a letra da música que fornece o conteúdo político, em outro é o texto.

As imagens são, de modo geral, descontínuas. Existem várias escolhas possíveis: imagens do Brasil, gênero cartão postal, associadas a imagens de trabalho rural e urbano; imagens de tipos brasileiros das mais variadas regiões; imagens de miséria, geralmente com muitos closes de crianças, imagens de manifestações populares, de manifestações políticas, de conflitos sociais, de violência policial, de trabalho da militância; imagens de máquinas, de instalações, de atividades econômicas variadas, do reflexo urbano dessa riqueza, como edifícios, avenidas e automóveis.

Esse repertório é selecionado conforme a tendência ideológica ou política do candidato: se mais à direita, mais belezas naturais, pujança econômica e trabalhadores idealizados em poses estetizantes. Se mais à esquerda, miséria, conflitos sociais, trabalho árduo e violência. É verdade que, desde algum tempo, dada a falta de clareza da formação política nacional, a direita tem se apropriado das imagens e dos signos tradicionais da esquerda e já não é surpresa encontrar miséria, violência e conflito em programas de alguns candidatos conservadores - sobretudo daqueles assessorados por boas agências de publicidade.

Essas imagens são editadas sem continuidade. A edição não visa contar uma história ou transmitir uma informação. Ela, simplesmente, cria um clima emocional propício à inserção de alguma palavra de ordem, de algum apelo. Portanto, o que as une é simplesmente uma idéia genérica (belezas do Brasil, pujança da economia, miséria e fome nacionais etc.). O espectador deve se emocionar e se sentir parte daquilo que é mostrado. A um plano de jangadeiros no litoral do Ceará pode se seguir o close de uma criança sem terra do Paraná, um prédio na avenida Paulista ou um atlético operário iluminado pelo fogo de um forno siderúrgico. A música une tudo, dando a ilusão de que há algum tipo de relação real entre as imagens. Na verdade, trata-se de um tipo de informação, à qual é possível justapor quase qualquer conteúdo, o sofre do mesmo mal que o estilo clipe. Na medida em que a forma não decorre de uma necessidade das informações que vão ser difundidas, mas se superpõe a elas, ele também resulta retórico e vazio, com algumas honrosas exceções.

De qualquer modo, o estilo clipe, o modelo telejornal e a "fala do trono" apresentam os mesmos problemas: o isolamento das bases, a fuga para dentro do estúdio e a perda de contato com a vitalidade da prática política. Tornam-se, para o telespectador, a "fala do sono".

Depois das eleições de 1982, quando a propaganda política ainda estava amarrada pela Lei Falcão e só era capaz de produzir, com resultados duvidosos, uma sucessão de retratos 3x4, o PT foi o primeiro partido a aproveitar o espaço que a legislação lhe permitia com o horário gratuito na TV fora de época eleitoral. Portanto, coube ao PT criar um modelo de comunicação que fosse eficaz e não fugisse em demasia dos limites legais. Na época (como hoje quer novamente a legislação) a lei permitia apenas a transmissão de reunião do partido, em recinto fechado, para exposição de sua plataforma política. A solução encontrada - que permanece como uma das melhores em termos de propaganda política na TV - foi a de montar uma grande reunião, quase um comício em recinto fechado. Essa reunião se organizava no espaço com uma disposição que lembrava programas de auditório, em particular o programa do Chacrinha. As intervenções dos políticos (militantes e dirigentes do PT) eram dirigidas, em primeira instância, àquele público que estava ali. E o público reagia, interagindo com os oradores. A exposição era quente, com alto grau de improvisação. As câmeras trabalhavam como se trabalha num evento ao vivo: alguma câmera na mão, movimentos eventualmente bruscos. A edição tinha o timing do programa de auditório, acompanhando o ritmo interno do evento. Esse calor, essa sensação de veracidade passava para o telespectador. É claro que o resultado era irregular, porque dependia muito dos oradores e da empatia que se estabelecia entre eles e o público. Mas o balanço final indicava significativa adesão dos telespectadores ao programa, seguramente maior que a existente hoje. Evidentemente, é necessário levar em conta que esse tipo de programa era novidade naquele momento. Hoje, já se contam mais de dez anos de programa político gratuito, o que contribui para saturar o telespectador.

Alguns outros programas chegaram a ir ao ar utilizando a mesma linguagem do primeiro, com um ou outro acréscimo formal que "saía" do auditório, sem, no entanto, romper sua estrutura. Mas já a partir do final de 1983, um outro estilo foi proposto. Respondendo à intenção do partido de ganhar a classe média, o programa procurou aproximar-se de formas televisivas menos popularescas, introduzindo vinhetas que se inspiravam nos comerciais de TV e nos sketches cômicos. Fragmentou-se a unidade de espaço e - o que é muito mais importante - eliminou-se o mínimo de interação com o público, permitida pelo modelo de auditório. O programa ganhou liberdade formal, rompendo as limitações legais, e começou a desenvolver o estilo clipe.

Como dissemos, coube ao PT inaugurar um modelo de comunicação e, rapidamente, transformá-lo. Nos anos subseqüentes, os outros partidos inspiraram-se nas invenções do PT. Durante algum tempo foi possível manter certa originalidade, mas, com a contratação de profissionais experientes na publicidade, na televisão e no jornalismo, os demais partidos conseguiram desenvolver formas muito semelhantes às do PT. O que se observou, então, foi a adoção de uma linguagem muito parecida por parte de todas as tendências. Em anos recentes, a inovação coube a partidos, até mesmo, de direita. A campanha de Maluf para a prefeitura - que resultou em sua vitória - incorporou elementos de interação com o telespectador (Programa Bairro a Bairro) que revelam um desenvolvimento, enquanto a linguagem dos programas do PT permanece cristalizada, burocratizada e morta.

Portanto, partindo de um modelo de auditório, o programa político ganhou a liberdade de misturar o estúdio com a reportagem e a câmera fechada nos apresentadores com a câmera livre da reportagem de rua, além da possibilidade de incluir arquivo, trucagem e efeito. No entanto, este aparente enriquecimento resultou numa perda: o abandono do modelo de auditório - que, aliás, poderia perfeitamente conviver com as novas propostas. Os programas distanciaram-se da militância, do povo, da massa. Pode até parecer paradoxal que a câmera mais livre, capaz de percorrer bairros, sindicatos, fábricas, regiões do país, tenha como resultado uma linguagem distanciada da base. Aparentemente ela está indo ao encontro da base. Infelizmente, não é verdade.

A câmera mais livre, a edição que articula um maior número de matérias gravadas em diferentes locais, implica um centro de decisão mais restrito, mais isolado. Implica um centro de decisão composto, de um lado, por profissionais de criação, direção e edição e, de outro, de dirigentes encarregados de transmitir os pontos de vista do partido.

Essa estrutura, que em grande parte reproduz a relação cliente/produtor existente na produção comercial de vídeo e TV, é necessária. Não é possível manter a produção de programas em funcionamento, respeitando prazos e mantendo a qualidade, sem utilizar um tipo de estrutura de produção que já comprovou, na prática, ser a única que funciona. Experiências democratistas de direção coletiva e coisas semelhantes, comprovadamente falham e se diluem na ineficiência. Mas este tipo de estrutura, autoritária por necessidade interna, precisa ser colocada a serviço de um processo democrático de decisão: a interface do partido que a ela se cola precisa refletir o contato com a base. É necessário saber, o tempo todo, quais são os elementos de linguagem que falam com mais facilidade à base; e quais são os que ela rejeita - seja por identificá-los ideologicamente com o adversário, seja por considerá-los tanto de mau gosto, bregas, quanto elitistas, de difícil decodificação. No limite, é possível trazer a base para "dentro" do programa: é uma das funções do auditório. O caminho oposto - o do isolamento, da torre de marfim, do grupo de iluminados que prescindem do contato com a base - vai reproduzir na estrutura de produção o mesmo erro que esteve no centro do fracasso do socialismo real: a substituição das bases pelo indivíduo, das massas pelo camarada dirigente. O programa político deixa de ser uma expressão da vontade coletiva do partido para tornar-se expressão do talento individual de seus realizadores. E, bem ou malfeito, permanece isolado, sem capacidade de comunicação com o público.

Uma proposta de linguagem eficaz para a propaganda política precisa partir dessas constatações e levar em conta todas as formas experimentadas, incorporando-as eficientemente. Acredito que o núcleo de uma nova linguagem pode estar na utilização da forma básica de programa de auditório, como eixo, e a incorporação das demais formas como elementos coadjuvantes - na medida em que a legislação permitir.

Isso significa a criação de um espaço envolvente - um estúdio grande (Vera Cruz, por exemplo), ou uma quadra de vôlei coberta - onde os oradores fiquem numa tribuna cercada pelo público. Pode ou não haver um animador/apresentador. O mais importante é que o público seja formado por militantes, convocados publicamente pelo partido. Não se quer um público passivo e muito menos submisso, programado para reagir de acordo com o script. O que se pretende é um público ativo, participante, capaz de reações próprias, tanto a favor quanto contra. O que se pretende é criar um evento vivo, vibrante, quente. Dessa forma, os oradores terão que dar de si para dominar e convencer aquele público imediato: o resultado disso sobre o público telespectador será ainda maior.

Além dessa forma de contato imediato com parcela do público, outras alternativas podem ser acrescidas: por exemplo, o material gravado no estúdio com público, pode ser mostrado através de telão, videowall ou simples monitor a grupos de base, em associações, sindicatos, fábricas e travada uma discussão com o público local. Essa discussão, gravada, passa a integrar o programa. Em alguns casos pode-se abrir a possibilidade de resposta de candidatos ou dirigentes dessa vez em estúdio, falando para a câmera, gênero talking head.

Se a base é essa, nem por isso vamos esquecer as formas que criticamos, quando usadas em outra estrutura. Acabamos de citar um uso possível do talking head. Empregadas corretamente, dentro do contexto adequado, sem dominar o programa e contaminá-lo com sua forma, todos os recursos podem ser utilizados.

Assim, além do que já foi citado, o talking head pode ser empregado para que um candidato, um detentor de cargo público ou um dirigente, passem algum tipo de informação que não caiba no clima de auditório. O fundamental aqui, como para as outras formas, é o uso discreto: a intervenção precisa ser curta, sem monopolizar o programa, sem se tornar centro da informação.

Sketches, reportagens, intervenções sob a forma de comercial também cabem, desde que mantendo a discrição e subordinando-se à estrutura principal. É claro que, aqui, colocam-se as questões legais - se será possível, com a legislação vigente, utilizar diretamente esses recursos ou se será necessário, por exemplo, projetá-los num telão dentro do estúdio/auditório.

Por fim, o clipe. Um uso extremamente moderado e, mais uma vez, discreto, pode ser bem vindo. É necessário, ainda uma vez, distinguir o clipe típico de programa político - vazio política e ideologicamente, composto de pura forma, com qualquer conteúdo - de um outro formato, que, embora semelhante em seu aspecto externo ao clipe (imagens articuladas por música), tem uma consistência totalmente diferente.

Em cinema existe um tipo de seqüência, denominada geralmente de "seqüência de montagem" (ver "A Técnica da Montagem", de Karel Reisz). Planos não necessariamente articulados por uma sintaxe interna à ação podem ser encadeados, geralmente com o apoio de música, num todo significativo. Mas há certos requisitos na articulação desses planos: continuidade formal (disposição de volumes e de linhas nos planos sucessivos, continuidade de luz, continuidade de movimento) e coerência de significado. Geralmente, os planos devem ter um universo comum de referência: por exemplo, amanhecer numa cidade, ou o trabalho manual, ou a pobreza rural etc. Cada plano precisa ser significativo por si mesmo, ter impacto sobre o espectador potencializado pela montagem. O conjunto dos planos conta uma história, traduz um clima, expõe um sentimento. Nunca pode ser encarado como "ilustração" de uma idéia ou de uma letra de música.

Essas idéias têm o propósito de abrir o debate, num momento em que a propaganda política na TV torna-se mais crucial do que nunca.

Renato Tapajós é videomaker.