Sociedade

Surge no país um novo tipo de movimento social, aparentemente situado acima da luta de classes e da disputa pelo poder

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O cenário político brasileiro dos últimos anos apresenta dois fenômenos que têm sido pouco estudados entre nós e que precisam ser incorporados com urgência às nossas análises, sob o risco de perdermos parte da rica e complexa realidade que nos cerca e sobre a qual pretendemos trabalhar na perspectiva das grandes e profundas transformações que se fazem necessárias.

Um é a rápida mudança que se está operando no sistema partidário, a partir da última e grande reforma, ocorrida nos últimos anos da década de 70. Outro é o surgimento de provavelmente um novo tipo de movimento social, que disputa com os partidos políticos não apenas a mediação entre a sociedade civil e o Estado, mas a própria condução da sociedade ou, pelo menos, sua conformação a um determinado projeto de vida.

É quase lugar-comum afirmar que não existe sistema partidário no Brasil ou que os partidos são frágeis, inconsistentes e sem representatividade. Nos seus aspectos mais genéricos, a afirmação é proclamada tanto por conservadores quanto por progressistas, por mais paradoxal que isso possa parecer.

Os conservadores, ao tentarem passar para a sociedade a idéia da fragilidade ou inexistência dos partidos, obedecem a princípios mais pragmáticos que teóricos.

Em primeiro lugar, a classe dominante não precisa, a rigor, de partidos políticos, já que dispõe de outros instrumentos de poder: o próprio Estado, as Forças Armadas, a grande imprensa, a capacidade de influência econômica etc. E, em segundo lugar, mesmo que eventualmente se faça representar em rituais homologatórios nas casas parlamentares, procura destruir os partidos ou induzir a sociedade a descartar-se de estruturas e lideranças partidárias, porque, mesmo frágeis, os partidos podem significar problemas e obstáculos.

As razões dos analistas de esquerda são mais sutis. Por traz dessa visão há uma espécie de comparação entre um modelo de partido revolucionário idealizado e atemporal, que provavelmente não se realizou em nenhum lugar do mundo, e os demais partidos concretos, ou "partidos burgueses", como se diz. É claro que, nesse cotejo entre um modelo ideal e os partidos "realmente existentes", estes perdem, mas, daí a anular quase que por completo sua concretude e sua importância, há um grande passo, e, em geral, um passo em falso.

A observação da realidade brasileira permite afirmar que os partidos políticos existem, são reais, têm variados graus de representatividade e são capazes de lutar por propostas políticas. Em determinados momentos da história recente, como o atual, formam um conjunto que é mais do que um mero aglomerado eventual, mas constitui um verdadeiro sistema articulado. O sistema partidário pesa na vida nacional e, por paradoxal que isso possa parecer, vem se fortalecendo desde o final do regime militar.

Neste momento, o sistema partidário apresenta duas características: sofre um grande descrédito popular e está à beira de grandes alterações.
O descrédito resulta, em parte, do desempenho dos próprios partidos e de algumas de suas lideranças mais visíveis, ao que se acresce um generalizado ceticismo de boa parte da população, e que vem se manifestando através da abstenção e dos votos nulos e brancos, em progressão crescente.

Mas esse descrédito "popular" também é fortemente induzido pelas classes dominantes, pelas forças políticas conservadoras e pela grande imprensa que procuram colocar-se como a representação exclusiva da população e como mediação mais eficaz entre a sociedade civil e o Estado.

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Outra característica do atual sistema partidário brasileiro é o conjunto de modificações que se avizinham aceleradamente e que já mostram seus primeiros sinais.

A lei eleitoral recentemente aprovada introduz restrições na maneira de os partidos comunicarem-se com os eleitores através da televisão, e, ao mesmo tempo, não toca nos mecanismos de abuso econômico e financiamentos irregulares de candidaturas. É, portanto, uma lei regressiva, reacionária e antiética.

A nova lei partidária, que poderá ser aprovada brevemente, concederá relativa autonomia de organização aos partidos políticos, liberando-os, assim, após quase quinze anos, de um estatuto-padrão gestado nos gabinetes do regime militar.

A relativa autonomia organizativa concedida aos partidos poderá significar um problema, e não uma solução, para a maioria deles, pois agora terão de enfrentar desafios: definição programática mais precisa; relação entre bases e direção; entre instâncias, parlamentares e executivos; concepção de mandato; relação entre partido e sociedade etc. Os partidos tradicionais de esquerda também terão de fazê-lo, mas já estão mais acostumados a questões dessa natureza. O PT, em particular, já tem um relativo acúmulo de reflexões sobre vários desses itens. De qualquer maneira, não se deve descartar a possibilidade de a sociedade acompanhar tais debates, e até tentar interferir nos seus rumos. O recente episódio das tensões entre o Diretório Nacional do PT e a bancada federal em relação à atuação parlamentar na votação da revisão constitucional é um exemplo disso.

Mas é claro que as principais modificações no sistema partidário brasileiro virão mais da vida do que meramente das leis. Das quase trinta legendas hoje existentes, apenas dez constituem o núcleo central do sistema partidário brasileiro: PFL, PMDB, PSDB, PPR, PDS, PTB, PDT, PSB, PC do B e PT. Ao redor desses, orbitam outros, de três tipos: pequenos partidos, de corte esquerdista (PPS, PC, PSTU etc.); pequenos partidos de interesse apenas setorial ou regional e siglas de aluguel, a serviço das forças conservadoras.

Com todas essas características, o sistema partidário brasileiro tem se mostrado insuficiente para representar o conjunto de uma sociedade como a brasileira, tão heterogênea e complexa.

No vácuo que assim se forma, outras formas sociais associativas procuram representar idéias e interesses específicos de setores mais ou menos definidos da população e exercer, mesmo sem mandato formal para tanto, uma espécie de mediação entre a sociedade civil e a sociedade política, isto é, o Estado.

A mais conhecida e poderosa dessas formas sociais associativas é constituída pelo momento sindical, com suas associações profissionais, seus sindicatos de base, suas federações e confederações e, agora, suas várias centrais sindicais. O movimento sindical tem características específicas, e não será tratado aqui artigo.

A outra força é o movimento popular, de que falaremos em seguida.

Movimentos populares

Os movimentos populares tradicionais caracterizam-se por constituírem pressões e reivindicações mais ou menos organizadas que procuram conquistar, do Estado, benefícios concretos e imediatos. São desenvolvidos por pessoas de renda baixa ou média, e exprimem demandas para satisfação de necessidades vitais e básicas: alimentação, moradia, saúde, escola, transporte urbano, saneamento, segurança etc.

Eventualmente, tais campanhas reivindicativas podem assumir caráter mais persistente e, nesse caso, produzir entidades com um mínimo de estruturação e relativa permanência.

Outro tipo de movimento popular tradicional é o que exprime reivindicações e aspirações de grupos sociais específicos, como os grupos étnicos, os grupos de mulheres, idosos, jovens e adolescentes, as pessoas com deficiências etc. Às vezes esses movimentos abrangem exclusivamente os setores populacionais que se enquadram nessas categorias. Outras vezes, porém, incluem, também, entidades organizadas que procuram representar esses setores e suas reivindicações: Movimento Negro, Movimento de Mulheres, Movimento da Carestia.

Uma das principais características dos dois tipos de movimento é a sua autonomia proclamada ou efetiva, frente a partidos políticos, instituições, igrejas etc. Freqüentemente ocorrem tensões diversas entre o movimento e o partido, ou entre o movimento e a Igreja. Mesmo quando boa parte dos principais ativistas dos movimentos são quadros políticos ou partidários, o grosso dos liderados não têm, necessariamente, vinculações orgânicas com partidos e igrejas. É comum, também, esses movimentos ou muitas de suas lideranças serem cooptados pelo Estado - o inimigo supostamente a ser combatido - ou por políticos conservadores e fisiológicos.

Essa característica é mais acentuada nos movimentos do primeiro tipo também chamados de "movimento de periferia" - do que nos de segundo tipo, os "movimentos de minorias" (mesmo quando os setores populacionais aí enquadrados não sejam minoritários em termos quantitativos).

Outra característica desses movimentos é a de que eles procuram pressionar mais freqüentemente o Legislativo do que o Executivo, embora saibam que a "solução" encontra-se mais em mãos do Executivo.

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Novos movimentos

Nos últimos dez anos surgiram outras campanhas e movimentos que, embora com características nitidamente diferentes entre si, provavelmente possam ser agrupados num só bloco: as diretas, a constituinte e o impeachment.

As três campanhas têm, entre si, o denominador comum de serem o resultado de articulações específicas entre partidos políticos, organizações sindicais e setores institucionais (governos, casas legislativas etc.). Ao contrário dos movimentos populares tradicionais "de periferia" e "de minorias", as três campanhas baseavam sua atuação e suas proclamações no caráter institucionalizado, multipartidário e multi-setorial, com apoio popular massivo.

Os três movimentos ainda estão por ser adequadamente estudados, mas desde já é possível observar algumas peculiaridades.

O eixo central da campanha das diretas foi sempre um eixo especificamente político. Nascido modestamente como uma reivindicação de políticos e de parlamentares de oposição, a "pauta" da motivação foi se alargando paulatinamente para abraçar bandeiras não apenas conjunturais, mas também estruturais e que diziam respeito às mudanças sociais requeridas no rumo de uma sociedade justa e fraterna. O peso de governos estaduais e municipais, ou de bancadas parlamentares teve papel decisivo no êxito relativo da campanha.

O processo constituinte, com suas emendas populares, também foi sustentado por partidos e por sindicatos e centrais, bem como, indiretamente, por governos estaduais pressionando os deputados de seus estados. Mas não se limitou a demandas políticas gerais, reivindicações sociais, econômicas e até corporativas. Essa circunstância talvez explique o relativo fracasso do processo, que apenas conseguiu transformar em lei algumas poucas bandeiras, não necessariamente as mais relevantes.

O impeachment teve um eixo ainda mais específico, sustentado por uma opção menos política do que moral. Ao mesmo tempo, desenvolveu caráter cívico, no sentido de que a adesão à campanha do impeachment não precisava basear-se numa opção por um modelo político, mas podia fazer apenas escolhas puramente éticas. Apesar das passeatas, das concentrações e dos cara-pintadas, o campo principal de disputa deu-se não somente nas ruas e nas praças, mas também nas páginas da imprensa. E foi, talvez, na história do Brasil, a única de todas as campanhas cívicas que obteve pleno êxito no seu objetivo principal: o impeachment do presidente da República.

Política e miséria

Nos últimos tempos, todavia, começam a despontar embriões de novíssimos movimentos sociais que não se enquadram perfeitamente nem nos movimentos populares tradicionais (a luta por moradia, a luta contra a carestia etc.) e nem nos posteriores, de alvos mais claramente institucionais (como as diretas, a constituinte e o impeachment).

São movimentos sociais não necessariamente "populares" e que giram em torno de "virtudes" aparentemente situadas acima tanto da luta de classes quanto da disputa pelo poder político.

Vejamos algumas das principais características dos novíssimos movimentos sociais.

Eles não atacam as causas dos fenômenos. Procuram atuar sobre as conseqüências mais visíveis, mais dramáticas; às vezes apenas sobre os sintomas (a fome, a violência, a moralidade). E não é só: não atacam as causas e às vezes sequer as identificam ou explicitam.

Os movimentos trabalham sobre bases mais emocionais e afetivas do que racionais. Pode-se dizer que, aparentemente, prescindem das análises conjunturais e das propostas políticas e organizacionais longa e cuidadosamente elaboradas. Trabalham com as variáveis da compaixão, dos sentimentos humanitários positivos e negativos, da vingança, a ira contra o inimigo etc.

Da mesma forma, esses novíssimos movimentos não se expressam por formulações teóricas nem por proposições políticas complexas. Traduzem-se por idéias e sentimentos simples: a fidelidade, a solidariedade, a indignação moral etc.

Tais movimentos têm ambições extremamente modestas: não querem transformar o mundo nem construir o novo homem. Querem metas humildes, factíveis e de preferência quantificáveis: tantas toneladas de comida no natal, tantas vagas escolares, tantas casas populares em tanto tempo, tantos empregos etc.

Não são explicitamente conduzidos por partidos políticos. E, embora, geralmente contem com a colaboração, mais oculta que ostensiva de militantes, procuram repelir vinculações político-partidárias e passar a imagem de ações não-políticas, não-partidárias e não-ideológicas.

Esses movimentos, portanto, aparentemente apartidários ou "suprapartidários" (como preferem autodenominar-se), obtêm intensa e favorável exposição na mídia, e, com isso, amplo arco de apoio e a empatia quase generalizada da população. A modéstia das metas acaba por passar a impressão de que a forma de atuação é eficiente e eficaz ou, pelo menos, mais eficiente do que a atuação partidária; a excelência dos resultados alcançados - embora pouco significativos - é superenfatizada.

Todos esses fatores combinados redundam em que os novíssimos movimentos tiram sua força de sua fraqueza. Para acentuar tais características, os movimentos aparecem liderados não por organizações políticas ou partidárias mas por aquilo que se convencionou chamar de "entidades da sociedade civil" e "personalidades". Tanto umas quanto outras não têm real capacidade própria de mobilização popular massiva, mas são fontes estratégicas de comunicação, e potencializam a repercussão das campanhas na mídia, principalmente eletrônica.

E assim tais movimentos já não se dão mais nas ruas e nas praças, nem nas fábricas, nas escolas ou no campo, mas na tela da Globo e no imaginário popular. Resta saber - o que certamente mereceria outras análises, bem mais aprofundadas - se tais movimentos, surgidos do relativo vácuo provocado por uma insatisfatória situação do sistema partidário na sua dupla missão de representação e mediação da sociedade civil - passarão, gradativamente, a substituir os partidos políticos como condutores da ação coletiva organizada. Ou, ao contrário, acabarão sendo cooptados, incorporados e integrados, quer pelo Estado, quer pelos partidos mais fortes; ou, ainda, numa terceira hipótese, permanecerão à margem dos partidos, numa ação paralela a eles, ora conflituosa, ora cooperativa, mas sempre disputando com o sistema partidário a expressão e a direção da sociedade.

Perseu Abramo é membro da Comissão Executiva Nacional do PT.

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