Economia

Conhecido estudioso dos problemas do setor externo e do endividamento da economia brasileira, Arno Meyer destacou-se mais recentemente como um dos críticos do processo de negociação com os credores levado a prática nos últimos anos. Nesta entrevista a Teoria & Debate, Arno critica os acordos com o Clube de Paris e com os bancos estrangeiros, apontando seus efeitos negativos sobre as finanças públicas, e entra na discussão sobre o que fazer a partir deles.

É correto afirmar que a dívida externa tornou-se uma questão pouco relevante para o país?

A conjuntura financeira internacional mudou radicalmente em relação ao início dos anos 80, tornando bem mais folgado o quadro externo da economia brasileira. Nem por isto o peso da dívida deixou de ser muito alto, especialmente no que se refere às finanças públicas. A crise da dívida externa foi deflagrada por uma conjuntura internacional muito desfavorável: forte alta dos juros internacionais, com a taxa libor chegando perto de 20% ao ano em 1981; queda dos termos de troca (a relação entre o preço das exportações e das importações), de um nível 100, em 1977, para 53, em 1983; recessão e protecionismo nos países industrializados, inibindo nossas exportações; e interrupção dos financiamentos privados voluntários. Foi um choque colossal para um país que vinha financiando o seu desenvolvimento com dívida externa, como o Brasil, ao qual se somaram os equívocos de política econômica cometidos principalmente pelo último governo militar.

Os acontecimentos no cenário externo, que não eram de responsabilidade dos países devedores e em relação aos quais nada podiam fazer, constituíram-se inclusive no fundamento das exigências dos devedores para que os credores assumissem parte do ônus da crise. O quadro agora é bem diverso. A libor está em torno de 4% ao ano. A liquidez externa é bastante folgada, devido à queda dos investimentos nos países industrializados e das taxas de juros internacionais. Os capitais procuram mercados onde possam obter rendimentos mais altos, o que explica a volta dos recursos para os países em desenvolvimento. Embora boa parte dos países industrializados estejam estagnados, o Brasil recuperou mercados que haviam se retraído. O barril de petróleo custa hoje cerca de US$ 14, preço próximo, em termos reais, ao que vigorava antes da crise do petróleo de 1973. Este choque externo favorável aliviou as contas externas em geral e o peso da dívida sobre o conjunto da economia em particular.

Comparando-se 1992 com 1982, nota-se que os juros líquidos passaram a representar 20,3% das exportações e 1,7% do PIB, contra 56,3% e 4%, respectivamente, dez anos antes. Mas o valor total da dívida continua alto: houve um ligeiro recuo em relação às exportações, de 423%, em 1982, para 371%, em 1992; mas, em relação ao PIB houve um pequeno aumento, de 30,3% para 31,8%. Da dívida total de US$ 134bilhões, US$ 100 bilhões são dívida do setor público não-financeiro, sendo US$ 66 bilhões de responsabilidade do Tesouro e do Banco Central. Assim, mesmo com as taxas muito baixas hoje praticadas, os juros externos devidos pelo Tesouro e BC representam nada menos que 8% da arrecadação bruta de receitas federais. E não se inclui nesse número a despesa com amortizações, boa parte das quais não estão sendo refinanciadas. É um ônus considerável sobre as finanças públicas, ainda mais quando se conhecem as dificuldades do setor público para recompor suas fontes de financiamento ou se ajustar à menor disponibilidade de recursos não inflacionários.

Um dos objetivos centrais dos atuais acordos com os credores não seria justamente aliviar a situação financeira do setor público?

Exatamente. Os acordos da dívida deveriam ter como objetivo: reescalonar a dívida vincenda ou vencida, reduzir o seu custo (diminuindo as taxas de juros ou cancelando parte do valor devido), prover novos recursos e restabelecer a credibilidade do devedor (aspecto essencial para a redução da taxa de risco e de juros e o restabelecimento das fontes de financiamento de longo prazo). Os acordos que o Brasil negociou recentemente falharam na consecução de tais objetivos. O acordo com o Clube de Paris (onde se negociam as dívidas com governos) abrangeu cerca de US$ 13,6 bilhões (pouco mais de 50% da dívida com as agências governamentais) e o acordo com os bancos comerciais deverá reestruturar cerca de US$ 52 bilhões. Envolvem, portanto, cerca de 65% da dívida externa pública. O acordo com o Clube de Paris reescalonou a maior parte dos pagamentos atrasados até 31/03/93, mas não a totalidade; o Brasil teve que pagar o restante e também os juros dos atrasados. Foram reestruturados todos os vencimentos ocorridos entre 01/01/92 e 31/08/93 da dívida contratada antes de 31/03/83 e apenas 75% da dívida previamente reescalonada. Os vencimentos de 31/08/93 em diante poderão eventualmente ser objeto de novo acordo. Os juros sobre a dívida reestruturada equivalem ao custo de captação de cada agência acrescido de uma margem. Não há nenhum alívio financeiro a não ser o reescalonamento dos vencimentos e não ficaram assegurados novos financiamentos das agências ao Brasil. Além disso, o acordo deixou de explorar importantes precedentes nas negociações do próprio Clube de Paris (Polônia e Egito conseguiram abater 50% de suas dívidas renegociadas no Clube, enquanto a Argentina, à época, conseguiu um acordo bem mais amplo do que o brasileiro).

Mas a dívida com os bancos não vai ser reduzida?

É o que deveria ocorrer num acordo tipo Plano Brady. Anunciado pelo secretário do Tesouro dos EUA, Nicholas Brady, em 1989, o plano previa a reestruturação da dívida externa dos países altamente endividados, reconhecendo que ela não poderia ser paga na sua totalidade. Previa a troca da dívida velha por títulos (bônus) de prazo mais longo emitidos pelo país devedor, com desconto sobre o principal ou taxas de juros abaixo dos níveis de mercado. Em troca do desconto, os países que aderissem ao programa teriam que se submeter aos programas do FMI e do Bird (Banco Mundial) e oferecer garantias efetivas ao principal e parte dos juros para a dívida reestruturada. Contudo, dos US$ 52 bilhões do acordo brasileiro com os bancos comerciais, apenas US$ 35 bilhões são passíveis de conversão em Brady Bonds (US$ 6 bilhões são dívidas com bancos brasileiros no exterior, US$ 5 bilhões são juros atrasados e US$ 4 bilhões referem-se ao chamado dinheiro novo de 1988, que serão convertidos em bônus cujo prazo e rendimento varia conforme o tipo de dívida). O acordo brasileiro pode ser chamado de Plano Brady meia-sola, pois apresenta instrumentos que não incorporam nenhuma redução de dívida. O exemplo mais conspícuo deste fato é um bônus que paga juros de 8% ao ano, mas que capitaliza a diferença entre esta taxa e uma taxa fixa que aumenta de 4% ao ano no primeiro ano até 5% no sexto ano. Daí em diante, o bônus paga simplesmente 8% ao ano. Lembre-se que a libor está hoje em 4% ao ano. Este bônus foi escolhido pela família Dart, que se transformou nos últimos anos num dos principais credores individuais do país, comprando dívida brasileira desvalorizada. Dos US$ 35 bilhões, estima-se que apenas 75% serão transformados em Brady Bonds, distribuídos em três opções. Na primeira, em torno de US$ 12,3 bilhões (35%) se converterão em bônus com desconto de 35% sobre o principal, rendendo libor mais 13/16, com redução de US$ 8,0 bilhões. Na segunda, cerca de US$ 12 bilhões (34,2%) serão transformados em bônus ao par, pagando juros de 4% ao ano no primeiro ano, subindo até 6% ao ano do sétimo ano em diante.

Na terceira, aproximadamente US$ 1,9 bilhão (5,4%) se transformará em bônus com redução temporária de juros, com taxas fixas que variam de 4% nos dois primeiros anos a 5% no quinto e sexto ano, e libor mais 13/16 até o décimo quinto ano. O principal dos bônus com desconto e dos bônus ao par terá garantias efetivas. Para isto, o Brasil deverá comprar letras de trinta anos do Tesouro dos EUA, que rendem hoje 6,8% ao ano. Assim, será preciso desembolsar cerca de 14 centavos para adquirir cada dólar de garantia, um custo total de US$ 2,8 bilhões. Os três tipos de bônus têm garantia adicional de doze meses de juros, para o que deverá o Brasil depositar mais US$ 0,9 bilhão no banco para Compensações Internacionais (BIS), elevando o custo das garantias para US$ 3,7 bilhões.

As vantagens imediatas são pequenas, então?

O ganho direto no curto prazo vem do bônus com desconto sobre o principal. O bônus ao par custa 4% ao ano, nível atual da libor. No curto prazo, há vantagens apenas no bônus com desconto, da ordem de US$ 0,2 bilhão no primeiro ano (US$ 4 bilhões a 4,8125%, ou libor de 4% ao ano mais spread de 13/16). Como o país gastará US$ 3,7 bilhões de suas reservas para formar garantias, percebe-se que o fluxo é fortemente negativo para o Brasil no primeiro ano. A situação seria melhor se as garantias fossem financiadas por capitais oficiais, como em outros países que aderiram ao Plano Brady. De início o governo esperava obter pelo menos US$ 0,8 bilhão do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird e BID) e mais US$ 0,8 milhão do FMI e dos bancos comerciais. Mas o Brasil terá que utilizar suas próprias reservas para formar as garantias. Como o Brasil financiou a compra dessas reservas no mercado financeiro doméstico, pagando juros, em cruzeiros, de 25% reais ao ano, ou mais, conclui-se que estes US$ 3,7 bilhões são financiados no curto prazo e a um custo elevadíssimo.

E o impacto sobre o setor público?

O serviço da dívida externa renegociada com o Clube de Paris e os bancos comerciais constará agora do orçamento da União, mas o governo não criou as condições para que estas despesas fossem financiadas adequadamente, com receita tributária. O que o governo vem fazendo é tentar criar algum espaço no orçamento via contenção de gastos, basicamente gastos sociais e de investimentos, e emitir dívida pública interna cara e de curto prazo. Os acordos de fato pressupõem um substancial ajuste no superávit fiscal primário ou uma retomada dos financiamentos externos ao setor público, ou uma combinação das duas coisas. Não é por outro motivo que os números apresentados pelo governo ao Senado previam originalmente um superávit primário de 4% do PIB para 1993 e um financiamento externo ao setor público de 1% do PIB (US$ 4,5 bilhões a US$ 5 bilhões). Mas os financiamentos externos ao setor público, ao Tesouro, não foram até agora retomados. As fontes tradicionais de financiamento ao setor público (Bird, BID, FMI, agências governamentais) continuam retraídas. O governo brasileiro hoje de fato amortiza liquidamente dívida para as instituições de crédito a longo prazo. Assim, as pré-condições para o cumprimento satisfatório do acordo não estão dadas, nem do ponto de vista fiscal, nem do ponto de vista do financiamento externo ao setor público. Ao colocar a carroça na frente dos bois e não garantir de antemão as condições necessárias para o cumprimento não-inflacionário dos acordos, o governo prejudicou um dos objetivos principais dos próprios acordos, ou seja, a recuperação da credibilidade da política econômica e do setor público brasileiro. Um dos problemas da política econômica atual e futura será, portanto, gerar recursos não inflacionários no orçamento público para cumprir estes acordos - se não quiser fazê-lo como no passado, emitindo moeda ou dívida pública de curto prazo, o que ameaça a estabilidade monetária.

Os acordos foram bons para os bancos?

Sem dúvida. Não foi por outro motivo que eles aceitaram assinar um acordo com o Brasil sem o aval do FMI. O Brasil será o último grande devedor latino-americano a reestruturar sua dívida externa com os bancos comerciais no âmbito do Plano Brady. O plano terá então cumprido um de seus principais objetivos: isolar a carteira de empréstimos dos bancos do risco de futuras inadimplências destes devedores. Em troca de concessões marginais, os bancos conseguiram valorizar seus créditos, transformando-os em títulos com garantias efetivas que podem ser livremente transacionados no mercado. Pelo menos para os bancos comerciais estrangeiros a crise da dívida externa iniciada em 1982, que chegou a ameaçar o próprio sistema bancário internacional, parece ter chegado ao fim.

Mas não para os países latino-americanos, é o que parece...

Não se pode descartar a eventualidade de outra crise da dívida no futuro. A história mostra que um período de abundância de capitais externos costuma ser seguido por nova crise financeira externa. Países como México e Argentina estão apresentando pesados déficits na conta de transações correntes devido à valorização de suas taxas de câmbio e financiando este déficit com entrada de capitais externos. Se esses déficits não forem reduzidos no futuro e se o atual quadro financeiro externo favorável se reverter, uma nova crise financeira externa afetará a região.

O que deveria fazer o Brasil, depois de assinados estes acordos?

Prevalecendo o atual quadro financeiro externo favorável, o melhor a fazer é criar as condições no orçamento para que os acordos possam ser cumpridos sem sacrifício das áreas prioritárias da ação do governo nos próximos anos. Isso significa aumentar a carga tributária e tentar recompor as fontes de financiamento a longo prazo do setor público no exterior. Há pouco espaço neste momento para questionar acordos assinados recentemente. A situação financeira externa mudou muito. Os choques adversos de dez ou quinze anos atrás legitimavam uma demanda sobre os credores para que eles assumissem parte substancial dos ônus da renegociação da dívida. Esse cenário não existe mais. Por outro lado, os bônus, em que foi convertida boa parte da dívida, estão pulverizados entre muitos aplicadores. E mais fácil reestruturar um empréstimo bancário do que um título, porque qualquer indivíduo particular poderá questionar juridicamente nos fóruns internacionais essa reestruturação. Por isto mesmo, os bônus foram em geral excluídos das renegociações de dívidas externas. Além disso, dadas as atuais condições externas, reabrir a questão teria certamente um custo político bastante elevado, provavelmente maior que os eventuais benefícios de uma nova reestruturação. Isso não significa que no futuro os acordos não possam ser revistos, mas para que isso ocorra a situação financeira externa teria que piorar significativamente.

Carlos Eduardo Carvalho é membro do Conselho de Redação de T&D.