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É impossível prever as circunstâncias em que um possível governo presidido por Lula estrearia em janeiro de 1995

É impossível prever as circunstâncias em que um possível governo presidido por Lula estrearia em janeiro de 1995, assim como é impossível arrolar as milhares de medidas que terão de ser adotadas para enfrentar manobras desestabilizadoras, desarmar bombas de efeito retardado, desfazer ninhos sobre projetos em curso e constituir equipes nos diversos níveis de governo, capazes de implementar o programa. O que é possível traçar é um cenário genérico do Brasil no começo de 1995: inflação alta ou em elevação, demandas sociais reprimidas em vias de eclosão, angústia e suspeita nos meios empresariais em relação ao novo governo, euforia e expectativas otimistas nos meios populares de que o país estará em vias de encerrar uma etapa de sua história e iniciar outra, marcada pela hegemonia democrática da maioria pobre de nossa sociedade.

A tarefa do novo governo será dupla: desfazer os temores injustificados em grande parte criados pelos adversários para induzir o eleitorado a não sufragar a chapa do PT - e formar uma coalizão de forças sociais para dar sustentação a um programa articulado de estabilização, de retomada do crescimento e de redistribuição de renda. Embora o governo de Lula contemple muitos outros aspectos, limitar-me-ei a estas questões por duas razões. Primeiro porque é do êxito desta parte do programa que depende a viabilidade de tudo o mais; a realização da proposta econômica central proporcionará recursos financeiros e políticos indispensáveis ao cumprimento da maioria das outras metas do programa de governo. Segundo, porque, o encaminhamento desta proposta terá que se dar desde os primeiros dias de governo, pois ela é crucial tanto para estabelecer laços de colaboração com os setores capitalistas dispostos a se engajar na sua realização, quanto para aumentar a coalizão social que dará governabilidade ao governo Lula durante toda extensão de seu mandato.

A proposta econômica central

Ao contrário do que difundem incessantemente os meios de comunicação, a responsabilidade pela enorme inflação brasileira não é primordialmente do Estado, mas do modo perverso com que se travam os conflitos distributivos no Brasil. Estes conflitos tendem a acarretar unicamente repasses de custos a preços, que avolumam a voragem inflacionária, sem corrigir por mais que um curto intervalo de tempo as distorções distributivas que lhes deram origem. Isso vale para as lutas por reajuste salarial, de preços para o produtor agrícola, de proventos dos aposentados - os resultados são rapidamente engolidos pela inflação, o que impõe a sua freqüente e desgastante retomada. E a inflação galga patamares cada vez mais altos, impulsionada pelas inúmeras lutas distributivas, que a própria inflação suscita e em seguida anula em seus efeitos.

Assim sendo, não dá para estabilizar os preços mediante a eliminação do déficit público, do arrocho salarial e da não-emissão de moeda, como ensina a sabedoria econômica convencional. Estas medidas produzem queda no volume de vendas, desemprego e ruína das empresas mais fracas, o que apenas dificulta as lutas distributivas, sem impedi-las inteiramente. A estabilização só pode ser alcançada mediante adoção de regras que impeçam o repasse dos custos das lutas distributivas aos preços, mediante a negociação coletiva de preços e salários em conjuntos interdependentes. O conjunto, neste caso, é a cadeia produtiva, formada pelos setores que produzem e distribuem produtos derivados das mesmas matérias-primas. Participam da cadeia os produtores das matérias-primas, dos produtos intermediários e dos finais, os trabalhadores destas empresas e os consumidores dos produtos finais. São exemplos de cadeias produtivas a automobilística, a farmacêutica, a de confecções de tecidos, a de alimentos derivados do leite, a da carne, a de cereais etc.

A inflação resulta da negociação bilateral (apenas entre vendedores e compradores) separada de cada preço e de cada salário. Para contê-la, todos os preços e salários interligados pela cadeia produtiva serão negociados em conjunto, de modo a tornar impossível repassar custos a preços, numa ciranda sem fim. A negociação conjunta, com participação de empresários, trabalhadores e consumidores, implica travar articuladamente diversos conflitos distributivos, que serão resolvidos em termos reais, ou seja, o poder de compra de cada preço e de cada salário estará de certo modo assegurado. Para os trabalhadores, por exemplo, será um salto de qualidade, pois em vez de negociar salários nominais, sujeitos ao imediato desgaste inflacionário e a reajustamentos que vêm sempre defasados, negociarão salários e preços: o salário poderá ser expresso como uma proporção constante do valor do produto que o trabalhador ajuda a produzir.

É o que tem sido denominado de controle social da inflação. O qual deve resultar das negociações sujeitas a regras comuns, em numerosas câmaras setoriais, que hoje já existem e funcionam, embora jamais tenham sido engajadas num grande esforço pela estabilização. Para que este controle seja de fato social e não corporativo, é necessário que as negociações tanto de preços quanto de salários se baseiem em planilhas de custos comprovadamente realistas, mostrando as margens de lucro de cada preço; e que os eventuais aumentos de preços dos produtos finais estejam limitados a tetos gerais, correspondendo a níveis pré-fixados de inflação. Esta última condição é indispensável para que se corte a inércia inflacionária e se impeça que as contradições de interesse entre os elos das cadeias produtivas e entre empregados e empregadores - resolvam-se à custa do consumidor final, que na maior parte dos casos é o próprio trabalhador.

A estabilização dos valores nominais mediante contratação coletiva de tetos para preços e salários, a serem periodicamente revistos e quando necessário renegociados, exige a adoção de regras gerais para a inflação prefixada em níveis cada vez menores, para a confecção e verificação de planilhas de custos, para a determinação de incentivos fiscais para os que renunciarem a satisfação imediata de reivindicações de recuperação de perdas passadas de renda real e outras pendências. Estas regras gerais constituirão a proposta econômica central do governo Lula e serão objeto de negociação pelos representantes das centrais sindicais, das entidades nacionais do empresariado e das empresas públicas federais, estaduais e municipais, sob coordenação e arbitragem da União.

A negociação conjunta de preços e salários, nas câmaras setoriais, deverá ser combinada com o acerto de medidas para a retomada do crescimento da produção, visando os mercados interno e externo. A retomada do crescimento é vital para a redistribuição da renda, devendo ser objeto de contratação, desde o início, a priorização das camadas mais carentes para se beneficiarem antes e mais que as outras dos acréscimos da produção. Nesta questão, a proposta do governo Lula contrasta com as de todos os outros governos brasileiros, que sempre separaram no tempo estabilização, crescimento e redistribuição, porque para eles a estabilização exigia um período de recessão e só depois o crescimento poderia ser encetado, ficando a redistribuição para uma terceira etapa (a qual, diga-se de passagem, nunca se alcançou). A nossa proposta de estabilização negociada não requer recessão. Pelo contrário, a negociação conjunta de conflitos distributivos será facilitada se as renúncias inevitáveis de satisfação imediata de reivindicações puderem ser compensadas por garantias de aumentos futuros de preços ou salários, viabilizadas pela retomada do crescimento.

A proposta econômica central do programa do PT que está sendo divulgada - e certamente será mais discutida durante a campanha eleitoral - é tão heterodoxa, tão contrária ao espírito e a letra da proposta convencional, apresentada com virtual obviedade pelos "entendidos", que muitos ainda a desconhecerão e os setores mais antagônicos à nossa candidatura considerarão mera manobra demagógica, a ser posta de lado tão logo esteja empossado o novo governo. Isto exigirá de Lula e de sua equipe de governo uma tomada de posição muito nítida desde o primeiro momento. Será necessário que o novo presidente da República dirija-se ao país, convocando os setores organizados da sociedade civil - sobretudo entidades empresariais e centrais sindicais - a uma luta conjunta para acabar com a inflação, retomar o crescimento da economia e redistribuir a renda. Só que desta vez não será um apelo retórico, como foi feito tantas vezes no passado recente, mas uma proposta concreta em que cada entidade de classe terá um papel crucial a desempenhar.

O apelo de Lula deverá ser amplificado e reforçado por ampla campanha popular, na qual o caráter democrático e participativo da proposta será pacientemente explicado a toda a população, aos grandes, médios e pequenos empresários, aos trabalhadores das fábricas, comércio, transporte, comunicação etc, aos agricultores e às donas-de-casa. Será fundamental ganhar a opinião pública para a proposta, convencendo-a que a batalha conjunta contra a inflação, a estagnação e a desigualdade pode ser ganha com métodos democráticos e empenho popular desde que não se permita que setor algum fique alheio das negociação e que ninguém possa descumprir contratos sem sofrer sanções severas. Ao mesmo tempo, será necessário contatar diretamente as principais entidades de patrões e de trabalhadores, detalhando a proposta e convencendo suas direções a engajarem-se no processo.

Possivelmente, já nesta fase, promessas terão de ser feitas e garantias terão que ser oferecidas para que as entidades mais refratárias disponham-se a avalizar a proposta. Os termos de cada adesão serão tornados públicos, para que compromissos contraditórios não sejam assumidos (sobretudo pelo governo) e para que os que ainda hesitam sejam encorajados a adotar a mesma atitude, dando ao governo Lula um voto de confiança.

Deverá ser deixado claro que a porta estará sempre aberta à participação, mas que deliberações serão tomadas sobre todos os preços e salários considerados relevantes, mesmo se alguma parte se ausentar das negociações. A proposta econômica central do governo Lula não poderá estar sujeita a uma regra de unanimidade nem mesmo de consenso. O processo de negociação será desencadeado em qualquer circunstância e qualquer tentativa de boicote será simplesmente desconsiderada. Se não pairar dúvida sobre a firmeza desta posição, a possibilidade de boicote será cortada pela raiz.

A negociação nacional

Quando a proposta estiver suficientemente conhecida e com efetivo respaldo da opinião pública e quando as principais resistências a ela tiverem sido superadas, o presidente Lula convocará um "foro nacional de negociação" das regras gerais que deverão presidir o trabalho das câmaras setoriais. Teriam que tomar parte neste foro no mínimo todas entidades nacionais de trabalhadores e empresários, mas é possível também participar representantes das Casas do Congresso Nacional, as grandes entidades representativas da sociedade civil, como a CNBB, OAB, ABI e outras. Os parlamentares e lideranças da sociedade civil poderão formar no meio-de-campo para superar eventuais impasses entre interesses de classe opostos.

O foro nacional terá como tarefa inicial deliberar sobre a pauta submetida pelo governo Lula e que constituirá o arcabouço inicial de regras para encaminhar as negociações de valores nominais máximos nas câmaras setoriais. É de se supor que os primeiros contratos coletivos fechados nas câmaras estarão sujeitos a erros inevitáveis por causa da ignorância dos negociadores a respeito das condições externas em que os novos valores serão praticados.

Como a observância destes valores terá de ser rigorosa, a única maneira de evitar que erros causem prejuízos irreparáveis será dar aos primeiros contratos prazos curtos de validade, de modo que possam ser revistos e corrigidos. O mesmo deve valer para as regras, algumas das quais poderão ter conseqüências inesperadas. Daí a necessidade do foro nacional ser convocado com certa periodicidade, seja para aperfeiçoar regras, seja para superar eventuais impasses surgidos em muitas câmaras.

As câmaras setoriais

A primeira convocação das câmaras para iniciar concretamente o processo de estabilização negociada provavelmente ocorrerá durante os primeiros cem dias de governo. Ela terá de ser precedida por uma vasta mobilização social, visando constituir câmaras novas em cadeias produtivas e ampliar a participação das câmaras já existentes. Um esforço especial teria de ser feito, sobretudo pela militância da CUT e do PT e demais partidos da Frente, para iniciar ou reforçar a organização dos consumidores, de modo que possam intervir nas câmaras setoriais em defesa dos interesses da maioria. Pelo menos na primeira fase, os representantes dos consumidores deverão ser os melhores aliados dos representantes do governo federal nas negociações, já que uns e outros estarão vitalmente interessados em conter o aumento dos preços dos produtos finais.

Outro esforço de mobilização que terá de ser feito será nas empresas, onde os trabalhadores tomarão conhecimento dos contratos fechados nas câmaras setoriais e poderão exercer uma vigilância direta sobre o seu cumprimento. Os representantes sindicais em cada câmara deverão manter contato estreito com suas bases, tanto para conhecer suas necessidades e aspirações quanto para se informar de eventuais fraudes ou outras formas de sabotar os contratos setoriais, praticados pelas empresas.

Em suma, a estabilização negociada implica nova interação do Estado com a sociedade civil, em que esta alcança níveis mais elevados de coordenação com a ajuda e orientação do primeiro. Mas, a economia de mercado continuará dominada pelas empresas capitalistas, cuja tendência natural é procurar o lucro máximo sem atentar a mais nada.

Para impor limites a esta tendência, a atuação das câmaras setoriais só será efetiva se houver ampla mobilização popular, em apoio à proposta no primeiro momento e sob a forma de intervenção de consumidores e de trabalhadores no processo de estabilização, em seguida. É preciso não esquecer que a proposta econômica central de nosso programa não é abolir as lutas distributivas (o que seria semear ilusões), mas fazer com que os contendores coletivos passem a travá-las segundo novas regras, sendo a regra fundamental que qualquer reivindicação de aumento de ganho só pode ser aceita se outro ou outros componentes da cadeia produtiva aceitarem perdas correspondentes. Inclusive os consumidores finais, que fazem parte das cadeias. Os empresários são os únicos já motivados e preparados para defender seus interesses, a partir de sua posição hegemônica. Todos os demais setores terão que se mobilizar e se preparar para exercer plenamente os novos direitos de participação.

A batalha pela estabilização com crescimento e redistribuição será possivelmente o evento definidor dos alinhamentos sociais e políticos pró e contra o governo Lula. Ela oferecerá ao novo governo uma oportunidade decisiva de coligar ao redor de seu programa todos os setores democráticos da sociedade. Por isso, deverá ser travada durante os primeiros cem dias de governo, quando este emerge das urnas sem desgaste detendo um mandato popular novo em folha. Vencida esta batalha, não se poderia dizer que a realização do programa já esteja assegurada mas pelo menos a probabilidade de que o seja estará maximizada.

Paul Singer é economista e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP.