Entrevista com Iolanda Huzak e Jô Azevedo
Entrevista com Iolanda Huzak e Jô Azevedo
Crianças trabalhando no país inteiro. São quase 2 milhões, entre dez e treze anos, praticamente 14,2% de todos os jovens brasileiros nessa faixa de idade.
Cortando e cuidando de cana, no Ceará, em Pernambuco, no Rio de Janeiro. Queimando as mãos nos fornos de carvão vegetal no Mato Grosso do Sul. Britando pedras no Ceará e na Bahia. Catando lixo nas grandes cidades. Vendendo jornais nas ruas, nas esquinas. Sendo quase escravos nas casas de família, como domésticos.
Ajudando os pais a colher resina nas florestas de pinho de São Paulo. Colhendo frutas e legumes de Norte a Sul deste país. Amarrando feixes de fumo no Sul. Nas fábricas de sapatos de São Paulo e do Rio Grande do Sul, entregam sua juventude aos efeitos nocivos da cola.
Artesãos da porcelana e de olaria em São Paulo, são pequenos artistas com os pulmões comprometidos. No processamento do sisal, máquinas que cortam folhas e braços ameaçam diariamente esses trabalhadores de fibra.
Este é o retrato das crianças no Brasil: 884 mil trabalham no Nordeste. A região Sudeste é a segunda colocada na exploração de mão-de-obra infantil: 222 mil em Minas Gerais, 201 mil em São Paulo (dados oficias do IBGE, "Mapeamento do Desemprego no Brasil").
As cifras são chocantes, mas nem de longe refletem o drama das crianças trabalhadoras e de suas famílias. Durante quatro meses e meio duas jornalistas - a repórter Jô Azevedo e a fotógrafa Iolanda Huzak - percorreram algumas regiões do país, reportando os acontecimentos e trazendo a público, no livro Crianças de Fibra, editado pela Paz e Terra, esta realidade que raramente freqüenta a mídia.
O projeto de escrever uma série de reportagens sobre as crianças trabalhadoras foi apoiado e patrocinado pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Como surgiu a idéia desse trabalho?
Iolanda Huzak: Nós duas colaborávamos com o jornal Criança, da Fundação Abrinq, e fizemos uma reportagem sobre criança e trabalho em São Paulo. Conhecemos um garoto de dez anos que tinha perdido a mão numa máquina de moer carne, numa pizzaria. Aquele caso nos deixou chocadas e resolvemos ampliar a matéria. Então vimos que não havia situações registradas de forma sistemática sobre o trabalho infantil. Mas esse trabalho era supercomum. Topamos com a OIT, tentando implantar o Ipec (Programa de Eliminação do Trabalho Infantil), financiado pelo governo alemão, aqui no Brasil e em outros cinco países. Porque o Estatuto da Criança e do Adolescente, no Brasil, proíbe o trabalho de crianças com menos de quatorze anos. Ou de jovens a partir dessa idade, em ambientes que comprometam seu desenvolvimento. As duas entidades aproximaram-se e a Fundação Abrinq concordou em desenvolver uma série de ações para sensibilizar a opinião pública.
Jô Azevedo: Daí, nós nos propusemos a fazer uma série de reportagens que pensávamos veicular na imprensa. Quando fomos a campo, notamos que, se começássemos a divulgar o trabalho, fecharíamos uma série de portas, já que o trabalho da criança é proibido.
Vocês viajaram pelo país, mas viram que a exploração do trabalho infantil não é só prerrogativa das regiões miseráveis. Está disseminado por toda parte. Ou seja, muito na linha de "o Haiti é aqui"; seja no Nordeste ou no Sul maravilha, não é?
IH: É, normalmente a gente acha que isso só acontece nos bolsões de miséria. Mas eu tive notícia de que existem crianças de doze anos chegando sozinhas do Nordeste e de outros estados, para trabalhar com cana na região de Ribeirão Preto, considerada a Califórnia brasileira... Há muito disso.
Parece um processo de integração pela miséria, pois vocês retrataram trabalho de crianças em locais onde se exportam produtos, como sisal, cana, frutas, resina etc. Essa teoria da integração pela miséria está clara no resultado do trabalho de vocês. Faz parte da lógica do real sistema capitalista internacional: a miséria precisa existir para que haja o desenvolvimento.
JA: O nosso trabalho é de registro do drama dessas crianças, nós quisemos dar voz a elas, as principais envolvidas. Uma criança que trabalha desde muito cedo está perdendo anos fundamentais para o desenvolvimento de sua personalidade, de sua potencialidade. E elas chegam a uma conclusão terrível, como nos disse uma menina que vive da cata do lixo em Fortaleza, "ser criança é ruim". Imagine a que ponto os valores foram subvertidos.
IH: Conforme fomos fazendo o nosso trabalho, consultando mais de quarenta entidades, entre sindicatos, associações, órgãos públicos ligados à criança ou ao trabalho, centrais sindicais, foram surgindo desdobramentos. Mas tivemos que selecionar. A duração do nosso projeto foi de nove meses, entre viagens, redação, relatórios etc. Tínhamos que estar atentas para situações de crianças trabalhando. Para esgotar o tema, teríamos que ter no mínimo uns dois anos.
JA: A questão da prostituição infantil é um desses temas que não abordamos, apesar de considerarmos também uma forma de exploração do trabalho. Mas trata-se de um universo que precisa de tempo. Há uma teia de relações que envolve a menina e o menino prostituídos. É preciso muito tempo para investigar se quisermos ser sérios e não ficarmos apenas na denúncia. Na constatação do óbvio.
Mas a questão da prostituição tem sido muito denunciada. Há uma lógica que faz a criança ser tão desvalorizada que os adultos, a família e a sociedade, quando os vê num local de trabalho, acham que é até melhor para eles: "ainda bem que estão aí, não estão na rua roubando ou se prostituindo".
IH: As famílias e as crianças passam a ser vítimas.
JA: Não dá para ignorar essa realidade: por que o filho do pobre tem que trabalhar com dez anos e o de outra classe merece estudar? Estudo não é uma dádiva, é um direito de todo cidadão. Que espaços estão sendo oferecidos para essa criança? Muito poucos. A escola é difícil, é precária. Na Zona da Mata, há professoras lenhando para fazer a merenda. Isso quando há merenda. Coexistem numa classe as quatro séries do primeiro grau. Se o aluno conseguiu completar esse ciclo, tem que andar quilômetros para chegar até a cidade. Além disso, temos a questão econômica. Um filho na escola é um braço a menos para ajudar. Outro exemplo: nos chazais do Vale do Ribeira, as famílias normalmente moram nas plantações. O pai trabalha na usina de processamento de chá e recebe pouco mais que um salário mínimo. O que ele vai fazer? Vai engrossar seu orçamento com o produto do trabalho da mulher e dos filhos colhendo chá. Que alternativas de geração de renda estão sendo dadas para essa população?
IH: Algumas atividades já têm implícito o trabalho familiar. É o caso da extração da resina. Para cuidar de uma floresta com 25 mil pinheiros, não se utiliza apenas a mão-de-obra do homem. A família tem que trabalhar para dar conta do necessário para compor seu salário. Os ganhos são por produção. É o mesmo caso dos, trabalhadores do carvão. Entrevistamos várias famílias e elas disseram que os empreiteiros preferem contratar grupos familiares. Existem os avulsos, os homens solteiros que vivem em barracões, do lado das vilas de lona das famílias, nos eucaliptais. Muitas delas disseram que o empreiteiro prefere o homem que leva mulher e crianças para mantê-lo no local por mais tempo.
JA: Esse homem não pode se deslocar tão rapidamente como se fosse solteiro, não é? Um avulso que percebe que a situação de trabalho é desfavorável se desliga mais facilmente da empresa. Mas com família não é tão fácil.
As relações de trabalho dos pais pesam muito nas condições da criança que trabalha?
JA: Fazer o mapeamento dessas relações foi interessante, porque pensávamos o seguinte: como íamos situar a criança sem mostrar a estrutura em que ela está inserida? Ela depende do pai, da mãe. Como essas pessoas saem do Vale do Jequitinhonha e vão parar no Mato Grosso do Sul, por exemplo? Por que carregam seus filhos junto? Porque os paranaenses saem do seu estado e vão morar nas plantações de pinho? É porque não têm alternativa. Saem em busca de trabalho, qualquer que seja. Veja o exemplo da pedra: numa região de seca, onde há monocultura de sisal, o que resta para a população que não migrou? Só há jazidas de pedra, que são necessárias na cidade para construção e pavimentação. Eles vão trabalhar no que existe, mesmo quebrando pedras. E seus filhos vão junto e ficam quebrando pedra durante oito, dez horas por dia, debaixo de sol, sem alimentação.
As fotos valem mais do que mil palavras. Como elas foram feitas?
IH: Nossa proposta era flagrar a criança trabalhando. Nenhuma delas fez pose. Entrar em alguns lugares foi complicado, tivemos que passar muitas dificuldades. Elas representam a situação da formação de mão-de-obra no Brasil. As crianças da foto da coleta de laranja, por exemplo, estão agachadas colhendo as frutas que foram trazidas por um empreiteiro de caminhão. Os pneus estavam estourados, o empreiteiro não tinha acertado o preço da tarefa com o dono do pomar, havia uma briga com outro empreiteiro pelos pés de laranja a colher. Então alguns trabalhadores começaram a discutir se colheriam ou não. Mas muitas famílias como essa das crianças da foto comeram rapidamente o conteúdo dos seus caldeirões e imediatamente começaram a catar laranja. Ligaram o automático. Essas crianças, no final estão reproduzindo formas de relação de trabalho que são absurdas.
JA: A esse pomar foi conosco o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade de Tabatinga (SP), uma pessoa jovem e muito dedicada. Sabia que haviam crianças no trabalho. Mas quando chegou ao local, ficou surpreso com a quantidade delas. Na sua batalha por melhores salários, ele não havia educado o olho para isso e ficou estarrecido. Uma boa parte das pessoas que consultamos não estava atenta para esse trabalho invisível, que é computado no salário familiar. O trabalho da criança acaba por parecer muito natural.
IH: Um sindicalista nos disse que quando ele ia para a roça fazer campanha, nunca tinha prestado atenção nas crianças. Criança não é computada como trabalhador. E praticamente está competindo com o adulto, diminuindo seu salário.
E essas coisas vão passando de pai para filho, há uma perpetuação das relações de trabalho...
JA: Fomos a uma cidade chamada Araçoiaba, na Zona da Mata pernambucana, e pudemos conversar com cortadores de cana velhos e jovens. Encontramos dois irmãos, um de quatorze e outro de 26 anos. O mais velho se queixava que nunca pôde freqüentar a escola, porque tinha que trabalhar desde os dez anos. O mais novo dizia que os meninos brigavam por cotas de corte de cana na época da safra. Por falta de opção de trabalho mesmo. E os empreiteiros aproveitavam para diminuir o preço pago ao trabalhador.
IH: O trabalhador que começa nessas condições, principalmente na lavoura, com trinta, 35 anos, já é uma mão-de-obra descartável por causa das suas condições físicas. Aliás, levam os filhos justamente para compensar essa falha. Como a oferta de mão-de-obra jovem é muito grande, há uma competição "desleal".
JA: Em Petrolina observamos essa salários e condições de vida, para evitar que o filho vá trabalhar.
IH: O sindicalista tem que se articular com outras entidades, grupos de bairro, conselhos de defesa da criança, secretarias... Temos um exemplo: Sertãozinho, foi um dos primeiros lugares onde se levantou a situação da criança cortando cana. Foi um reboliço grande, porque os pais revoltaram-se contra a proibição do trabalho da criança e cobraram isso do sindicato que denunciou. E não havia alternativas.
Com raras exceções, o sindicalismo brasileiro não cobra efetivamente do Estado seu papel e nem chegam a criticar a iniciativa privada. Temem parecer estatizantes, o que pela ideologia hoje em voga estaria fora de moda. Quem tem fugido a esse esquema, a meu ver, é o Movimento dos Sem-Terra, que pelas próprias características de sua luta, vai para o confronto com o capital.
JA: O exemplo concreto do Vale do Ribeira em 1985 deve ser destacado. Na época, as fazendas de chá foram alvo de uma grande blitz da Secretaria do Trabalho, fundamentada nas denúncias dos sindicatos locais. Era uma situação gritante e a fiscalização foi intensa. Mas o sindicato não estava articulado com o restante da sociedade, que é muito fechada. Mudou o governo e os donos de chazais mecanizaram intensamente a colheita. Alguns deles até abandonaram seus chazais. O sindicato foi culpado por essa situação, perdeu centenas de sócios e ficou desmoralizado. O sindicalista tem que pensar de forma mais global. Em políticas públicas que proporcionem um salário indireto. Em Franca, essa discussão sobre o trabalho da criança começou no sindicato, articulada com órgãos públicos e entidades. Há formulações que são sugestões de políticas públicas: creche no local de trabalho, cursos profissionalizantes, adequação da escola... É papel do sindicato? Eu acredito que sim, por que não? Os trabalhadores têm que encaminhar, através de seus representantes, sugestões para essas políticas públicas, e cobrá-las. Muitos funcionários dos órgãos públicos querem realmente exercer suas função. Mas, como fiscalizar vários municípios com poucos fiscais.
Vocês tiveram muita dificuldade para triar as fontes?
IH: Consultamos muitas entidades e foi um "deus-nos-acuda". A pauta por telefone é uma coisa. Você chega ao lugar e é outra. Nosso trabalho foi bastante difícil porque não tinha retaguarda alguma de redação. Tivemos que confiar muito em nós mesmas, para nossa segurança. Nossa intuição funcionou à toda, para não perder o objetivo inicial que era produzir um trabalho para sensibilização sobre o assunto. Administrar as condições de cada local, perceber o momento certo de ficar ou de ir embora. Ou então, enquanto uma conversava, a outra fotografava e vice-versa. Foi um trabalho difícil.
JA: Fora a sensação de impotência diante desses quadros terríveis. Criaturas que poderiam estar se divertindo, aprendendo coisas boas, mas estão sobrevivendo nessas condições precárias e sem perspectivas. É de rasgar o coração.
E agora, o trabalho vai ter continuidade?
JA: Esse trabalho teve um tempo de duração, nossa proposta já terminou. Com a edição do livro esperamos que haja interesse em discutir seu conteúdo, e que ele sirva de base para pensar em mudanças.
IH: Um desdobramento concreto do nosso trabalho é o contato e a articulação de um grupo para estudar as condições de trabalho dos jovens em indústrias de São Paulo. Surgiu do contato com o Grupo de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, durante a fase do projeto. Fomos em busca de dados sobre o assunto para a pesquisa e, no final, os médicos e técnicos do grupo acharam que era interessante conhecer essa realidade mais de perto. Eles estão fiscalizando algumas empresas e pensando numa proposta de trabalho com esses jovens. Isso mostra que dentro dos órgãos oficiais, se houver interesse, há condições de implantação de novos programas dirigidos à população mais jovem. E não é só fiscalizar, mas também, em seguida, acompanhar as mudanças, ver como os jovens se inserem nesse trabalho, se eles percebem ou não as condições desfavoráveis de trabalho. É um grupo multidisciplinar, envolvendo profissionais de saúde, sindicalistas, representantes de órgãos públicos, como Conselho Tutelar, e nós funcionamos como apoio de informação, trabalhando voluntariamente. Gostaríamos de continuar com nossas reportagens, temos até proposta de pauta, mas por enquanto o projeto terminou e para continuar, seriam necessários novos investimentos.
Alípio Freire é editor de T&D e Elizabeth Lorenzotti é jornalista.