Cultura

O filme Lamarca busca criar um retrato da já lendária luta armadacontra a ditadura e fugir da ingenuidade. É nesta rota que Sérgio Rezende acaba por encontrar o herói que estava precisando

O cinema brasileiro quase morreu durante a devassa promovida pelo governo Collor, mas do ano passado para cá alguns filmes vêm sendo concluídos e lançados, mostrando que a vontade de filmar dos cada vez menos numerosos cineastas deste país sobrevive a todos os golpes anticinema e anticultura em geral - que o Brasil já sofreu. Em 93, só me lembro do lançamento de Sampaku, um policial bem-sucedido, de José Joffily Filho (A Grande Arte, outro policial bem mais pretensioso com roteiro de Rubem Fonseca e direção de Valter Salles Jr., é de 1991). Espero não estar esquecendo de alguém, porque tenho o costume, a disciplina e também o gosto de assistir a todos os filmes brasileiros de que tenho notícia. Assim, neste ano que ainda está pela metade, fui agradavelmente surpreendida por Capitalismo Selvagem, de André Klotzel. Uma comédia sobre o capitalismo predatório e a causa indígena no Brasil. O filme é inteligente, engraçado e corajoso ao nos fazer rir de tudo - inclusive da ingenuidade de certos defensores dos índios e do paternalismo de que muitas vezes este tipo de militância reveste-se.

Se Klotzel, um cineasta paulista da geração pós-Cinema Novo, lançou sua segunda boa comédia, dois diretores muito mais consagrados fizeram, a meu ver, filmes sofríveis.

A Terceira Margem do Rio, de Nelson Pereira dos Santos, pode ser incluído no pacote dos filmes ruins deste autor. Nelson Pereira é um diretor bastante desigual. Competência, talento, sensibilidade, não lhe faltam. Mas se ele é capaz de criar obras-primas como Tenda dos Milagres, O Amuleto de Ogum ou Memórias do Cárcere, de vez em quando "perde a mão" (ou se acomoda em excessos de facilidade) e realiza filmes fracos, populistas, como Na Estrada da Vida e Jubiabá. A Terceira Margem quase ficou bom. Nelson conseguiu a proeza de colocar grandes trechos de texto roseano na boca dos personagens, representados por atores quase desconhecidos, sem que as falas nos pareçam artificiais. Conseguiu, na primeira parte do filme, criar um ambiente psicológico bem afinado com o clima dos contos de Guimarães Rosa. Conseguiu até mesmo juntar num mesmo roteiro quatro histórias diferentes, forçando um pouco a barra, mas com um resultado convincente. Mas estragou o filme, a meu ver, ao mudar totalmente o estilo, a partir da metade, criando na periferia de Brasília o que pretende ser uma grande alegoria da sociedade brasileira. As alegorias, apreciadíssimas por dramaturgos e cineastas de esquerda no Brasil, a meu ver só funcionam em escolas de samba. Seu poder de "denúncia" fica inteiramente comprometido pela sua ineficácia dramática: a alegoria só se comunica com quem já está de acordo com o que ele pretende dizer. Mesmo assim, é um pobre recurso intelectual. Esteticamente é bobo, dramaticamente é nulo.

O outro diretor consagrado que me decepcionou foi Carlos Reichenbach com seu Alma Corsária, vencedor do Festival de Gramado do ano passado. Reichenbach é um cineasta maldito, marginal ao Cinema Novo, recém-descoberto e cultuado pela intelectualidade paulistana. De fato, seu cinema, que não faz questão de aderir ao já antigo "padrão global de qualidade", é capaz de imagens poderosas. Além do que, Carlos Reichenbach conseguiu criar uma estética paulistana, o que não é nada fácil num país cujo imaginário cinematográfico e televisivo gira em torno do Rio de Janeiro e do Nordeste. Mas Alma Corsária, que poderia ser uma bela biografia sentimental de tantos intelectuais paulistas da geração do cineasta (entre os 40 e os 50) perde muito quando o autor ideologiza a grossura, o grotesco, fazendo deles ingredientes principais do filme. A festa de lançamento do livro do poeta, cujas memórias vão montando em flashback a narrativa, é tão gratuitamente feia, carrega tão propositalmente no mau-gosto, que só podemos pensar que o autor empreende uma luta ideológica contra o lirismo que ele próprio tenta criar ao construir a infância e a juventude do poeta e seu melhor amigo.

Este rápido relatório dos lançamentos do cinema brasileiro visa ressaltar uma característica comum a todos eles: os filmes brasileiros estão sempre tentando explicar o Brasil. É incrivelmente evidente a dívida de todo cineasta brasileiro para com o país, o sentimento de responsabilidade, a necessidade onipresente de se fazer do cinema a "grande arte" brasileira, o retrato simbólico de um país imenso e desigual: geografia imaginária da imensidão e denúncia sociológica da desigualdade. Posso fazer um exercício de lembrar ao acaso, por livre associação, de meia dúzia de filmes brasileiros dos últimos vinte anos - isto só para não mencionar o Cinema

Novo, o pai de todos, onde tudo começou. Bye, Bye Brasil, de Cacá Diegues, um retrato mambembe circense, do Nordeste e da Amazônia pós-desenvolvimento. Tudo Bem, de Arnaldo Jabor, uma denúncia cômica da relação entre a classe média e a pobreza urbana. Nunca Fomos Tão Felizes, de Murilo Salles, a história da relação de um pai militante da luta armada e seu filho adolescente. O Homem da Capa Preta, do próprio Sérgio Rezende, história de Tenório Cavalcanti e da política no Brasil até o golpe de 64. Pixote e Lúcio Flávio, de Hector Babenco, Quarup, de Rui Guerra. Os exercícios literários de Bressane filmando Machado de Assis, Padre Vieira, Lamartine Babo - retratos do Brasil. A sensação que fica é que o Brasil é um país inacabado, sem espelho e sem história - e que os cineastas tomaram para si o encargo de pintar um painel, criar uma mitologia brasileira. Árdua tarefa.

Sérgio Rezende foi ainda mais pretensioso em seu Lamarca: quis criar não só um retrato da já lendária luta armada contra a ditadura militar, como fugir da ingenuidade (coisa que o cinema americano, por exemplo, encara sem o menor pudor). Nosso cinema reverencia os marginais, nosso mito é o bom bandido ou o malandro macunaímico - temos medo da responsabilidade que implica acreditarmos num herói. Claro, tivemos este ano a morte de Ayrton Senna, que fez dele herói nacional por uma semana. Mas Senna não foi herói, foi sim um vencedor, e o Brasil andava precisando de vencedores. Tornou-se herói ao morrer porque um vencedor vivo é muito distante do povo, muito mais inatingível, enquanto o vencedor morto transforma-se em corpo dócil, de fácil apropriação. O morto é de todos, morreu porque venceu demais - então é "nosso herói".
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Lamarca foi um herói muito diferente de Senna. Primeiro, porque tornou-se herói ao abrir mão de sua condição de vencedor - "o melhor atirador do Exército brasileiro", o capitão acima de qualquer suspeita - para virar marginal, perseguido, clandestino, militante de uma causa que a partir de um certo ponto, ele mesmo, já sabia perdida. Segundo, porque não conseguiu ser popular - a luta armada no Brasil, aliás, não foi nada popular, o que explica em parte o fracasso de seu projeto. Chegamos a ter pena, vendo o filme, dos poucos gatos-pingados que vão aderindo, da meia dúzia de homens do campo que resolvem se juntar à causa da revolução, das pobres patrulhas de dez ou quinze revolucionários corajosos, cercados pelo Exército por todos os lados. Lembramos de Antônio Conselheiro, não de Lenin. O próprio Lamarca, com toda a sua experiência militar, nos faz pensar mais num fanático religioso procurando fiéis pelo sertão da Bahia do que num soldado em combate.

Mas quero falar um pouco de filme, e não da personalidade de Carlos Lamarca. Sérgio Rezende tem algumas qualidades consistentes como cineasta. Primeiro, é um diretor competente de mão firme, sem complexo de gênio. É ótimo quando parece um gênio do cinema, Glauber, Orson Wells, Fellini. Mas é péssimo quando parece um "metido" a gênio. O Brasil está cheio. Glauber não deixou uma herança, deixou um complexo paterno. Muitos cineastas da geração seguinte à dele sofrem do "complexo de Glauber Rocha". Rezende escapou desta sina, e filma sem os tiques glauberianos. Em segundo lugar, é um cineasta que respeita roteiros e, principalmente, trabalha seus roteiros. Outro defeito característico do cinema brasileiro é uma certa preguiça nos roteiros. Por um lado, as cenas cuja função dramática é secundária, feitas para dar seqüência aos fatos ou ambientar a ação, são "despachadas" sem nenhuma sutileza; por outro, falta aos roteiristas justamente a noção de tensão dramática roteiros mal costurados, colados com cuspe, quando não simplesmente sem pé nem cabeça. Por último, há uma enorme banalidade nos diálogos. Raros são os filmes em que os personagens pensam e se revelam, nos diálogos seres humanos singulares. Cada um é clichê de seu tipo. No filme de Reichenbach, o diálogo entre o estudante politizado e o poeta que não quer se engajar, é puro clichê. Certo, os estudantes politizados falavam muitos clichês nos anos 60 - mas não se poderia inventar um detalhe, uma digressão, um gracejo que nos fizesse pensar naquilo que faz de cada pessoa um ser particular, um personagem interessante de uma história qualquer?

Sérgio Rezende filma bons roteiros. Lamarca consegue ser tenso apesar de óbvio - todos nós sabemos o desfecho de antemão. O filme é lento, principalmente nas seqüências passadas no sertão, na clandestinidade - mas ali a lentidão tem uma qualidade poética, de contemplação e meditação, em contraste com as cenas passadas em flashback que vão contando os trechos principais da história de Lamarca (Paulo Betti). A decisão de sair do Exército, o contrabando de armas para fora de Quitaúna, as prisões de companheiros, as cenas de tortura - e a perseguição pelo interior da Bahia. O diretor cuida dos detalhes, e são os detalhes que tornam um filme marcante. Um velho camponês, pai de Zequinha (companheiro de Lamarca), é torturado para dizer onde seu filho e o capitão se escondem. Fica dia e noite pendurado de cabeça para baixo dentro de um celeiro escuro, sem saber por quê. De manhã um outro velho camponês pede à polícia para entrar no celeiro e pegar uns arreios. Ele vê o amigo pendurado e pega sua cabeça nos braços tentando melhorar a posição do torturado. Depois, sussurra ao amigo que não se preocupe, sua filha estará bem protegida. A polícia chama, e ele se vai. A cena é simples, poderia ser dispensável para o resto da história. Mas faz chorar pelo contraste entre o pequeno gesto bondoso do velho e a brutalidade da polícia.

A morte de Iara (Carla Camurati) é pungente. Ela está cercada e se esconde, em pânico. Ao ouvir a polícia chegando decide se matar. Aponta o revólver para a cabeça depois muda de idéia e atira no peito. A dúvida, a rápida hesitação da moça detonam um resto de vaidade infantil nessa personagem trágica que na hora da morte lembra-se de não desfigurar o rosto jovem e atira no coração. Outros militantes têm dúvidas, têm medo. O "professor", outro suicida, chega a ficar perigoso para o grupo porque se embriaga para suportar o pavor.

Só Lamarca não tem dúvidas, não demonstra medo. É o que faz dele o líder insubstituível e, depois de morto, o herói. Lendo o livro Iara, de Judith Patarra, também ficamos com esta impressão - desde que fez sua escolha política, Lamarca nunca mais titubeou. Mas por quê? Que compromisso é este que um homem assume, em que ele se impede de duvidar? A dúvida, afinal, é a condição do pensamento - e o pensamento, condição indispensável para a ação. Assistindo Lamarca não se pode evitar a pergunta sobre o que ele planejava conseguir, principalmente quando as condições do isolamento dos guerrilheiros e a falta de repercussão da luta ficaram mais evidentes. Já não se entende se Lamarca acreditava em suas chances ou se pretendia só entrar para a história como herói. Que ele não pusesse em dúvida a causa da revolução, vá lá. Mas ele também não duvidava de sua estratégia. Não admitia recuos. Não duvidava nem por um minuto de si mesmo - nisso, foi até o fim um militar.

Os heróis trágicos são os reis da dúvida. Édipo, Hamlet, Othelo. As grandes tragédias são feitas de grandes perguntas. Lamarca parecia não ter nada a perguntar. Como personagem de ficção, apesar da beleza de sua coragem, fica plano demais, previsível demais. Como personagem real de nossa história, eu diria que Lamarca foi mais mártir do que herói.

Mas, ainda assim, e ainda que a coragem física tenha jogado, no roteiro de Lamarca, um papel mais importante do que a densidade psicológica ou a escolha moral da personagem, Sérgio Rezende conseguiu filmar em tom maior, com a segurança de um cineasta que encontrou o herói que estava precisan do. E ainda não che gou o tempo em que o cinema possa prescindir de heróis.

Maria Rita Kehl é membro do Conselho de Redação de T&D.