Internacional

Está se produzindo um processo de re-formação de classes dominantes em nível regional, que ainda deve ser estudado e avaliado nas dimensões econômicas e políticas.

"Hemos aprendido que no podemos defender conquistas, hasta ahora magras,
encerrândonos en nuestras,fronteras."

Cuahutémoc Cárdenas, La Habana, julho de 1993.

Em relação às expectativas de uma década atrás, a experiência das democratizações latino-americanas tem se revelado incerta. Parece generalizado em todo o continente os ajustes econômicos e seus efeitos desagregadores da capacidade reguladora dos Estados e um estilo de governo personalizado e automizado em relação à controles institucionais, políticos e sociais. Com todas as mazelas que conhecemos, a potencialidade democrática do cenário brasileiro acaba sendo uma exceção.

Foi nesse quadro da política do Cone Sul que se processou o renascimento da estratégia da integração regional, formalizada em março de 1991, no Tratado de Assunção, entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, um instrumento internacional destinado a concretizar, em 1995, o Mercado Comum do Sul (Mercosul).

Destacamos alguns aspectos das dimensões políticas do processo.

No caso do Mercosul, parece necessário um esforço por parte dos partidos políticos e das organizações sociais para promover uma ampliação do espaço democrático, conseguindo direitos de intervenção nas orientações gerais do processo, assim como na implementação de alternativas de reconversão e compensação. Isto implica um novo espaço de articulação política em nível regional, uma "nova fronteira" para as forças democráticas e populares. Amplia-se a dimensão do espaço político, aparecem novas problemáticas e, ao mesmo tempo, novos parceiros, em um horizonte absolutamente inédito para a cultura política dos nossos países. Será imprescindível, agora, uma rediscussão da nossa inserção internacional e regional, e uma intervenção alternativa, "propositiva", nos processos de integração econômica em curso.

Nesse sentido, pensamos que a ênfase na globalização, na definição de um projeto de "nova vinculação com o mundo", que, segundo muitos analistas, caracterizaria o momento atual da economia latino-americana, tem como problema uma leitura excessivamente literal do discurso oficial. A experiência mexicana não nos parece válida para América do Sul, especialmente para o Brasil, mesmo porque, sem o acordo do Nafta, o México já tinha mais de 70% do seu comércio exterior concentrado nos Estado Unidos, enquanto o comércio exterior brasileiro é amplamente diversificado. Dentro e fora do Mercosul está se processando uma intensa reestruturação do capitalismo latino-americano, com a conformação de novos tipos de associação entre as classes empresariais regionais, tendo ocasionalmente parceiros extra-regionais. Nas privatizações dos serviços públicos argentinos, por exemplo, o capital chileno teve um papel destacado. No caso do Mercosul, em janeiro de 1994, já eram mais de trezentas as empresas brasileiras instalando "bases de operações" na Argentina (Isto É, 26/01/94).

Está se produzindo um processo de re-formação de classes dominantes em nível regional, que ainda deve ser estudado e avaliado nas dimensões econômicas e políticas.

O Tratado de Assunção

O Tratado de Assunção foi imposto a um processo de integração regional já em andamento, baseado em acordos bilaterais, e com previsão de se desenvolver segundo uma metodologia de negociações setoristas, a partir de critérios de gradualismo e complementaridade. No texto do Tratado não existe qualquer referência a esses acordos anteriores (apenas se menciona o Tratado de Montevidéu, de 1980, que constituiu a Aladi).

A crítica mais completa às deficiências técnicas e operacionais do Tratado foi manifestada por especialistas uruguaios. O Uruguai viu-se forçado a incorporar-se a um esquema de integração regional para não ficar fora dos acordos entre seus vizinhos. Porém, não conseguiu incluir no Tratado o princípio de reciprocidade de resultados (avaliação dos benefícios obtidos, assegurando sua distribuição eqüitativa entre os países membros), nem obter, junto com o Paraguai, um tratamento diferenciado como país de menor desenvolvimento relativo (normatividade usual nos processos de integração, como a Comunidade Européia e o Pacto Andino).1O problema é mais grave para o Uruguai pela supervivência de instrumentos bilaterais entre seus grandes vizinhos, que estabelecem uma "dupla legalidade" em todo o processo. Como exemplo: o acordo do setor siderúrgico, objetado parcialmente pelo Uruguai, foi assinado por Brasil e Argentina e inscrito na Aladi em 26 de outubro de 1992 no marco do tratado bilateral entre esses países.

De fato, o Tratado de Assunção foi amplamente debatido pelo Parlamento e pela opinião pública do Uruguai, com a Frente Ampla assumindo uma postura de apoio crítico, mas com alguns de seus deputados, como Helios Sarthou, votando contra.

O caso dos países menores permite uma primeira constatação: o projeto do Mercosul fundamenta-se em uma redefinição das relações regionais, em que a tradicional rivalidade entre Argentina e Brasil resolveu-se em favor deste último. Nesse contexto, a Argentina aceita uma posição de parceiro subordinado, que tentará contrarrestar com uma aproximação preferencial ("canal" - sic -, segundo o chanceler Guido di Tella) com Estados Unidos. Mas este acordo básico entre os dois grandes deixa em uma posição de retaguarda os dois menores.

Porém, queremos apontar a ausência de qualquer tratamento preferencial em relação aos países pequenos, na forma do princípio de reciprocidade de resultados ou de disposições compensatórias (fora de um prazo extra de um ano para entrarem vigência o funcionamento do Mercado Comum), responde também a uma lógica interna, que permeia todo o Tratado. Com efeito, exclui todo e qualquer tratamento compensatório a setores econômicos ou regiões que venham a sofrer prejuízos em relação à implantação do processo de integração. Reconhecer um tratamento particular ao Uruguai ou ao Paraguai significaria criar um referencial jurídico a partir do qual, em termos internos, seria possível reclamar a vigência de mecanismos de proteção ou compensatórios em relação à agricultura do Rio Grande do Sul ou da província argentina de Misiones, por exemplo.

O caso da agricultura é especialmente notável, já que suas dificuldades particulares para acompanhar processos de integração são mais que contem pladas e reconhecidas em toda a experiência internacional. É muito conhecido o caso da Política Agrícola Comum da Comunidade Européia. Mas recordemos que no acordo de livre comércio entre Canadá e Estados Unidos, o programa de liberação se desenvolverá durante uma década, mas o Canadá poderá estabelecer os direitos tarifários para a importação de frutas e legumes durante vinte anos. No Nafta, o México reserva-se à proteção de produtos básicos da sua economia agrícola. Entre Canadá e Estados Unidos, a liberação do comércio de produtos agrícolas fica sujeita ao andamento das políticas de abastecimento alimentar desses países.

O Tratado do Mercosul, em troca, não menciona a agricultura, a não ser como um dos setores a serem "harmonizados" no marco da nunca definida coordenação macroeconômica, sujeitando-a à dinâmica da liberdade de mercado.

O caso da agricultura serve como exemplo para uma característica que define o conjunto do Tratado: a exclusão de toda consideração sobre as condições políticas e sociais da sua implantação, e de qualquer previsão de conseqüências negativas para setores afetados.

Outro silêncio sintomático do Tratado, preocupante para quem tem memória, refere-se à total ausência de cláusulas de garantias democráticas nesse instrumento que estabelece um novo modelo de relacionamento regional. O Mercosul será implantado e funcionará com independência em qualquer circunstância que vier a alterar o funcionamento das instituições democráticas dos seus integrantes. Nem intervenções militares, nem "fujimorizações", nem gravíssimas violações dos direitos humanos, políticos ou sindicais terão qualquer reflexo no mecanismo de integração.

Outra significativa ausência é a questão relativa ao trabalho. O "despotismo de mercado", implícito no Tratado, é de tal dimensão que não inclui nenhuma consideração sobre o tema. A estrutura institucional básica definida para a implementação do processo de integração sequer toca na problemática do trabalho em qualquer de seus aspectos. Os dez subgrupos temáticos definidos em Assunção ignoram o trabalho, e foi necessária a criação extemporânea de mais um subgrupo para sanar este esquecimento. Assim, o subgrupo "Relações Laborais, Emprego e Seguridade Social" teve sua primeira reunião em março de 1992, depois de um ano do início do processo.2Os problemas suscitados nos mercados de trabalho nacionais pelo princípio de "livre mobilidade de fatores produtivos" não foram sequer previstos. Isto é preocupante, quando sabe-se que "o ajuste às novas condições de competitividade", na maioria das empresas da região, não significa modernização organizacional ou muito menos investimento tecnológico, mas sim fazer com que os trabalhadores paguem a conta.

"Segundo uma pesquisa recente desenvolvida pela OPC-Consultoria em 150 empresas do país, 80% dava prioridade às técnicas de qualidade em lugar da participação das pessoas, e 50% ainda optava pela redução de pessoal como primeira estratégia para a redução de custos". A fonte é a revista Exame, de 11/11/92.

Depois de apontarmos algumas omissões do Tratado, é bom considerar algumas questões que ele efetivamente trata. Se os silêncios evidenciam a filiação neoconservadora de sua inspiração, a mecânica prevista para o desenvolvimento do processo acabou constituindo uma armadilha.

O artigo 5° estabelece os principais instrumentos para a constituição do Mercado Comum. Instituiu-se um Programa de Liberação Comercial, com reduções tarifárias progressivas, lineares e automáticas e eliminação de restrições não-tarifárias, "para chegar a 31 de dezembro de 1994 com tarifa zero, sem barreiras não-tarifárias sobre a totalidade do universo tarifário".

Outros instrumentos são a coordenação de políticas macroeconômicas, a determinação de uma tarifa externa comum e a adoção de acordos setoriais. Para este fim são constituídos os dez subgrupos de trabalho originais, aos quais se agregou um ano depois o subgrupo 11.

O Anexo 1 do Tratado já estabelece o cronograma de liberalização comercial automático e periódico até 31 de dezembro de 1994, estendido até 31 de dezembro de 1995 para o Uruguai e o Paraguai.

O funcionamento do mecanismo aponta para duas direções diferentes: uma zona de livre comércio (baseada na liberalização automática) e um Mercado Comum, que fica submetido ao trabalho dos subgrupos. Mas, independentemente do andamento das tarefas desses subgrupos (que deveriam ser, em princípio, um âmbito de articulação de interesses na definição conjunta de um modelo de desenvolvimento e de complementaridade e, portanto, teriam prioridade lógica em relação à liberalização comercial), os prazos estabelecidos no Anexo 1 serão cumpridos.

Portanto, o que em verdade estabelece o Tratado de Assunção é uma zona de livre comércio, e não um Mercado Comum. Desse ponto de vista, sua orientação básica é mais reforçar os processos de abertura unilateral, do que orientar a constituição de um espaço comum de desenvolvimento regional. Nesse sentido, as críticas aos temas dos subgrupos de trabalho não afetam o objetivo principal.

Também chama a atenção o prazo exigüo para a constituição deste Mercado Comum (menos de quatro anos).3Esta urgência reforça a impressão de que o objetivo procurado é basicamente reassegurar a abertura global das economias regionais, e não rearticulá-las.

Na América do Norte, diferentes análises, a favor e contra o Tratado de Livre Comércio entre México, Canadá e Estado Unidos, têm insistido em que sua maior importância não está no comércio, mas na consolidação de um padrão conservador de acumulação e de relações Estado-sociedade, de difícil reversão por parte de governos futuros. O canadense Bruce Campbell cita um memorando confidencial, de abril de 1991, de John Negroponte, embaixador de Estados Unidos no México (seu cargo anterior foi o de embaixador em Honduras, no período mais dramático do assédio ao governo sandinista da Nicarágua): "O Nafta deve ser a continuidade das políticas de reforma no México depois da administração Salinas".

Se esta lógica aplica-se ao Mercosul, é significativa a coincidência do prazo fixado último dia do governo Collor. É verossímil e sugestivo considerar a integração regional como um acordo que, via liberalização comercial e coordenação macroeconômica, estabeleça entre os quatro países um tipo de entrelaçamento que homogeneizará suas orientações de política econômica em um horizonte neoconservador. Além de ser problemático para os próximos presidentes alterar essas orientações (caso pretendam), em função deste novo equilíbrio regional, também encontrarão um Estado desarticulado em sua capacidade reguladora e atrelado a um esquema regional que tem cedido parte da sua soberania. E com essa posição enfraquecida deverá sofrer as conseqüências sociais e políticas da implantação da Zona de Livre Comércio.

Em relação aos mecanismos institucionais previstos pelo Tratado, é notória a exclusão da representação dos interesses societais. O órgão superior (o Conselho) está integrado por ministros, enquanto o órgão executivo (O Grupo Mercado Comum) integra-se com representantes dos ministérios e dos bancos centrais. Nos subgrupos de trabalho, a tomada de decisões está a cargo dos representantes dos governos. Foi implementada a participação do "setor privado", mas em condição pro positiva, não deliberativa.

Desta forma, os subgrupos de trabalho, mais do que o espaço de articulação de interesses sociais, acabam funcionando como uma espécie de filtro ou de trincheira em relação à tomada de decisões, reforçando ainda mais as características comercialistas da integração e seu perfil autoritário.

O primeiro filtro está constituído pela excentricidade dos subgrupos em relação à dinâmica central do processo (o Anexo 1). Mas a dinâmica dos grupos organiza mecanismos de distanciamento e distorção. Por exemplo:

- os próprios recortes temáticos dos subgrupos os afastam dos problemas e conflitos sociais reais, que, se aparecem, o fazem transmutados em questões técnicas, orientadas para as dimensões de competitividade comercial e empresarial;

- a participação do setor privado é implementada através de agentes econômicos e não de atores sociais;

- desde o começo, a definição de "setor privado" restringiu-se aos empresários. O âmbito permitido ao movimento sindical foi o subgrupo 11. A ampliação dessa participação aos subgrupos 7 (política industrial e tecnológica) e 8 (política agrícola) foi uma conquista do movimento sindical regional;

- as comissões setoriais do subgrupo 8, organizadas por produto, privilegiam a representação dos interesses dos grupos agroindustriais e bloqueiam a participação dos pequenos produtores, caracteristicamente diversificados;

- na realidade, do ponto de vista da análise de políticas públicas, a estrutura orgânica do Mercosul apre senta-se como uma continuidade das características dos Estados burocrático-autoritários, em que a representação de interesses organiza-se em pressões corporativas para colonizar setores do aparelho do Estado.

Propostas inconclusivas

a) O fato de o Tratado de Assunção ter sido aprovado pelos nossos parlamentos constitui, ao nosso ver, mais um sintoma da incerta consolidação das nossas democracias. O problema não está tanto na sua aprovação, mas especialmente na ausência de debate e questionamento nos parlamentos da Argentina e do Brasil. Além de criar uma situação de difícil reversão, os partidos políticos que se colocam em posições críticas em relação aos modelos econômicos que se implementam na região perderam uma ocasião muito apropriada para suscitar um debate global sobre o conjunto das nossas realidades regionais e nacionais;

b) esta omissão foi atenuada (mais não remediada) pelas organizações sindicais dos quatro países que, independentemente de suas diferentes tradições e concepções políticas e organizativas, estão conseguindo aproveitar o novo espaço político aberto pelo processo de integração para desenvolver um diálogo inédito. Sinal desta nova situação sindical é o documento que foi entregado aos presidentes em Montevidéu, em 28 de dezembro de 1992, assinado por seis centrais. Nessa carta, as centrais da região questionam seriamente as orientações básicas do processo, assim como o funcionamento institucional, e formulam propostas sobre a elaboração democrática de políticas de desenvolvimento conjunto, tendo como base a complementação regional, a solidariedade e o fortalecimento dos atores sociais. No mesmo sentido, se pronunciou o seminário organizado pelo Partido dos Trabalhadores em Curitiba, nos dias 23, 24 e 25 de setembro de 1993. Em janeiro de 1994, as centrais sindicais apresentaram a Carta Social do Mercosul, cuja aprovação constitui o objetivo fundamental para este ano;

c) a possibilidade destas ações conjuntas fundamenta-se no reconhecimento estratégico da pertinência de uma proposta conjunta de desenvolvimento para os países latino-americanos. Nesse sentido, o Mercosul foi percebido como espaço de uma disputa: o objetivo foi superar a agenda neoliberal, limitada à liberalização comercial, e aprofundar o processo de direção da formulação de um Mercado Comum, com políticas articuladas em uma perspectiva de crescimento com justiça social, e com uma maior autonomia relativa do espaço regional em relação à economia internacional;

d) nesse posicionamento, está se desenhando um novo horizonte de ação política para os atores políticos e sociais que procuram uma consolidação democrática e uma reversão do quadro atual de aprofundamento da exclusão social. A emergência da nova central sindical argentina, a CTA (Congresso de los Trabajadores Argentinos), é o indício de um novo fato político de articulação em nível regional. Não se tem garantias de sucesso, mas uma certeza afirma-se: estas forças só poderão avançar se agirem em conjunto;

e) a ação crítica sobre o processo do Mercosul, para provocar sua redefinição global, pode ser o elemento aglutinador dessa pluralidade regional de atores políticos democráticos. O exemplo da América do Norte e suas redes sociais organizadas em prol de uma "diplomacia cidadã", crítica ao Nafta, merece ser levado em conta.

Hector Alimonda é professor do curso de pós-graduação em Desenvolvimento Agrícola na UFRJ.