Nacional

"Eu desenharia a sociedade que sonho com palavras bem simples. Seria pão, circo, seresta e culto"

Este é o território das águas. Vastos planaltos cortados pela faca transparente dos rios Tocantins e Araguaia. Nessa ordem... Sentido Norte-Sul. Os dois buscam a planície, a seu modo. Com seu cortejo de águas inventadas, aqui nos altos cerrados que cercam Brasília ou na divisa de Goiás com Mato Grosso do Sul, no Chapadão do Céu.

O monomotor Caravan 208, fabricado pela Cesnia (Uichita – USA) desliza pela pista do aeroporto Santa Genoveva, Goiânia, sem dificuldades. Tem um desenho curioso. Dá a impressão de que depois de fabricado alguém se advertiu de atar sob a fuselagem, o bagageiro. O que faz dele um avião ao pelo nono mês de gravidez. No Norte o chamam de barriga de aluguel.

Voar de Goiânia a São Félix do Araguaia é um filme. Um belo filme. Pousamos em Brasília. Minacu e Gurupi. Percorremos um sertão de pedras, cerrados ásperos e vertentes, governados no sentido norte por um rio teimoso, rompedor, másculo. Um rio enxuto, um rio habituoso a cortar pedras aprumo. Um rio de limites exatos: o Tocantins.

Decolamos de Gurupi para sobrevoar a Ilha do Bananal, essa espécie de viveiro que ferve, sobe de peixes, pássaros, ovos, ventre úmido onde o cerrado se abranda em barro, lama, águas multiplicadas em lagoas, anunciando a majestade desse rio mulher, estendido como um meridiano de cristal e transparência, imprevisível, dengoso, que reinventa a cada cheia ao seu capricho: o Araguaia. Daqui ele percorrerá mais mil quilômetros se enfeitando, inventando curvas e areias brancas, enfeitiçando as pessoas e as coisas para entregar-se. O Tocantins vai bebê-lo com todas as sedes, quando as águas se encontram, se misturam, se aplacam e descem a planície rumo ao mar.

São Félix é uma ponta de cerrado áspero sobre o rio. Entramos numa casa adobe, exposto, sem reboco: o “palácio Episcopal”. Aqui, Marcos Lotufo e eu vamos entrevistar Pedro Maria Casaldáliga Plá. Um catalão errante, arquitetura de passarinho, filho de Balsarency, uma pequena aldeia de mais de mil anos, perto de Barcelona.

No momento em que a gente se sentava para comer, chegou a notícia do assassinato do peão Maguila, que há quatro dias comeu nesta mesma mesa. Pedro, como você reage a isso?
D. Pedro Casaldáliga — A morte de um peão anônimo marcou a minha consagração episcopal. Celebrando o sangue de Cristo, eu jurei pelo sangue daquele peão que arriscaria a vida e esta Igreja toda assumiria radicalmente o compromisso de estar ao lado desses peões, ou posseiros, ou pobres da terra. Era a época da ditadura militar. Hoje estamos na democracia, queremos entrar na modernidade. Nos acenam com o primeiro mundismo e aqui continuam acontecendo essas tragédias. Maguila, um negro altão, desses companheiros que vêm sempre reivindicar alguma coisa que a fazenda negou. Esteve aqui em casa. Na volta, o gato o contratou. O pistoleiro entrou no ônibus e, na descida, na Vila Rica, o apagou. O problema da terra cada vez mais é um problema de todo o país e, além do mais, de diferentes categorias. Eu estava dizendo ontem para a Terezinha Pereira, da Associação Mundial de Escritores e Artistas, que quando me fizerem autópsia vão encontrar terra no fígado e no coração. Somente com a utopia revolucionária desse mundo novo que sonhamos e à luz de uma fé no Deus da vida é que a gente pode engolir essa tragédia dos peões.

Imagino que houve modificações importantes na configuração desse conflito em torno da posse da terra e do trabalho nesse lugar. Que diferença é essa?
Olha, chegamos quando essa região entre o Araguaia e o Xingu era um paraíso de incentivos fiscais, a porteira da Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). Em 1968, foi um tempo gordo para o latifúndio desenfreado. São Félix tinha uns 600 habitantes e 3.000 peões. Sem nome, sem carteira, sem futuro. Eu lembro deles. Perguntava pela família: “Ixe, faz anos que não tenho notícia..” Não escreve à sua mãe? “Não, quero que eu seja a carta..” O problema da terra já não era só da Amazônia legal, era de todo o Centro-Oeste, foi tomando cada vez mais amplitude, inclusive no Paraná. E não foi só um problema de peões e de posseiros, foi também dos colonos. Tornou-se nacional, houve uma certa cobertura. Inclusive nessa época até o Estadão, a Folha e o Jornal do Brasil faziam questão de publicar notícias da terra, ou da causa indígena, para contestar uma ditadura que impedia, nem tanto a liberdade deles quanto seu liberalismo. Além do mais, foram crescendo os sindicatos de trabalhadores rurais, e modestamente deve-se reconhecer que a Igreja em muitas áreas do Brasil teve uma mão providencial no nascimento e no fortalecimento de sindicatos de trabalhadores rurais. E surgiu também o Movimento dos Sem-Terra, já não diretamente vinculado à Igreja. A opinião pública internacional foi entendendo que a luta do povo brasileiro, latino-americano, mundial, não podia ser só operária, ou dos chamados grandes centros. Nos últimos anos, a problemática da terra tornou-se nacional. Agora estamos menos sós. Eu lembro de quando escrevi o primeiro texto de denúncia, “Feudalismo e escravidão no norte do Mato Grossoo” — que aliás não deu para publicar porque o próprio núncio disse que isso mancharia a imagem do Brasil no exterior. Soltei essa primeirinha carta pastoral em uma igreja da Amazônia precisamente no dia 23 de outubro de 1971, no dia e hora da minha sagração episcopal. Se eu a solto antes, possivelmente, há muitos anos eu não estaria aqui [ri]. Dessa carta surgiu a idéia do que futuramente seria a Comissão Pastoral da Terra.

Como foi a relação entre o bispo recém-consagrado, os latifundiários da região, a população e a Igreja na pessoa do núncio?
Olha, tivemos de ser necessariamente radicais. Não dava para possíveis alianças. Agora, fala-se muito em aliança e eu fico olhando para o passado. Até me pergunto: será que poderíamos ter sido capazes de fazer alianças? Deus fez aliança com a humanidade, com o sangue do seu próprio Filho, ou seja, o sangue caseiro. Agora, fazer aliança sobre o sangue dos outros... Nós não podíamos entrar nessa, tivemos de denunciar, não podíamos parecer conchavados. Como Igreja éramos a única força contestatória da região. Chegamos em 1968, fui ordenado em 1971. Nosso boletim Alvorada nasceu já em 1970. Éramos os únicos que podiam passar o recado para o exterior, os únicos que podiam sair para o Brasil. Naquela época, muitas pessoas falavam com normalidade em viajar para o Brasil. Aqui no Mato Grosso, o Brasil estava do lado de lá do rio Araguaia.

Como os trabalhadores reagiam à chegada de vocês, a uma atuação mais organizada?
Muitos deles estavam habituados a uma velha Igreja, mais perto da casa-grande do que da senzala. O fazendeiro mais forte de São Félix, quando cheguei, me disse na primeira conversa, na beira do Araguaia: “Padre, dentro de pouco o senhor será fazendeiro também.” Eu falei: “Olha, será perdendo a cabeça ou perdendo a fé.” [risos]. Por outro lado, foi difícil naquela hora saber conjugar um trabalho especificamente pastoral com um trabalho de conscientização, organização e militância. No início tentamos desenhar o que seria a pastoral global. Falávamos de uma pastoral mais específica, que seria a pregação, a catequese, os sacramentos... A pastoral da educação, da saúde. E a dos direitos humanos era fundamentalmente a pastoral da terra. Porque não bastava defender a terra dos posseiros, era preciso atender os posseiros doentes, abrir escolas e esconder pessoas se necessário. Com isso dá para entender por que um povo que não tinha consciência política orgânica, cristã e libertadora queria que estivéssemos ali, necessitava da nossa presença. Por outro lado, a ditadura militar também estava lá. Para os fazendeiros, a polícia, o Exército, nós éramos um perigo. A palavra prelazia passou a ser emblemática em todos os sentidos, ainda hoje prelazia é chinelo de pé. Prelazia também é xingamento. Para muitos, era PT, CPT, luta pela terra, peão, posseiro, índio...

Você disse que quando forem fazer sua autópsia vão encontrar terra no coração e no fígado. Eu diria que certamente no sangue encontrarão paixão pelos índios. Como era o trabalho da prelazia no momento que envolvia latifúndio, posseiros, índios, num único conflito?
Nós entrávamos no escuro, no desconhecido. Desde o início tem sido difícil conjugar as necessidades, os direitos e os interesses de índios e posseiros, ou índios e colonos, índios e pequenos proprietários. A prelazia pertence, entre aspas, à Ilha do Bananal, ao parque do Araguaia, a metade do parque do Xingu, à aldeia Tapirapé, praticamente a todas as aldeias carajás. E da prelazia saiu um grupo de retirantes de Xavantes. Hoje ainda custa muito para os intelectuais e setores da Igreja entenderem que os índios realmente são outros povos. Não são o povo brasileiro. Têm direito a suas terras, como têm um modo diferente de viver nelas e utilizá-las. Continua sendo, eu acho, honestamente, um desafio neste país, na América Latina, fazer com que os povos dos diferentes Estados chamados nacionais reconheçam que vários dos nossos Estados nacionais — Brasil entre eles — são pluriétnicos e plurinacionais. Pelo menos entender o que significaria, ou deveria significar, a verdadeira autonomia desses povos. O direito pleno a seus territórios.

Você falou nitidamente como um catalão, no melhor sentido da autonomia. Como é defender a autonomia das comunidades indígenas no Brasil?
Eu sinto cada vez mais a necessidade de continentalizar a nossa América, diante da dívida externa, por exemplo, em termos de um mercado comum que fosse outro tipo de mercado, evidentemente. Que não transformasse pessoas humanas em mercadorias. Deviam reconhecer que as comunidades indígenas são Estados, e para isso deveriam ter Constituição básica e o respeito mútuo de um Estado para outro. Significaria respeitar os territórios. Porque a coisa mais importante para o índio é o seu território. Em segundo lugar, respeitar e estimular a própria cultura, sobretudo no que se refere à língua e às tradições. Evidentemente, uma Constituição maior, que seria do Estado todo, poderia exigir dos povos indígenas um certo sacrifício, se vale a palavra. Não há inconveniente nenhum que o subsolo seja da União, para quando chegar a hora. A maior parte dos povos indígenas da América Latina nem pretende uma independência, nem falam nisso.

Isso pode se traduzir, por exemplo, pluriétnicos sim, pluriculturais...
Plurinacionais.

Plurinacionais também?
Sim. Quando o papa João Paulo II fez a primeira visita ao Brasil, ele disse em Manaus: “Vocês são povos, vocês são nações.” Poucos dias depois apareceu toda a cúpula da Funai no pátio do centro comunitário. E era a Funai dos coronéis da época. Eu conversei com eles, que me cercaram com uma espécie de insidiosa atenção. Eu disse: “O papa acaba de falar, vocês não vão dizer que ele é comunista ou radical, né?” Creio que somente se os povos indígenas forem reconhecidos, não só como etnias outras, mas também como nações outras, respeitaremos plenamente os seus direitos.

Quando comecei a trabalhar com você, nos anos 70, aconteceu a CPI da terra, em que você foi chamado a depor. Como os parlamentares reagiram quando o [deputado] Siqueira Campos disse: “O que um bispo estrangeiro tem a ver com a terra?” E você deu a famosa resposta que tinha sido naturalizado pela malária?
Olha, foi uma tristeza e um nojo, não só a minha relação com o Siqueira Campos, mas com o próprio Congresso e com as CPIs. Tenho sido intimado outras vezes e me neguei a comparecer. Se por lei me tivessem urgido eu iria, mas não vou abrir a boca. O país conhece as CPIs. É uma vergonha! Naquela época inclusive gente da Arena [Aliança Renovadora Nacional], conservadores, me perguntou: “Dom Pedro, então o senhor é contra a propriedade privada?” Eu disse: “Não sou contra, se o senhor pode ter uma camisa e todos os outros também, eu sou a favor da propriedade privada das camisas.” Agora, sou contra a propriedade privativista, que é privadora para a imensa maioria. Contra a propriedade acumuladora que é a essência do capitalismo.

Outro problema é o escoamento do que se produz aqui. Houve um debate intenso a respeito da estrada que cruzaria a Ilha do Bananal, que era uma opção, na visão de seus defensores, para o escoamento da produção do nordeste do Mato Grosso etc. Em que pé está isso?
É uma estrada que significaria uma Rio-Niterói, de quase 90 quilômetros, acabando com a Ilha do Bananal e com algumas cidades, como São Félix, na época das grandes enchentes, acabando com o povo indígena. Além do mais, não há possibilidade técnica dessa estrada permanecer, a própria cheia acabaria com ela. E traria o quê? De onde e para onde? É cobiça, interesse de certos fazendeiros, um certo interesse turístico também de alguns municípios do lado de lá e de cá.

Empreiteiros?
Empreiteiros e políticos, na base do turismo. Evidentemente facilitaria a saída do gado deles, e a entrada de cachaça, cerveja, para o turismo e para a depredação da pesca, inclusive facilitaria a passagem da coca, como temos visto agora em Guaraí.

Você foi consagrado bispo no período Paulo VI, quando a Igreja particular desempenhava um papel muito importante na concepção daquele papado. Na América Latina isso teve uma importância extraordinária. Como isso se refletiu aqui, na relação da igreja de São Félix com o conjunto da Igreja?
Já acontecera o [Concílio] Vaticano II, não se pode esquecer disso. Em 1968, quando chegamos, ia acontecer Medellín, quer dizer, se trazia o Vaticano II para a América Latina. Na América Latina, logicamente, nos abríamos às lutas de libertação e aos primeiros chamados das próprias etnias, dos grupos operários e camponeses. Tínhamos a vantagem de viver aquela realidade exacerbada. Só podíamos ser uma Igreja da terra, para os camponeses, peões, posseiros, índios, que acabam sendo um slogan nos nossos textos, nas nossas celebrações. Nos últimos anos, assessorados pelo querido Pedrinho de Oliveira, tivemos de reformular as coisas. Além deles, incluímos em nossas preocupações os comerciantes e pequenos proprietários. Não que isso seja alargar as alianças, simplesmente estamos reconhecendo que o mundo, a sociedade mudou. A verdade é que na América Latina, Medellín ainda está com a problemática da inculturação. Querendo adaptar o Vaticano II à América Latina, na prática nos inculturava. Isso não quer dizer que a coisa fosse tão simples, tão fácil. Vivemos e estamos vivendo o seguinte desafio: fora as culturas indígenas, não sabemos qual é a cultura do nosso povo. Eu sei qual é a cultura nordestina, a mineira, a gaúcha. A maioria dos moradores desta região está aqui mas não é daqui e nem se sente plenamente daqui. Talvez estejam aqui há 20 anos. Então, isso cria um tipo de desafio na hora de você querer inculturar uma Igreja. Nós temos dado foras, reconheço. Mesmo porque, naquela primeira época, a Igreja latino-americana mais comprometida nem sempre compreendeu — e eu me incluo — a religiosidade popular, que tem seus desvios, suas superstições, mas tem também uma riqueza profunda, porque é a expressão da alma do povo. Não tivemos problemas maiores com a CNBB, como diretoria, como presidência. Pelo contrário, a presença da CNBB foi sumamente solidária. Aqui esteve D. Aloisio [Lorscheiter], D. Ivo [Lorscheiter]. Tivemos conflitos com a nunciatura, isso sim...

É verdade que a CNBB e outros setores do próprio episcopado têm sido solidários nos momentos de perseguição? Eu me lembro da presença aqui de D. Fernando, D. Aloisio, D. Tomás [Balduíno]. Aí vem esse conflito com a nunciatura, vem a visitação apostólica de D. Falcão. Como era isso?
Nós éramos naturalmente suspeitos. O papa João Paulo II disse numa ocasião, quando da visita episcopal ao Centro-Oeste, que eu era um bispo troppo singolare (singular demais). E a nunciatura, por ser nunciatura e por ser diplomacia também, dificilmente podia entender-nos. Eu me lembro de quando D. Ivo, D. Aloisio estavam na presidência da CNBB e eu vivia a problemática de Santa Teresinha, em luta contra a Codeara. Padre Francisco preso, alguns mortos. Chegou um momento que eu disse: “O núncio está acreditando mais no general Serpa, no chefe da Polícia Federal ou no ministro da Justiça que em nós?” O conflito com as nunciaturas deu-se ao longo de todos esses anos.

Você diria que a nunciatura se surpreendeu com sua consagração como bispo?
O Espírito Santo não tinha outro para escolher, porque não tinha outro aqui [risos]. E de fato eu não era uma má pessoa. Era reconhecido como um religioso até piedoso, com zelo missionário, e não tinha podido expressar essa militância pessoal que veio depois.

Quem era o núncio quando você foi sagrado, em 1971?
Acho que era Mozoni. Ele me tratou com muito carinho, pediu que não publicasse a primeira carta sobre os peões porque podia denegrir a imagem do Brasil no exterior. O tenente João Evangelista me chamou uma noite no quintal, as estrelas escutando, e me disse: “Padre Pedro, essa sua atitude a gente compreende, mas é perigoso por causa da situação do país e dos fazendeiros.” Então, por um lado as Forças Armadas me avisavam e, por outro, a nunciatura. Os exércitos do céu e da terra. Tive confrontos com outros núncios também. Paulo VI, já nos últimos anos, mandou dizer que estava preocupado comigo e se eu aceitava um cargo no exterior. Eu disse que nunca aceitaria, seria uma fuga, uma traição naquela hora. Depois veio o famoso conflito por causa da visita ad limina. Tantos bispos, reclamávamos da visita dizendo que era burocrática, superficial. Eu fiz questão de não ir, isso criou um conflito sério. Um caso curioso: D. Hélder [Câmara], numa visita a Roma, encontrou-se com o cardeal Baggio, que falou de mim: “Acaba de publicar um livro de poemas heréticos e eróticos.” Era Tierra nuestra, prefaciado por Ernesto Cardenal, que recordava a tortura de alguns agentes da pastoral da prelazia. Choques elétricos nos órgãos sexuais. Isso era o erótico. Aí veio o famoso documento que me impunha não ir à Nicarágua, controlava certas publicações e restringia pronunciamentos, me cerceando a atividade pastoral. Como o documento vinha sem as necessárias assinaturas, mesmo trazendo o carimbo oficial, me recusei a reconhecê-lo. Esse documento, que até hoje não sei de onde saiu, como chegou e como a Rede Globo conheceu, foi lançado pela emissora para o Brasil e para o mundo. Fiz aquela carta ao papa João Paulo II colocando uma série de contestações fraternas, que aliás estavam sendo feitas no mundo inteiro: respeito à liturgia inculturada, à mulher na Igreja, diálogo cultural do Vaticano com o Terceiro Mundo e a própria atuação das nunciaturas. A carta foi uma espécie de palavra fulminante e eu recebi réplica de Roma. Escrevi novamente dizendo que estava disposto à visita ad limina. Fiz a visita, aí veio aquele fraterno diálogo, pequenos confrontos com Ratzinger e Gantin. Fundamentalmente eles contestavam a nossa teologia, a nossa liturgia, o nosso compromisso político. Achei interessante que no diálogo passavam com freqüência do singular ao plural. Não só eu era cobrado e contestado, éramos nós, era a nossa Igreja latino-americana. Eu fiz questão de defender o que me pareceu que deveria ser defendido.

Na visita de João Paulo II a imprensa noticiou que os bispos se reuniram em Fortaleza e houve uma recepção. O papa conversou com cada um. E depois se deram conta de que Pedro Casaldáliga estava sem a batina episcopal. Como foi isso?
Pedi emprestado a um seminarista em Fortaleza. Foi quando fiz o poema “João Paulo, Pedro só” e li para ele. Soube depois que ele teria dito que era mais fácil fazer um bom poeta do que um bom bispo... D. Tomás, meu superirmão, ficou um pouco zangado com isso.

Depois do período ditatorial houve uma redefinição de papéis das diversas instituições no Brasil. O que mudou na Igreja de São Félix?
Nos primeiros anos não havia nenhum tipo de infra-estrutura, tínhamos de fazer de tudo em educação, saúde, comunicação, sindicalismo, política e cultura também. À medida que iam se criando instituições de classe, por exemplo, abria-se espaço para a opinião pública nos meios de comunicação, o intercâmbio com regiões do país era fortalecido. Fizemos questão de assumir nosso papel específico e deixar que o sindicato fizesse o que é do sindicato. Várias pessoas foram estimuladas a entrar na política, muitos geriram prefeituras populares, até bastante bem-sucedidas no meio dos conflitos da região. Hoje pode parecer para alguns que somos mais puramente Igreja. Fazemos questão de estar presentes estimulando as discussões, mas já não nos toca assumir uma certa vanguarda. O sindicato pode fazê-lo, ou o faz especificamente a CPT, a pastoral da Igreja, mas oficialmente já não é a prelazia de São Félix.

Qual a relação entre o colapso do Leste Europeu e de tudo que representou como expectativa de resolução dos grandes problemas humanos, provocando uma certa perplexidade do pensamento “de esquerdaa”, inclusive no pensamento religioso na América Latina?
Um colapso de calibre mundial evidentemente que repercute na Igreja, na Itália, e muito concretamente na Igreja da América latina. Porque várias das aspirações do socialismo coincidem com as da Teologia da Libertação. Ver cair uma utopia mais fraternizadora, mais igualitária, nos afetou profundamente, em certa medida, sim. Não abalou os princípios nem a esperança, mas sacudiu o procedimento, a formulação mais científico-teórica. Criou certas decepções com respeito à possibilidade de revoluções mais radicais, porque não se pode esquecer que não tem sido apenas o colapso no Leste Europeu, mas também as revoluções latino-americanas.

O que pode significar o levante de Chiapas, em janeiro último, que põe em questão o processo político do México?
Não podemos esquecer o levante do Equador, toda a Guatemala, Rigoberta Manchú à frente, e as várias organizações indígenas que têm surgido no continente, inclusive às vésperas dos famosos 500 anos. Chiapas assumiu praticamente isso tudo no momento oportuno e numa região extremamente significativa, sul do México, extrema pobreza, fronteira com a Guatemala maia, na hora do Tratado de Livre Comércio [NAFTA] com os Estados Unidos. Na caducidade degenerada do PRI [Partido Revolucionário Institucional] depois de mais de 60 anos de mandato. Quando o México queria se exibir como se estivesse entrando no Primeiro Mundo. Chiapas reivindica não só os direitos indígenas, mas uma outra democracia. Eles disseram com insistência que não pediam só para eles, pediam para todos os indígenas do México e todo o México e para a América Latina. Eu digo sempre que em Chiapas expressaram-se situações e reivindicações maiores do continente. Por um lado, uma clara contestação ao latifúndio e à absurda política agrária do continente. Por outro, uma contestação ao caciquismo, que seria coronelismo em outros lugares. E à politicagem corrupta. Foi também uma reivindicação tipicamente indígena. “Já estamos cansados de ser marginalizados, de morrer com morte imposta”, chegaram a dizer. Agora pelo menos assumiremos a morte com as próprias mãos, será uma morte nossa. Então, foi uma contestação ao capitalismo neoliberal. Uma contestação à pseudo-democracia, porque o México é um país democrático, não é? E o PRI é um partido democrático. Eles inclusive lançaram aqueles dez pontos do que entendiam por democracia. Eu acho que é a melhor cartilha sobre democracia que tenha se escrito na história e qualquer pessoa pode entender.

Há um aspecto particularmente importante do contexto em que ocorre Chiapas. Há uma tradição da Igreja na região, San Bartolomeu de las Casas, e o testemunho presente das últimas décadas de Samuel Ruiz e de Mendez Arceu, que são testemunhos de um compromisso muito grande. De outro lado, esse levante ocorre num momento em que a Nicarágua encontra-se em situação difícil, as forças populares tentam agora um novo leito de atuação, El Salvador, Guatemala. E Cuba encontra-se talvez na situação mais difícil desde a Revolução Cubana de 1959. De que modo você acha que poderia repercutir esse fato particularmente na América Central?
Honduras praticamente deu voto de protesto a uma realidade dramática, com certos freiazos aos militantes e suas barbaridades. Panamá deu um típico voto de protesto já na perspectiva do final do Tratado do Canal. El Salvador deu Arena mas a FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) está aí como segunda força. A Nicarágua está vivendo um divisão interna do sandinismo, mas há muito sandinismo lá. Chile, Argentina e Brasil estão experimentando em carne viva o que é a pseudo-democracia e a exacerbação do capitalismo no neoliberalismo. A perspectiva tão fundada da eleição de Lula aqui. A crescente consciência do que a dívida externa significa, um conhecimento e reconhecimento do fracasso do neoliberalismo, inclusive no Primeiro Mundo. E o Primeiro Mundo dá esses bandazos de superdireitas lá na Itália. Mas certos países do norte da Europa estão valorizando de novo o socialismo... Penso que os Estados Unidos e o Primeiro Mundo vêm se desprestigiando cada vez mais nesse papel de gendarmes da humanidade. A ONU suicidou-se moralmente na Guerra do Golfo. Cresce no Brasil e em muitas partes do mundo um movimento popular com nomes diferentes, a consciência, a vontade e a práxis da cidadania. Purificam-se e relativizam-se os partidos, os sindicatos, mas estimula-se a participação. As ONGs, que vêm sendo uma expressão espontânea, às vezes até um pouco anárquica, são uma expressão maravilhosa de solidariedade e compromisso. Eu vejo que o mundo está dando uma virada...

Nessa direção, o que significa a eleição de [Nelson] Mandela?
A África do Sul foi a expressão máxima do racismo entronizado nas leis, inclusive abençoado por um setor da Igreja. Mandela, hoje presidente, começou um período novo. Não vai ser fácil. Há as lutas tribais a resolver. Mas acho que o racismo na África do Sul tem sido condenado definitivamente no mundo inteiro, apesar de todas as explosões de racismo na Europa. Há muitos outros setores contestando o que acontece na Bósnia, as leis de extranjiera, como dizem lá na minha Espanha. E a solidariedade com o Terceiro Mundo continua bastante significativa.

A eleição de Mandela significaria o ingresso de 80% da população no processo político, o reconhecimento da maioria. O que pode significar isso num país de população expressiva, como o Brasil, vivendo esse processo de transformação, crescimento de movimentos sociais, participação popular?
Eu dizia para os companheiros bispos há uma semana, num retiro espiritual, que o Brasil é o país que tem uma dívida maior e maiores possibilidades com respeito à África. Assim como acho que o Brasil tem uma grande dívida e responsabilidade ou co-responsabilidade com o resto da América Latina. Penso que o Brasil tem simultaneamente três desafios: da cidadania, da participação e da superação do cansaço, do descrédito, da malandragem e da corrupção. Isso não acontece de um dia para o outro. É importante que as diferentes regiões, com suas culturas, suas possibilidades econômicas ou necessidades, sejam atendidas e potencializadas. Um país tão grande também não pode ser governado monoliticamente, porque se perde a riqueza. Acho também que o Brasil deve partir para realizar reformas maiores. A reforma agrária. Uma contestação dos técnicos e dos políticos à dívida externa seria um belíssimo exemplo para o resto da América Latina... Uma reforma do salário e a conscientização de que a sociedade no Brasil é significativamente indígena, porque o Brasil é latino-americano.

A mística sempre foi uma marca muito profunda na vida da Espanha e na sua vida. Outra coisa é a aventura missionária. Você disse que missionário é aquele que queima as pontes. Europa nunca mais?
Queima as pontes e os navios. Como Cortez, só que por outros motivos. Europa nunca mais, em princípio. Mesmo porque consigo carregar a Europa em meu coração e um pouco também no fígado, essa é a verdade. E nunca mais Espanha, inclusive, Catalunha. Eu reconheço que tenho esses três tiques: o da mística, o da revolução, o da aventura missionária, que para mim são apenas tiques psicológicos. Batizados pela graça de Deus, acho que se transformaram também num dom que agradeço, tento valorizar e viver, a serviço da humanidade e do Reino de Deus. A mística vem da espiritualidade espanhola, dos grandes mestres, Teresa e João da Cruz, Raimundo Lullio, da nossa Catalunha. E vem também das próprias circunstâncias da vida da gente. A Revolução Espanhola que vivi do lado dos vermelhos, mas sendo branco, a família de direita, católicos, perseguidos. As leituras que fomos fazendo. E penso também que poesia e mística são gêmeas. Agora, eu agradeço ter tido sempre uma inclinação à radicalidade, às causas maiores, aos argumentos máximos da vida.

Você enfrentou em diversas ocasiões situações-limite, o que demonstra essa vocação para a radicalidade. Conte-nos um desses momentos, extraordinariamente dramático e exemplar, que você e a Igreja do Brasil, na sua pessoa, viveram em 1976. A seus pés foi assassinado o padre João Bosco Burnier, em Ribeirão Cascalhera.
Ele era primo do famoso brigadeiro Burnier, que inventou o Parasar. Trabalhava com índios e sertanejos na prelazia de Diamantino, aqui no Mato Grosso. Viemos para um encontro da pastoral indígena, no Tapirapé. Eles nos perguntaram por que alguns missionários não batizavam, como antigamente. Explicamos que era uma postura de evangelização do mundo indígena, de respeito à globalidade da cultura. João Bosco sentiu muito esse encontro, a ponto de, em agonia, ter dito: “Pedro, lamento não ter tomado nota do que conversamos com os tapirapés.” Chegando em Ribeirão, soubemos que duas mulheres estavam sendo torturadas na delegacia, porque o velho irmão de uma delas, e sogro da outra, tinha matado o famoso cabo Félix, conhecido como assassino, uns dez crimes. Ele andava, com policiais e fazendeiros, atrás de dois filhos do velho, que reagiu e o matou. Não conseguiram pegá-lo, mas à irmã e à nora. Eu, o padre Bosco e um rapaz de Belo Horizonte, Juarez, fomos para a delegacia. Eu me apresentei e estendi a mão para os quatro policiais. Tivemos uma conversa de três minutos com eles, explicando que as mulheres eram inocentes e autoridade não era para torturar. Foi quando o Ezi Ramalho, já autor de três crimes, fulminantemente disparou um soco, uma coronhada e uma bala na testa do padre João Bosco, que caiu aos meus pés. Dois deles fugiram logo, abriram a delegacia, soltaram as mulheres. Aí vimos que havia um caititu perto da delegacia, que iria ser jogado naquela noite dentro da cadeia e teria despedaçado as mulheres. Transportamos o João Bosco para casa, onde havia um casal de médicos e uma enfermeira. Ele ficou lúcido ainda umas duas horas. Ofereceu a vida pelos índios, pelo Brasil, pelo Cimi [Conselho Indigenista Missionário]. O médico disse que ele não sobreviveria ali. Havia o desespero de tentar levá-lo para Goiás, mas não havia jeito, chegaríamos três dias depois. Descobrimos que na fazenda Tamakawi, que ainda não era do Sílvio Santos, havia um teco-teco e fomos por aquelas estradas terríveis do Xingu, o sangue ensopando. Soubemos depois, confirmado por fazendeiros, que a intenção era me matar. Deve ter havido confusão, Bosco tinha mais aspecto de bispo que eu. O piloto disse que havia trazido umas pessoas, em 24 de setembro, do Rio, que deviam ser do Exército, da polícia, para me matar, mas eu não estava em São Félix. Estávamos em uma celebração no meio do povo. E no dia seguinte não dava, porque foi quando D. Adriano foi despido, pichado e maltratado com sua sobrinha, em Nova Iguaçu. Interpretamos que a repressão queria dar uma lição na Igreja urbana e rural.

Como o povo reagiu?
Na missa de sétimo dia o povo plantou um cruzeiro de madeira, arrebentou a delegacia e a cadeia. “Aqui nessa cadeia nunca foi preso um rico, só pobre.” Nessa hora eu estava em Goiânia. Soubemos que o presidente Geisel teria dito que, se ficasse demonstrado que eu estava nessa derrubada da cadeia, não haveria força nesse mundo que impedisse a minha expulsão. Eu penso sempre que há três tipos de morte: a primeira é conhecida, morte morrida. A segunda eu aprendi aqui no Brasil, morte matada; e a terceira que seria a morte doada. Eu gostaria de dar a morte, isso me acompanha, será patologia? Acho que é patológico, de paixão, a paixão da radicalidade, da entrega total. Acho que é a graça de Deus. Os expedicionários espanhóis cantavam: “Soy el novio de la muerte.” Essa proximidade com a morte tem me ajudado a manter uma certa coerência na vida, a superar medos, fugir de privilégio, relativizar muita coisa, a valorizar essa legião infinita de mártires da nossa América Latina. Construímos, em Ribeirão Bonito, o Santuário dos Mártires da Caminhada, uma homenagem ao padre João Bosco, a todos os mártires do Brasil. Lá estão o padre Josimo, Vladimir Herzog, Alexandre Vannucchi. Sem nenhum tipo de petulância eu digo que sim, gostaria de acabar por morte doada. Pode ser também um luxo poético. Lembra daquele verso italiano antigo, que um belo morrer honorifica toda uma vida? E Otávio Paz tem um poema com um belo verso: “Sua morte é monumento de si mesmo..” Um poema meu termina dizendo: “Certifico que vivi convosco esperando este dia, de repente, com a morte se fará verdade a minha vida, finalmente terei amado.”

Antes de João Bosco havia sido assassinado o padre Rodolfo Lubenkein, da aldeia Bororo, em Meruri. Depois de Bosco foi assassinado Ezequiel Ramin, depois Josimo em 1986, estivemos juntos no sepultamento dele. Qual o significado dessas mortes para a população com a qual vocês trabalham e à qual foram doadas essas vidas?
Nenhuma pessoa honesta pode olhar para um mártir sem reconhecer que essa pessoa, pelo menos na última hora, foi coerente, foi generosa e eficaz. A Igreja demonstrou no Brasil, na América Latina, que estava do lado do povo até as últimas conseqüências. E misturou o sangue dos seus bispos, leigos e outros, que não apareceram tão claramente como mártires, mas o são. Por exemplo Valencia Cano, na Colômbia, [outros] três no Peru, em supostos acidentes. Angelelli, certamente morto pelos militares na Argentina, sem dúvida, eles reconheceram agora. Você, que além de poeta é revolucionário, um igrejeiro à revelia [risos], sabe muito bem como se misturou o sangue dos cristãos com o sangue dos marxistas, e em última instância acaba sendo um sangue só, e um sonho só. Os mártires da terra são tão divinos quanto todos os mártires de sempre, porém muito mais humanos, talvez.

Pedro, como é a paixão de escrever?
Eu pensei uma época em renunciar à poesia pelo apostolado. Nos últimos anos, eu venho assumindo a poesia até por causa do próprio apostolado. Eu sou um pouco palavra. Os índios guaranis dizem: “Tu és a tua palavra.” Se você examina meus escritos verá que há algumas palavras permanentes, constantes. Uma delas é palavra; outras são morte, Deus, povo, terra e esperança.

“Terra nossa, liberdade.”
É. Aí eu descobri que realmente eu era palavra. O poeta João Maragali dizia que poesia é a palavra emocionada. Acho a melhor definição. Depois de todas as retóricas e convenções literárias, se rima, se não rima, o que é poesia, o que é prosa, então... você lê ou escuta uma palavra emocionada e diz: “Poesia, não tem dúvida.” Um poeta cubano dizia que poesia que não ajude a motivar a vida não tem sentido. Eu fico, com todo o respeito, mas com certa suspeita, diante da poesia chamada pura, que não se suja, não se compromete. Não sei, excessivamente angélica para que seja uma poesia humana. Não digo que poesia deve ser panfleto, assim como poesia religiosa não deve ser sermão nem homilia, e poesia militante não deve ser comício, deve ser poesia. Poesia apaixonada, palavra emocionada, atitude comprometida.

Há uma geração fantástica de poetas no momento da Guerra Civil Espanhola, com testemunhos extraordinariamente diferenciados: Lorca, Alberti, León Felipe, enfim... Você, como poeta que tem percorrido o continente inteiro, como vê esse fazer poético e revolucionário na América Latina?
Vallejo, Neruda, inclusive Otávio Paz, que não é militante, mas é apaixonado e tem uma belíssima palavra. Ernesto Cardenal. E me impressionam muito esses poetas, têm a paixão celtibérica, a fantasia transbordada das grandes cordilheiras, dos rios caudalosos, dessa natureza que em Espanha não temos. Ao mesmo tempo, a maioria deles tem essa simbologia meio secreta, da mística, da palavra e do silêncio dos povos indígenas. Na Espanha somos mais claros, os poetas espanhóis são mediterrâneos, cantam Serrat “que posso fazer se nasci no Mediterrâneo?” E outros nasceram em Castilla, “terra de pão e de bar” e sem montanhas. Você tem de ser nu como a própria terra. Antonio Machado, que é andaluz e nisso seria “moruno”, mas se fez castelhano. Unamuno, que é basco, se fez castelhano também, em Salamanca.

Hernandez? Miguel Hernandez?
Ele tem a máxima paixão da militância, é um touro na hora da verdade, que é a hora da morte. Os novelistas latino-americanos são muito simbólicos, se cruzam as ações, processos da novela, se cruzam com simbologia, com mito. Você sabe que muitos na Espanha e Europa em geral aprenderam com eles essa mitologia, que nossas narrações eram muito mais lineares. Também a muitos poetas espanhóis tem influenciado o latim, os clássicos. Todos nós, os eclesiásticos de antes, os de agora não, porque não sabem latim... Seria bom que soubessem latim e grego. Primeiro conhecemos Horácio e Virgílio, os clássicos espanhóis. Eu faço questão de não perder essa fibra clara e serena. Acho que minha poesia é clara, até quase transparente, e não penso que por isso deixe de ser menos poesia. Evidentemente que a poesia não deve ser explicativa, deve sugerir, provocar.

Encontro dois grandes poetas entre os novelistas latino-americanos, García Márquez e o texto vulcânico de Manuel Scorza, o peruano. Scorza trabalha mais explicitamente a palavra e a paixão do que García Márquez. Ambos, entretanto, mantêm uma qualidade muito alta. Aí estão dois parâmetros do que falávamos. De um lado alguns se pautaram um pouco na linha, digamos, do realismo socialista e, de outro, um vasto setor que buscou cunhar uma linguagem própria no continente. O que pode trazer de contribuição para a literatura mundial uma experiência como essa?
Eu penso que a literatura latino-americana é hospitaleira. Não temos um Kafka. Você lê uma novela de autor tipicamente latino-americano e se sente envolvido, parece que convocado. Cria um tipo de simpatia caseira. Acho que essa é a maior contribuição, além da simbólica, e hoje uma paixão ecologista avant la lettre. Porque antes que se falasse em ecologia, nossos poetas e novelistas nos apresentavam a natureza não só como um ser vivo, mas como uma espécie de pessoa humana. Evidentemente isso é herança do povo indígena.

Nós vivemos juntos a experiência de resgatar num texto a Missa da Terra sem Males, mais tarde a Missa dos Quilombos, uma história de oprimidos, os índios e os negros.
Foi um índio que fez a música da Missa da Terra sem Males, um negro fez a da Missa dos Quilombos. Um sertanejo não renegado fez a letra e um conquistador arrependido fez a letra também [gargalhadas].

Como foi esse trabalho na cabeça de um conquistador arrependido?
Eu já disse que carregava um pouco de Espanha, a paixão pela África, a paixão pela causa indígena, inclusive em boa parte pela literatura latino-americana que eu tinha podido saborear. Estivemos com o padre Carlos Eduardo Mesa, colombiano, membro da Academia da Língua da Colômbia. Ele nos ensinou tanto poesia latino-americana como espanhola. Na minha mocidade decorei muitos poemas latino-americanos. Era normal nesse espírito de teologia da libertação, de militância, que escrevêssemos algo pela causa negra e pela causa indígena. Você lembrará que a motivação de escrever a Missa da Terra sem Males foi a celebração do aniversário do martírio dos três missionários no Rio Grande do Sul. Nas missões de São Miguel celebramos três mártires que os índios nos fizeram e esquecemos os milhares de mártires que nós fizemos. Aí surgiu a idéia da Missa da Terra sem Males nas ruínas de São Miguel. Posteriormente, como uma paixão gêmea, surgiu a Missa dos Quilombos. Tivemos oportunidade de encontrar um indígena descendente de quíchua e aimará, Martín Coplas, que fez a música para a Missa da Terra. Quando se pensou na Missa dos Quilombos, da causa negra, só se pensou no Bituca, o Milton Nascimento. As duas missas, acho que honestamente podemos dizer, foram pioneiras, inclusive escandalosas para alguns na época. Têm sido textos muito utilizados que despertaram textos posteriores.

Há dois anos apresentamos a Missa dos Quilombos na praça diante da catedral barroca de Santiago de Compostela. Os galegos que lotaram a praça disseram que tinham ouvido a missa em galego. Começou com um ponto de orixás cantado por uma negra evangélica ao som de atabaque de Negreiros, um mago da percussão do Rio de Janeiro. Quando entrei na catedral, me dei conta de por que a Teologia da Libertação não vinga em lugares como a Espanha. Tamanha a força daquele testemunho da cristandade, tal como era concebido nos 1400...
O testemunho de pedra...

É, e no entanto a reação ao espetáculo foi de muita sensibilidade. O que pode significar para um católico espanhol uma celebração assim? Porque não foi outra coisa senão uma celebração católica, ortodoxa, que começa com um ponto de orixás.
A eucaristia, a Páscoa de Jesus, a Páscoa do mundo, não pode ser só romana, ocidental. Todas as vozes, todos os instrumentos, todas as danças levam a Deus. Celebrando a causa negra, a indígena, que são tipicamente martiriais, se tem uma fé também profunda e clara. Se sentirá que na verdadeira eucaristia não só celebramos o sangue de Jesus, mas também o sangue dos irmãos e irmãs, concretamente desses povos crucificados, como diria o grande Bartolomeu de las Casas. Uma celebração dessas provoca necessariamente a solidariedade.

Você recebeu na época, quando a missa foi apresentada pela primeira vez, uma correspondência da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé, dizendo que a missa não pode ser utilizada como sacrifício para uma causa específica de uma raça, de um povo.
Conversando com o cardeal Gantin, que é negro, eu dizia que ele deveria entender, melhor do que ninguém, uma missa assim. Recordei que infelizmente missas de catedrais e missas pontificais foram celebradas em homenagem a um rei sem-vergonha, ou uma marquesa sem-vergonha, um fazendeirão explorador. Por que não se podia celebrar a missa por povos mártires? Recordava, inclusive, para esses cardeais, que nos primeiros tempos, nos altares, colocava-se sempre uma relíquia de mártires, que tinham convivido com aqueles que estavam celebrando. Agora fomos criando uma distância e nos parece que só podemos colocar relíquia dos mártires de sete, oito, quinze séculos atrás. Por que não relíquias do [cardeal Oscar] Romero, do [padre] Josimo, de Margarida Alves?

Há poucos meses moveu-se de novo uma campanha para a cotação de bispos na bolsa de assassinatos...
Custando só 3,5 milhões em URV, hoje não sei quanto vai ser...

Eu lhe perguntaria: é uma contribuição significativa essa que a Igreja na América Latina dá para a história da Igreja, essa dos mártires de hoje?
A América Latina e concretamente a Teologia da Libertação nos deram a grande contribuição de explicitar o martírio maior, na história universal, que é o martírio pelo Reino. Temos muitos mártires que não se confessaram explicitamente cristãos, mas morreram pelo Reino, pela justiça, pela libertação, pela fraternidade, contestando a tortura, a opressão. Era uma vida pela causa, pela qual o próprio Filho de Deus deu a vida. Esses mártires do Reino são muitos mais do que os mártires simplesmente cristãos.

Há quinze anos os movimentos sociais no Brasil foram ressuscitando, as primeiras expressões organizadas das lutas no ABC em 1978, a anistia em 1979. Em 1980, a reorganização dos partidos, em 1982 a primeira eleição para governador, em 1983 a fundação da CUT (Central Única dos Trabalhadores), em 1984 as diretas. Em 1985, o nascimento do Movimento dos Sem-Terra. O que pode significar a gestação desses novos valores como alternativa para este país?
A primeira independência desse continente, libertando-se da Espanha ou de Portugal, foi a independência dos novos Estados. O que estamos vivendo agora por meio do movimento popular seria a independência da cidadania. É o povo que está se “independentizando”, no sentido de estar se tornando adulto, participando, assumindo a própria co-responsabilidade, reduzindo inclusive, ao seu devido lugar, o poder do Estado, o poder do partido, o poder dos sindicatos. Esse ressurgimento está prestando o melhor serviço à política também. Nossos políticos ainda são muito de legislação, de relações internacionais, de cúpula sempre. A participação do povo faz com que a política torne-se realmente a vida da pólis, da cidadania.

Hoje todo mundo defende a cidadania no Brasil. Mais uma vez ocorre aquela apropriação, todos utilizam a mesma palavra para colocar nela significados diferentes.
Sabe o que se passa? A democracia esta tão prostituída que já não dá para prostituir mais. Tiveram de inventar outra prostituta. Simultaneamente, Betinho e D. Mauro Morelli — o que temos de melhor nesse Brasil — descobriram essa noiva, essa esposa, essa mãe, que poderia ser a cidadania para o país todo. Mas como você bem diz, já os grandes, os meios de comunicação, até as multinacionais a têm prostituído.

Operou-se uma modificação no dia-a-dia da violência no campo. Ela tomou formas diferentes. Os documentos da CPT (Comissão Pastoral da Terra) dão conta de uma diminuição no número de assassinatos e uma explosão dos casos de trabalho escravo. Como você vê esse fenômeno?
Há menos mortes, mas continuam sendo muito qualificadas. Por outro lado, se o país vive a tragédia do desemprego, é evidente que se volta ao trabalho escravo. Na medida em que se deixa de lado a reforma agrária, a reforma agrícola, em que não se reformula o Judiciário, que nossa Constituição está congelada ali, a injustiça, o abuso, continuam livres. No trabalho escravo há mais mulheres e crianças. Aos olhos de pessoas despercebidas nem se considera trabalho, é um favor, um bico.

Essas reformas a que você se referiu configuram um novo projeto nacional para o país. Como interpretar essa necessidade de um novo projeto nacional quando se percebe que os Estados nacionais, como forma de organização da sociedade, nos países desenvolvidos, já entraram em colapso? Hoje são o Estado supranacional ou as grandes empresas transnacionais que formulam as políticas. Como interpretar esse descompasso?
Evidentemente não se poderá pensar em reformar um país se não se pensa simultaneamente em reformar um continente, o mundo. Cada vez mais o mundo é um só. Nesse sentido, eu penso que é muito mais difícil reformar um país. Podemos sonhar para o Brasil o melhor presidente, com a melhor assessoria, inclusive uma reforma séria do Congresso. Não conseguiremos muito, ainda. Mas a vantagem é que, na medida em que vamos reformando um país, estamos reformando outros. Se o Brasil quer modificar sua economia, vai ter de dar um certo basta à divida externa. Esse basta afeta beneficamente a todos os países do Terceiro Mundo, é uma lição, uma contestação e um soco nos países credores. Não podemos pensar o Brasil só brasileiramente, temos que o pensar “latino-americanamente”, “terceiro mundistamente”, mundialmente.

Hoje a sociedade brasileira mobiliza-se num processo eleitoral complexo e muito disputado. Temos mais um plano econômico que por coincidência ocorre no meio de um processo eleitoral, como o Plano Cruzado, em 1986. Como você percebe os movimentos da sociedade brasileira, das diversas forças políticas, e dos candidatos que estão postos no contexto da disputa presidencial?
Eu não vou citar nomes, mas está claro que neste país há dois projetos. Um majoritário em nomes de candidatos, que acaba sendo neoliberal. Para dizer com palavras mais tradicionais, não deixa de ser a direita. Não é um projeto que transforme o país. E há o projeto popular que atende essas necessidades básicas. Eu penso que esse projeto significa reforma agrária e agrícola, uma adequação do salário. Um projeto que dê um basta à dívida externa, chamem de moratória, renegociação etc. Um projeto que reconheça o Brasil pluriétnico, pluricultural e plurinacional. E que faça o possível para que possamos viver com tranqüilidade, numa convivência fraterna. Um projeto que seja latino-americano. Agora, evidentemente, temos de acabar como Primeiro Mundo, para que não haja um Terceiro Mundo. Temos de acabar com o veto na ONU, para que possa ser um encontro de nações unidas, tão nação a Guatemala quanto os Estados Unidos. Dirão que isto é utopia. É, sim senhor. Eu só vivo pela utopia. Outro tipo de mundo, este não serve, massacra, exclui.

Temos diante de nós um quadro diferenciado na América Latina. Nos últimos anos, veja o que houve na busca de soluções ao sair das ditaduras militares. Um México que quer deixar de ser latino-americano e virar anglo-saxão, um Chile que buscou por meio de uma política neoliberal apresentar-se como parceiro do Nafta nos Estados Unidos etc. Então isso significa que essa opção da modernização neoliberal está descartada, em colapso?
Eu já tenho escrito, o neoliberalismo é a morte. O Primeiro Mundo está vivendo isso. Não sou contra o mercado, evidentemente, nem contra o capital, sempre que esteja submetido ao trabalho. Como não sou contra a propriedade privada, sempre que não seja privativista e privadora. Inclusive acho que não é hora de revoluções. E passou a hora de guerrilhas. Agora, há transformações sérias.

Então sua leitura é que esse mundo pós-muro, pós-revoluções, que se desenhou depois da queda do Muro de Berlim e do colapso do Leste Europeu, e que tem como expressão maior, do ponto de vista da organização da sociedade, a proposta neoliberal, está com os dias contados?
Os dias não sei, mas os anos. O próprio Primeiro Mundo está reconhecendo que por aí não dá, cresce o desemprego, a violência, a corrupção, a decepção, a não-participação. No meu entender, a humanidade irá para um tipo de socialização nas exigências básicas da vida.

Numa estrutura social tão conservadora quanto a do Brasil, que papel a sociedade tem de exercer no sentido de cobrança e apoio para que vingue um governo Lula, um projeto que pode ter uma repercussão muito importante para o continente e talvez para o mundo?
A sociedade que esteja disposta a esta transformação deve ter cada vez mais lucidez, por um lado, e por outro cada vez mais paciência. Nem o governo Lula poderá fazer milagres de cumprir todas as propostas do melhor programa do PT. Mesmo funcionando bem, com uma boa assessoria. E com um Congresso um pouco melhor do que o que temos. Não poderá cumprir todas as promessas, mas deveria ser o governo da virada, cumprindo algumas promessas básicas, sim. Reforma agrária, em certa medida, o povo está fazendo, bastaria que uma legislação e umas medidas concretas acompanhassem isso. Evidente que terão de se cortar certos latifúndios.

Não se faz reforma agrária sem desapropriar?
Isso está claro. E a reforma agrícola simultaneamente, aquela reforma integral que cada vez mais a própria CPT vem pedindo e da qual estou cada vez mais convencido também. Evidentemente, pode-se reformar a escola neste país. Pode-se organizar a sociedade de modo que haja teoricamente escolas para todas as crianças. Continuaremos ainda com meninos de rua, mas poderemos ir cortando esse drama. Sei que o PT não vai poder cancelar a dívida externa de uma hora para outra. Não depende de um país só. Eu penso que vai ser o governo da virada, não só para o Brasil, poderia ser um sinal para a América Latina. Tenho ouvido sempre que o Brasil será o último país que o império econômico permitirá que se revolucione. Não podemos esquecer os inimigos de dentro e os de fora, muito bem aliados, porque os interesses são comuns, farão tudo, tudo. Não será a greve dos caminhoneiros, serão outras greves.

Como é o desenho cultural de uma sociedade justa?
Eu desenharia a sociedade que sonho com palavras bem simples. Seria pão, circo, seresta e culto. Uma sociedade em que você possa comer, beber, que tenha fim de semana, férias, folga. Que valorize a própria cultura plural, desde a quadrilha, a capoeira, até o ótimo vídeo. Uma sociedade que se comunique com seus ancestrais, com o Deus da vida, dentro do pluralismo cultural. A partir de minha fé cristã, uma sociedade que responda a esse sonho de Deus. Você sabe que os direitos humanos são os interesses de Deus. Porque os direitos dos irmãos e irmãs são os direitos dos filhos e filhas. Gosto de dizer sempre que toda a política deste mundo se resume no Pai Nosso. “Pai nosso que estais no céuu”, nosso, não meu. O pai nosso é o pão nosso. O teólogo jesuíta espanhol González Fauz, que conhece muito bem a América Latina, diz em seu livro Projeto de irmão que a ética, a moral e explicitamente a ética e a moral cristãs são, em última instância, um projeto de fraternidade.

Você ficou muito impressionado com duas coisas ao chegar em São Félix, e as duas são água: a chuva e o Araguaia. Pedro virou amazônico?
O Araguaia é a artéria mais bonita do Brasil. O rio mais poético e, sobretudo nos últimos anos, um rio bem militante. Além do que, é um rio indígena. O mais interessante é que o Araguaia é um rio que está se fazendo, é uma espécie de movimento popular das águas. Você sabe, toda a Ilha do Bananal é leito do Araguaia. Um rio recente. Eu tenho um poema que diz “que me entierren en el río, al pie de una garza blanca”. Você deveria fazer agora como os entrevistadores: um conselho para nossos leitores...

Um conselho para o presidente da República.
Olha, os presidentes da República deveriam fazer como os bons jogadores, retirarem-se em tempo e previamente e não entrar se não souberem jogar. Mas como último conselho eu tenho um poema que termina dizendo: “Yo me atengo a lo dicho, a la esperanza.” Certo?

Obrigado, Pedro.

Pedro Tierra é Hamilton Pereira. Secretário Agrário Nacional do PT