Mundo do Trabalho

Os evangélicos representam hoje cerca de 15% dos brasileiros, sendo a religião que mais cresce entre os trabalhadores. Sua relação com o PT vem muitas vezes sendo dificultada pelos privilégios que os seus adeptos apontam serem concedidos aos católicos

Brasil tem a segunda maior comunidade de evangélicos (protestantes) praticantes do mundo: em torno de 25 milhões, ou 15% da população. Recente pesquisa realizada no Rio de Janeiro indica que o crescimento da religião é espantoso (um novo templo por dia no Grande Rio); que é opção sobretudo dos pobres (quanto mais carente a região, mais templos evangélicos per capita); e que a iniciativa é independente das elites sociais e é brasileira (a "invasão das seitas" financiada pela direita norte-americana é um mito). A religião evangélica é fenômeno popular e nacional em rápida expansão.

Ao contrário da religião católica, a evangélica é segmentada. Entre centenas de pequenas igrejas, há algumas grandes: Luterana, Presbiteriana do Brasil, Presbiteriana Independente, Batista, Metodista, Assembléia de Deus, Congregação Cristã, Brasil para Cristo, Quadrangular, Deus é Amor e Univer sal do Reino de Deus. A lista já nos alerta para as enormes diferenças sociológicas. A Luterana nasceu no século XVI; a Universal do Reino de Deus, em 1977. A Presbiteriana começou na Escócia e chegou ao Brasil via missionários norte-americanos; Deus é Amor começou em São Paulo. O fundador da Igreja Metodista foi um inglês formado em Oxford; o fundador do Brasil para Cristo foi um operário de construção pernambucano. A Luterana é basicamente de descendentes de alemães; a Assembléia de Deus tem muitos negros e mestiços. O que une todas é a adesão aos princípios da reforma protestante: o cristianismo trinitário, a Bíblia como norma de fé e prática e a salvação pela fé sem a intermediação sacerdotal1.

Fica evidente a variedade sociológica. Os estudiosos fazem divisão básica entre históricos e pentecostais. Os históricos (luteranos, presbiterianos, batistas, metodistas etc.) são grupos mais antigos, geralmente nascidos nos países protestantes. Nacionalizaram-se há muito, e costumam ter clientela (e certamente liderança) de classe média. Os pentecostais (como as últimas seis igrejas da lista) são fenômeno do século XX, frisam os "dons do Espírito Santo" como línguas estranhas, curas e exorcismos. São sobretudo pobres, com líderes formados no próprio meio. Hoje constituem dois terços dos evangélicos no Brasil.

Os pentecostais não têm boa imagem pública: o desprezo que não é de "bom tom" dirigidos a outros fenômenos religiosos populares ainda se dirige aos pentecostais. Mas é preciso superar o preconceito e perceber a novidade sociológica e potencial política. Seria trágico se o partido que se chama "dos trabalhadores" enxergasse a religião que mais cresce entre os pobres com uma visão elitista das principais instâncias formadoras de opinião e fosse incapaz de compreender esse fenômeno genuinamente popular. Pois o pentecostalismo é religiosidade popular totalmente autônoma. Segundo o Pe. José Comblin, "as comunidades católicas podem contar com a ajuda ideológica e condução estratégica de elites sociais e políticas..." mas os pentecostais "constituem um mundo popular independente de organizações de classes dirigentes. A longo prazo, tal situação é mais favorável do que a situação das massas populares católicas"2.

Se o candomblé é um "corpo sem cabeça" porque a cabeça está na Igreja Católica, e se, entre católicos populares e umban distas os respectivos ramos eruditos (paróquia católica e centro kardecista) são considerados mais respeitáveis e legítimos3,  não se dá o mesmo com o pentecostalismo. Este rompe com o padrão brasileiro de organização do campo religioso no plano das massas.

Política evangélica

Os evangélicos ultimamente têm fama de força conservadora. Geralmente, a fama é merecida mas deve ser relativizada. A diversidade sociológica e a divisão institucional torna a política evangélica muito variada. Na eleição de 1989, as lideranças das principais igrejas adotaram um leque de posições, desde a campanha aberta por Collor (Universal) até uma declaração de princípios mais à esquerda do que a CNBB (Metodista), passando pelo apoliticismo (Congregação Cristã), conservadorismo velado (Presbiteriana do Brasil) e opção tucana mal disfarçada (Presbiteriana Independente). Não há entidade como a CNBB que possa falar em nome dos evangélicos; todas as tentativas de uni-los politicamente esbarram no princípio protestante da autogestão. Por mais que cresçam nunca poderão estabelecer uma "cristandade evangélica". O fato de que a religião que mais cresce é institucionalmente dividida e opera no formato pluralista é bom para a democracia. Os evangélicos não votam em bloco, nem dentro de determinada igreja. Mesmo os pentecostais nem sempre acatam a orientação política dos pastores, pois (ao contrário da umbanda) a lealdade é mais com a doutrina e com a comunidade do que com o pastor. De fato, em todas as igrejas há um pluralismo político. Posições de esquerda sempre tiveram seus defensores, principalmente nas igrejas históricas.

Como os pentecostais se comportariam num governo de esquerda? Depende. Para algumas lideranças, fatores como rivalidade com a Igreja Católica e a política de comunicação teriam grande peso.

Mas no Chile, os fiéis pentecostais eram bem mais favoráveis a Allende do que seus pastores, e até mais do que seus vizinhos não-pentecostais4. Na Nicarágua, onde os evangélicos cresceram muito durante o governo sandinista, um estudo5 estima que um terço dos pastores evangélicos simpatizava com a revolução, a mesma proporção do clero católico. Quanto aos fiéis evangélicos, concentrados nos bairros mais pobres, "eles dividem com a teologia da libertação uma orientação social com certa consciência de classe, anticapitalista e moralmente conservadora". Como religião dos pobres marginalizados, sua relação com a revolução é indireta, sem intenções políticas explícitas. Enquanto a relação da teologia da libertação com a revolução é principalmente ideológica, a dos evangélicos é sociológica. Reestruturam a vida dos mais pobres, combatendo a cultura do desespero e abrindo a possibilidade da participação revolucionária em vez da marginalidade. Ao todo, conclui o estudo, os evangélicos cresceram e não impediram o processo sandinista.

A esquerda evangélica

O crescimento evangélico não tem destino político pré-determinado. Como diz Comblin: "O passado mostra que os protestantes não manifestaram menos capacidade de transformação social do que os católicos. Ao contrário. Ora, os protestantes dos séculos XVI a XVIII eram muito semelhantes às seitas populares de hoje." No Brasil, a esquerda evangélica vem alterando o perfil político das igrejas. O Movimento Evangélico Progressista (MEP) começou em 1990 como resposta à chamada "bancada evangélica" na Constituinte, de forma fisiológica e conservadora, e à eleição de Collor, na qual provavelmente o voto evangélico foi decisivo. Percebendo que a influência política evangélica aumentava, e entendendo que deveria ser diferente, vários evangélicos organizaram a corrente minoritária. O MEP já promoveu dois Fóruns Nacionais de Discussão e Entendimento entre Evangélicos e Partidos Progressistas (Campinas, agosto de 1991 e agosto de 1993), com participação de líderes e de partidos (PT, PPS, PSB, PDT).

Lições do passado

Já em 1989 foi criado o Comitê Evangélico Pró-Lula. A experiência ilustra a necessidade de uma boa-vontade informada dos partidos para transformar a política evangélica.

Collor foi inteligente na campanha junto aos evangélicos. Levou a sério as preocupações das lideranças em questões comportamentais e religiosas. Em algumas igrejas, enfrentou a preferência inicial por outros candidatos e lucrou no segundo turno. Por que várias lideranças apoiaram Collor? Rendeu sua apresentação como "temente a Deus", em contraste com o "ateísmo" de Lula. O ateísmo associava-se a regimes comunistas. Difundiu-se a idéia de que Lula discriminaria os evangélicos.

Esse medo de perseguição religiosa seria simples delírio? Mas delírios são construídos em cima de um mínimo de fatos. Não basta dizer que as intenções de Lula não eram essas. Temos que nos colocar na posição dos pentecostais e reconstruir sua estrutura de plausibilidade. A base é a história do tratamento dos cristãos nos países comunistas. O símbolo comunista nos comícios evocava essa história. Poderia ser objetado que os governos socialistas "eleitos" jamais perseguiram as igrejas. Contra isso, os pentecostais têm muitas histórias - verídicas ou não - do que consideram discriminação por administrações petistas: espaços físicos negados para realização de eventos, cultos ao ar livre proibidos, pastores tratados com animosidade... Contudo, o importante é entender que havia receio genuíno quanto a Lula. Para muitos pentecostais, a candidatura significava uma combinação de comunismo e catolicismo.

Assim, o temor de "perseguição" tinha um fundo plausível. Como dizem os jornais católicos, em alguns países da América Latina, a "contra-ofensiva católica" inclui o desejo da "intervenção repressiva dos governos", e até "certos meios progressistas" querem isso6. As acusações de "invasão de seitas" geralmente partem de duas instâncias: a esquerda secular e a Igreja Católica. Não é de surpreender que a aliança delas parecesse ameaçadora. Cabia a esta aliança provar que não pretendia dificultar o funcionamento e expansão das igrejas. O receio só seria atenuado com interesse maior do que houve da candidatura Lula.

O Movimento Evangélico Pró-Lula, por sua vez, teve dificuldades para criar impacto. Só conseguiu aparecer uma vez na propaganda televisiva. Esta aparição, apesar de breve, teve amplo efeito, atingindo muitos membros de igrejas cujos líderes não admitiam o voto em Lula. Mas foi com dificuldade que o movimento obteve essa abertura. Um documento de avaliação diz que "não fomos ouvidos na Frente quanto à participação nos comícios e nos programas de rádio e televisão". No segundo turno, o Movimento Evangélico não apareceu mais no programa televisivo; em seu lugar havia o recém-formado Comitê Inter-religioso Pró-Lula. Para maximizar o voto evangélico a estratégia foi contraproducente. O pronunciamento de um grupo "inter-religioso" dificilmente sensibilizará os pentecostais.

Apesar da indiferença da Frente, provavelmente houve mais votos para Lula nas igrejas evangélicas do que nas CEBS. Fica evidente que a Frente investiu pouco no voto evangélico e, às vezes, investiu em setores que poucas chances teriam de criar um impacto.

Desafios do presente

Em 1994 podemos esperar apoio maior a Lula, não somente como reflexo da tendência geral da sociedade. O progresso da esquerda evangélica, embora deficiente, vai desfazendo associações negativas. A nova Associação Evangélica Brasileira (AEVB) também ajuda: sua cartilha eleitoral desautoriza a aliança com candidatos que caracterizou várias igrejas pentecostais em 1989, sobretudo baseada em boatos de perseguição religiosa. Mesmo assim, a campanha Lula precisa saber responder a certas preocupações constantes de líderes pentecostais: liberdade religiosa (direito não só de culto mas de propaganda e expansão7); a política de comunicações (acesso ao uso e à posse da mídia8); aborto (oposição à liberação); homossexualismo (não-reconhecimento legal da união homossexual); educação religiosa (manutenção da instrução opcional nas escolas públicas); e missões indígenas (sobretudo direito de tradução e distribuição da Bíblia9. Algumas dessas preocupações podem parecer exóticas ou estreitas; mas quando compreendidas, são enquadráveis de alguma forma numa política democrática que reconheça o pluralismo existente na base da sociedade, evitando que os líderes de grandes igrejas populares convertam-se em opositores abertos de um governo Lula.

Relacionar-se com os evangélicos é um desafio para o PT. Há o fator histórico: o partido resultou da confluência de vertentes católicas e secularistas. Há o fator sociológico: o partido estruturou-se nos setores "organizados" da sociedade; muitos dos pobres "não-organizados" estão nas igrejas pentecostais. O PT é capaz de ver estas como formas autênticas de organização dos pobres? Um dos líderes do Movimento Evangélico Pró-Lula. Robinson Cavalcanti, fala da dificuldade de superar a ignorância do país que se pretende governar. "No primeiro contato que tivemos com o partido - em 1989, o líder partidário - não entendia nada, porque para ele o mundo evangélico resumia-se aos pregadores da Praça da Sé. Em nível local também, é necessário que as lideranças chamem a comunidade evangélica, sem ódio e sem medo". Hoje, os maiores obstáculos para essa aproximação talvez estejam nos partidos, não na comunidade evangélica. Alguns ainda vêem os evangélicos no partido como outra "tendência", ou como oportunidades, ou como ideologicamente inconseqüentes. De fato, a maior parte da esquerda evangélica não segue a teologia da libertação, preferindo a chamada "teologia integral" de raízes protestantes, mas nem por isso é inconseqüente na sua política. A teologia da libertação não é a única maneira de se chegar a um cristianismo conse qüente de esquerda e, evidentemente, não deve existir o ciúme de querer preservar um monopólio do produto. Não vale estabelecer um critério "teológico" de confiabilidade "ideológica".

A esquerda evangélica tem discurso e cara próprios (diferentes da esquerda secular ou católica) e é bom que continue a tê-los, sob pena de se afastar de suas bases religiosas e perder seu potencial político.

O PT está em transição na relação com os evangélicos. Por um lado há uma abertura (pragmática para uns, genuína para outros). Por outro lado, há velhos preconceitos ou ignorância. O caminho mais promissor é o da abertura genuína; não a mera caça eleitoral, mas a reavaliação despreconceituosa, porém sempre crítica, do fenômeno evangélico, uma das expressões mais vibrantes da verdadeira sociedade civil.

Paul Freston é professor de sociologia da Universidade Federal de São Carlos e membro de Igreja Evangélica.