Política

As administrações municipais, definidas como democrático-populares, tiveram experiências bem diferenciadas, porém todas ricas em inovações e na busca de alternativas políticas e sociais

"Em lugar de uma noção de identidade municipal vinculada ao elitismo excludente, ao ponto de vista estatal, à anticultura de homogeneização social, à valorização das grandes obras, ao populismo, ao clientelismo e, mais recentemente, à ideologia privatista, trata-se de atuar para a constituição de uma nova noção de identidade municipal articulada aos valores democráticos da inversão de prioridades, da transformação da relação entre o poder político e a comunidade e da reforma do Estado".
Celso Daniel, Relação mal resolvida
T&D nº14.

As administrações municipais, definidas como democrático-populares, tiveram experiências bem diferenciadas, porém todas ricas em inovações e na busca de alternativas políticas e sociais.

De um modo geral, essas administrações abriram-se à comunidade por meio da discussão pública do Orçamento Municipal e dos planos diretores, via criação de canais institucionais ou informais de participação, "conselhos" etc. Essas administrações públicas buscavam representar as aspirações da comunidade mais carente e satisfazer, na medida de suas limitações econômicas e políticas, as necessidades mais sentidas por essa população. Buscaram, geralmente, um processo de inversão de prioridades, trabalhando na contramão das administrações tradicionais, que se caracterizaram, sempre, por marcas ligadas a poucas, grandes e visíveis obras.

Mas, com a perspectiva da vitória eleitoral para a Presidência da República e para alguns governos estaduais, também democrático-populares, é necessário analisar os avanços das gestões municipais mencionadas antes. E uma das dimensões a serem analisadas diz respeito ao planejamento e sua relação com o exercício da cidadania.

A cidadania tem, como alicerce, a existência de um mínimo de dignidade e de condições de vida. Não há a possibilidade de exercício da cidadania com pessoas em situação de miséria absoluta. Isso é pressuposto que implica planejar muito o atendimento ao chamado "débito social", o que tem sido objeto de inúmeros trabalhos e, sem dúvida, no campo das lutas sociais, tem ocupado o centro das preocupações de todos os que buscam uma sociedade mais justa"A proposta de inversão de prioridade não coloca como questão a eliminação das carências, meta irrealizável em face da escassez de recursos. Trata-se, sim, de realizar melhorias, redistribuir renda e inscrever direitos, contribuindo para a superação de valores políticos excludentes, mas consagrados socialmente."1 Mas, o atendimento ao "débito social" pode ser feito, e muitas vezes o é, até mesmo por um governo fascista, quanto mais por um governo neoliberal inteligente. Este não deve ser o diferencial das administrações democrático-populares, apesar de terem a obrigação de trabalhar muito no atendimento às carências sociais e para a criação de um mínimo social de renda e pela ação do setor público.

O diferencial deve ser a profunda transformação das relações entre o Estado e o cidadão, o que implica pensar, inclusive, a própria reforma do Estado. A cidadania manifesta-se pela forma de apropriação pública da "coisa pública". O sentimento de ser "dono" da "coisa pública" caracteriza a identidade entre o cidadão e a cidade ou entre o cidadão e a "coisa pública". Essa relação de apropriação é a essência da cidadania e conforma os direitos de cidadania.

Planejar a ação de governo passa, portanto, por compreender e atacar essas duas vertentes. De um lado, pensar na ação do Estado, na produção da cidade, do espaço urbano (o mesmo vale para a produção do país), tendo em vista a apropriação do espaço (ou serviço) pelo cidadão; de outro, modificar o Estado para que ele se adeque a essa nova forma de produção da cidade (espaço público ou serviço público).

O planejamento autoritário

Planejar, no tempo do governador Paulo Egydio Martins, em São Paulo, em pleno período Geisel, era uma coisa curiosa. Pensava-se o planejamento, apenas e tão-somente, como a elaboração de planos diretores, que eram entendidos como sendo o cálculo do "débito social", com seu correspondente financiamento e planos de infra-estrutura básica e de transporte viário (circulação de mercadorias) e seus respectivos financiamentos. Precisávamos cumprir todas as exigências do Banco Mundial para termos acesso às linhas de financiamento e estas exigências significavam "termos os olhos voltados para o social". Em plena ditadura militar, tratávamos de "débito social".

O que parece uma contradição, na verdade era uma característica básica do planejamento urbano no Brasil da década de 70. De modo esquemático, um plano diretor urbano era mais ou menos o seguinte:

- utilizava-se dados que permitiam, em série histórica, conhecer o comportamento demográfico da cidade e, com o aproveitamento de outras variáveis, projetar o crescimento em períodos qüinqüenais, pelo prazo de 25 anos (a eterna busca do ano 2000);

- fazia-se o levantamento dos equipamentos urbanos existentes, para o atendimento das demandas sociais básicas, nas áreas de saúde, educação e - conforme o porte da cidade ou o perfil de seu prefeito - também cultura, abastecimento, lazer etc.;

- levantava-se o cadastro da infra-estrutura básica existente (água, esgoto, estradas, iluminação etc.);

- calculava-se a demanda presente não atendida e projetava-se, também, a demanda futura de equipamentos e de infra-estrutura, obtendo, assim, o famoso "débito social", tão ao gosto da "esquerda" dos planejadores;

- definiam-se as obras necessárias ao atendimento desse "débito social", com o horizonte de 25 anos;
levantava-se a capacidade de investimento e de endividamento da prefeitura e definiam-se as linhas de financiamento a serem obtidas junto aos órgãos financiadores;

- tinha-se, assim, um plano diretor e com ou sem o financiamento de organismos nacionais e internacionais, ele era exposto em uma prateleira visível, ou seja, era editado em livros graficamente vistosos para que o prefeito pudesse se gabar de que seu município possuía plano diretor e vangloriar-se de trabalhar o crescimento ordenado de sua cidade.

O município, na mesma linha da política do "milagre econômico", era pensado exclusivamente na lógica da produção e circulação de mercadorias, isto é, na simples lógica da reprodução do capital. Este procedimento alinhava-se, também, àquela época, ao outro, de pensar soluções de longo prazo (25 anos), tendo em vista a geração de grandes empreendimentos e não a geração de soluções modulares. O "milagre econômico" e o planejamento de largo horizonte de tempo são os geradores das grandes empreiteiras, na década de 70. A matemática do atendimento ao débito social e à carência de infra-estrutura, aliada ao planejamento de longo prazo e à busca de financiamento externo, são também alguns dos principais responsáveis pelo grande endividamento externo da década de 70.

A apropriação da "coisa pública"

Se é verdade que o planejamento, como instrumento de viabilização de grandes obras, há muito tempo, deixou de ser o centro das preocupações dos planejadores, o raciocínio de que planejar e, portanto, de que construir a cidade e o espaço urbano é suprir o "débito social" mantém-se presente e, geralmente, escamoteia a questão da apropriação do espaço urbano. É um enfoque que se materializa em temas de intervenção urbana ligados às demandas sociais mais fortes, como educação, saúde e habitação, mas que pode estar presente em outras temáticas ligadas às carências sociais.

A grande diferenciação que podemos buscar, com as administrações democrático-populares, é compreender que a essência da cidadania está na apropriação pública dos serviços e do espaço público; na identidade entre o cidadão e a cidade ou entre o cidadão, o espaço público e o serviço público, envolvendo, por parte do planejamento, o conhecimento e uma clara compreensão dessa identidade.

O planejamento, assim, não é um simples atributo técnico. É um ato de pensar a produção da cidade, tendo em vista sua apropriação. Com essa dimensão, e sem prescindir dos técnicos, o planejamento não é uma ação técnica, mas uma ação política, realizada, obrigatoriamente, em sintonia e com a participação do usuário do serviço ou do espaço público. A participação popular tem que ser vista com esse enfoque, como uma imposição obrigatória desse planejar visando a apropriação e não com as premissas do paternalismo, do planejamento enquanto uma dádiva da esquerda. Este é um pressuposto necessário da perspectiva socialista.

A participação popular precisa deixar de ter o ranço das reuniões formais e chatas, nas quais quem participa precisa ter noções do que significa "questão de ordem", "me dá um aparte" etc., para ganhar a informalidade que caracteriza a essência da identidade e da apropriação do objeto da participação. Sem embargo dos canais formais necessários à institucionalização dessa participação, é preciso aprender a dialogar com a comunidade e a descobrir as representações reais da sociedade, muitas vezes obscurecidas pelo aparelhismo das entidades de massa. Na maior parte das vezes, o "seu" José, da rua A, é muito mais representativo e acatado pela comunidade do que o presidente da Associação de Moradores. Muitas vezes, o "seu" José é respeitadíssimo, mas não suporta reuniões formais ou disputas típicas de entidades. O desafio da participação é criar mecanismos para descobrir o "seu" José e fazer com que ele participe, o que, com certeza, passa pela informalidade e, muitas vezes, pelas atividades de lazer e não pelas reuniões formais dos "conselhos".

É necessário ao poder público captar as identidades locais, compreendê-las, saber que o espaço público a ser produzido ou o serviço público a ser ofertado têm que ser condizentes com essa identidade local, que eles não podem ser padronizados e neutros. O espaço e o serviço público serão apropriados por uma comunidade determinada e gerarão ou não sentimento de "posse", conforme digam ou não respeito à identidade dessa comunidade no momento da apropriação. Produzir em função da apropriação é um diferenciador fundamental a ser buscado pelas administrações democrático-populares, tendo em vista a cidadania.

O planejamento econômico falseia a questão da identidade e, portanto, da cidadania quando tem como objeto apenas e tão-somente o desenvolvimento econômico e a geração de empregos. O desenvolvimento econômico, assim como o atendimento ao "débito social" são pressupostos do exercício da cidadania, mas não a garantem nem a produzem sozinhos. O planejamento, além de enfocar o desenvolvimento econômico, necessita enfocar, obrigatoriamente, a produção da cidade, tendo como conteúdo a relação entre o cidadão e a cidade.

A adequadação do Estado

O Estado que herdamos, ao assumirmos uma administração democrático-popular, em sucessão a uma administração tradicional, é profundamente inadequado a esse novo modo de governar. No Brasil, ele tem servido historicamente a interesses de setores que se locupletam ou reproduzem seu capital a partir das decisões do poder público, ou que vivem à sombra da proteção do Estado, sem precisar se preocupar com seu desempenho. O discurso neoliberal da "privatização" esconde esse papel tradicional do Estado, aproveitando-se das mudanças do Leste europeu, mas procura mantê-lo como cobertura para seus negócios. Trata-se, sim, de desprivatizar o Estado, transformá-lo em coisa pública, e isso implica a necessidade de profundas transformações2.

A ineficiência do Estado não pode ser considerada uma característica intrínseca sua, mas algo que foi sendo construído, exatamente na lógica da privatização, na lógica do Estado a serviço de alguns setores do capital, estes sim ineficientes e que sobrevivem às custas desse Estado também ineficiente. O direito administrativo, no Brasil, impõe regras que levam à ineficiência na ação do Estado, muitas vezes sob a roupagem da moralização, como é o caso das compras de produtos e serviços, que se dão sob regras com prazos e mecanismos incompatíveis com qualquer critério mínimo de eficiência, além de obrigarem a administração pública a comprar mal e caro, em nome de uma falsa moralização.

As licitações, no Brasil, pressupõem que o poder público tenha domínio completo do produto que vai comprar, podendo fazê-lo apenas por preço, o que não é exigido de nenhuma empresa, que pode comprar comparando custo-benefício de produtos alternativos. Mas, licitações são apenas um caso. O mesmo acontece com a contabilidade pública, com a estrutura hierárquica, com as regras eleitorais etc.

É absolutamente fundamental que o setor público seja eficiente e competitivo. Mas, não basta isso. O Estado tem que ser modificado para exercer seu novo papel de produzir o espaço e o serviço público, tendo em vista a sua apropriação. Uma reforma administrativa precisa agilizar o serviço público e aprofundar o diálogo com os cidadãos, enquanto indivíduos ou coletividade.

A definição das ações do Estado - obras ou serviços -, precisa ter como meta a produção da cidade (do Estado ou país) em sintonia com a apropriação dessa cidade, isto é, a relação de cidadania deve ser a base da ação pública.

O planejamento estratégico pode ser um instrumento poderoso para a definição das atividades de governo, ajudando a montar o plano de ações, a organização geral do aparato estatal e as relações de governo. Pode apontar as operações para a ampliação ou redefinição da capacidade de governo, nos campos técnico, administrativo ou mesmo econômico. Pode apontar as operações de governabilidade e tornar a correlação de forças favorável. Mas o planejamento estratégico não substitui a necessidade de lutar no campo dos conceitos políticos. É apenas um instrumento metodológico para sistematizar e ampliar a capacidade de governo e a governabilidade, necessárias para levar a cabo o programa de governo.

A reorganização interna da máquina do Estado precisa passar por seu reaparelhamento e redimensionamento, bem como por ações de reciclagem do funcionalismo e de procedimentos internos. Essa reorganização é básica para adequar o Estado ao novo modo de governar. As experiências demonstraram que é possível falar em motivação do funcionalismo, de produtividade, de modernização de métodos e, até, de "qualidade total", que vem representando a modernização da gestão empresarial. Aliás, é necessário perder o preconceito contra métodos empresariais na gestão pública.

Estado e hegemonia

Os projetos políticos que as administrações democrático-populares começaram a desenvolver possuem muitos pontos em comum, principalmente o tratamento das carências sociais mais sentidas e a abertura de espaços para a participação da comunidade. Essas experiências são extremamente ricas e diversificadas, carecendo, inclusive, de sistematização para que possam ser aproveitadas pelas administrações irmãs. No entanto, a relação de produção dos serviços e obras públicas, ou seja, a relação de produção da cidade, tem sido muito pouco trabalhada com o enfoque da apropriação do espaço e dos serviços públicos pelo cidadão. Mesmo com essas experiências ou preocupações, em alguns municípios, esse enfoque não tem, geralmente, ocupado o centro das preocupações políticas das administrações.

Esse novo enfoque precisa ganhar o centro da ação, porque é ele que pode dar às administrações democrático-populares a condição necessária para a disputa da hegemonia política na sociedade. E é no campo da política que se deve lutar pela hegemonia ampliando-se, assim, nossas alianças.

A novidade que as administrações democrático-populares trazem, portanto, é de que planejar envolve uma moderna ação do poder público, visando uma nova forma de produção da cidade, voltada à cidadania e tendo por rumo a disputa de hegemonia na sociedade para o nosso projeto político, democraticamente colocado ao lado de projetos diferentes e, muitas vezes, até antagônicos.

Antonio Carlos Granado é economista, foi secretário de Planejamento da Prefeitura de Santo André-SP (1989/92). Atualmente é diretor de Projetos do Ildes.