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Governo Democrático e Popular poderá contar, como nenhum outro na história do Brasil, com o apoio da mobilização popular e com uma rede de sustentação na sociedade civil

Um dos argumentos que se lança contra o governo do PT é o da falta de condições de governabilidade: o apoio da maioria do Congresso e dos governadores eleitos. É possível que a profecia da "falta de apoios institucionais" seja tão furada quanto a da "revisão inevitável". Afinal, o eleitorado pode votar vinculado ("Lula de ponta a ponta"); e o desgaste do Legislativo pode ser canalizado para uma ampliação da bancada federal de esquerda.

Mas hoje, o cenário mais provável é Lula assumir sem o apoio majoritário do Congresso e dos governadores. Isto, somado à provável oposição de parcela dos grandes grupos econômicos e outros setores ligados ao grande capital e seus representantes políticos, constitui um importante fator de (in)governabilidade.

Diante disto, há quem anuncie outra profecia (ou será um desejo?): a "menenização" de Lula, segundo a qual, para viabilizar seu governo, Lula teria que buscar apoios à direita, "traindo" o seu eleitorado de esquerda. Quem pensa assim tem uma visão absolutamente institucional da política; por conseqüência, só vê saída na capitulação.

O Governo Democrático e Popular poderá contar, em nosso entender, como nenhum outro na história do Brasil, com o apoio da mobilização popular e com uma rede de sustentação na sociedade civil, junto aos movimentos sociais organizados, a segmentos das igrejas, à solidariedade internacional. Afinal, Lula representará o resgate de séculos de opressão e a possibilidade de uma vida digna para a grande maioria do povo brasileiro.

Entretanto, não minimizamos as dificuldades: sabemos que não existe "mobilização permanente" e que a oposição terá fortíssimos apoios (institucionais e extra-institucionais). Devemos compensar isto fazendo... política, "a arte de modificar a correlação de forças utilizando os meios: e comunicação de massas para mobilizar o máximo possível a população em defesa de seus interesses.

<--break->É desta perspectiva que encaramos os primeiros meses do governo. Independentemente de quais sejam as condições da vitória e da posse, o início do mandato será o momento de consolidar os apoios conquistados durante a campanha; ampliar esses apoios em direção a novos setores; e, por último mas não menos importante, será a hora de dividir os adversários, isolando alguns e atraindo outros.

Devemos evitar o administrativismo expresso na frase dita, em 1989, por alguns assessores de prefeitos petistas: "O primeiro ano é para conhecer a máquina; o governo de verdade começa depois disso". Devemos, também, evitar as políticas de estabilização econômica baseadas na lógica tradicional ("primeiro estabilizar a economia, depois fazer as reformas").

Nosso governo deve começar tomando medidas de impacto, destinadas a melhorar a vida do povo e sinalizar as reformas de fundo. Se nos cem primeiros dias de governo o povo não sentir que Lula veio para mudar, tudo pode acontecer. Um caracazo contra um presidente que prometeu e não cumpriu, como ocorreu nos cem dias de Rafael Caldera, na Venezuela. Uma onda de pessimismo e desencanto, retirando do governo Lula a credibilidade e o apoio popular. E nesse meio pode acontecer de a burguesia, sempre a espreita para aproveitar qualquer deslize, resolver "colaborar com um governo em dificuldades"...

É claro que em cem dias não vamos concluir o processo de mudanças que propomos para o país. As reformas defendidas pela Frente Brasil Popular são de longa maturação, implicando o fim do apartheid social, a ampliação da participação política, a democratização da vida econômica, a criação de um mercado de consumo de massas e a retomada do crescimento com distribuição de renda, riqueza e poder. É a busca desses objetivos que pode, parafraseando os antigos e cada vez mais atuais revolucionários, "colocar a luta pelo socialismo - no Brasil e no mundo - num patamar mais avançado".

Mas toda caminhada tem seu primeiro passo. Defendemos que cada uma das reformas estruturais tenha sua pedra fundamental lançada ainda nos cem primeiros dias. Por exemplo: assentar imediatamente as 20 mil famílias de trabalhadores rurais sem-terra acampados; aumentar o salário mínimo; demarcar as terras indígenas; lançar bases de uma nova política industrial; incentivar a pequena produção e as pequenas e médias empresas, priorizando-as nas encomendas estatais; criar o Ministério da Defesa; democratizar os meios de comunicação de massa; iniciar imediatamente a renegociação dos acordos da dívida; iniciar a reforma do sistema financeiro e do Banco Central, naquilo que depende de resoluções e portarias do Executivo; reduzir a taxa de juros; adotar medidas visando o contrato coletivo de trabalho; adotar políticas de controle dos oligopólios; criar mecanismos de participação popular na gestão da política econômica e dos recursos públicos, e viabilizar o funcionamento dos instrumentos já existentes.

A adoção imediata de medidas desse tipo visa consolidar e ampliar os apoios ao projeto democrático e popular, dotando o governo de iniciativa política. Por isso, o cronograma de aplicação das medidas deve levar em conta as condições políticas, institucionais e jurídicas necessárias a seu sucesso.

Ao mesmo tempo que lança a(s) pedra(s) fundamental(is) das grandes reformas, o governo Lula tem que tomar medidas de impacto, com resultados de curto prazo, para melhorar a vida do povo. Os milhões de marginalizados não podem, não devem, e não precisam esperar quatro anos de governo.

Estas são algumas das medidas possíveis, sem a pretensão de esgotá-las, nem de propor uma ordem de prioridades: elevação do salário mínimo; distribuição de alimentos para as famílias em estado de miséria; programa de empregos, com destaque para a reforma agrária, a habitação popular e a campanha nacional de saneamento básico, que ataca simultaneamente uma fonte geradora de doenças; liberação das verbas para saúde e uma campanha nacional de combate às endemias; aplicação do programa de renda mínima; reativação dos mecanismos de controle e fiscalização de preços, com ampliação dos estoques reguladores.

A escolha das medidas de impacto dos cem primeiros dias deve levar em conta os seguintes critérios: consolidar os apoios sociais do governo, em particular junto aos menos favorecidos; ter conteúdo simbólico, capacidade de aglutinação e mobilização.
<--break->Destacamos o atendimento dos menos favorecidos porque são os que necessitam com maior urgência, os que tradicionalmente são traídos após as eleições. E porque são (como alguns setores médios) os segmentos da população que a direita vai tentar jogar contra o governo popular. Nesse sentido, o governo não deve priorizar as medidas que visem consolidar o apoio dos setores menos carentes e com maior capacidade de autodefesa e mobilização próprias. Mas atenção: não priorizar não significa deixar de lado, até porque o governo não pode perder sua base social.

As medidas devem ter conteúdo simbólico, porque é nesse terreno também que se travará a luta ideológica entre governo e oposição. Quando afirmamos que a educação é prioridade em nosso governo, estamos assumindo que caberá ao Governo Democrático e Popular preparar o Brasil do século XXI.

O governo Lula deve propor bandeiras que empolguem e mobilizem a Nação. E o próprio modus operandis do governo assume importância na luta de símbolos: a participação popular e a proposta (feita pelo próprio Lula) de um governo itinerante. Que a demarcação das terras indígenas, ou o início dos assentamentos, seja feito com Lula-lá, no local, cercado pelo povo. Que se reduza o número de ministérios. Que se tomem medidas exemplares contra os sonegadores. Que seja aplicada a lei antitrustes e toda a legislação de defesa do consumidor. Que se aplique a legislação, desapropriando as terras onde há trabalho escravo. Medidas exemplares marcam um governo, estabelecem na população um nítido divisor de águas.

Por que ter capacidade de aglutinação e mobilização? Porque precisamos ampliar os apoios sociais do governo e manter mobilizada sua base de apoio. É nesse sentido que imaginamos uma campanha de erradicação das endemias ou um movimento de alfabetização: algo que envolva centenas de milhares de estudantes, professores, sanitaristas, em contato com outros tantos milhões de brasileiros.

Se o sucesso do governo Lula depende do sucesso dos cem primeiros dias, o sucesso destes depende dos cem dias que separam o 3 de outubro da posse.

Caso de fato vençamos no primeiro turno, o país vai viver uma situação sui generis: haverá um novo presidente, com toda a força da maioria absoluta mas sem prerrogativas legais; e um (vice)presidente completamente deslegitimado, mas ainda com a caneta.

Haverá um novo Congresso Nacional, que só tomará posse tempos depois; e um Congresso desmoralizado mas ainda em exercício, que talvez esteja discutindo o Orçamento de 1995. E estará em curso a campanha do segundo turno na maioria dos estados.

Neste cenário, os meses de outubro, novembro e dezembro têm que ser dedicados à montagem do governo, à disputa dos governos estaduais, e... à definição do Orçamento. No ritmo que vai a elaboração do Orçamento deste ano, o do próximo só será votado após 3 de outubro. É inaceitável que o velho Congresso comprometa o Orçamento do primeiro ano do Governo Democrático e Popular. Ou bem esta tarefa ficará para o novo Congresso, ou o novo governo terá que influenciar a elaboração do Orçamento de 1995 para além dos limites da sua atual bancada de deputados e senadores, chamando a população organizada a definir prioridades orçamentárias.

No caso de vencermos no segundo turno, a situação ficará mais complexa e certamente mais tensa, já não cabendo nos limites deste texto. Que, insistimos, deve ser entendido apenas como um roteiro para discussão.

Odilon Guedes é economista e vereador do PT na Câmara Municipal de São Paulo.